Lá pelo ano de 1858, na ilha do Faial, havia um homem, viúvo, que tinha o usufruto dos bens da mulher defunta. E tinha também uma criada, que não sei se fazia parte do usufruto, mas que parece que ele usufruía. E por isso lhe dava a vestir as roupas da amantíssima esposa que Deus levara a contas jovem ainda. Pois contas lhe pediu um herdeiro da senhora (o embargante), exigindo que ele lhe entregasse os atavios da dama extinta, ou deles prestasse caução. A questão foi levada a tribunal, e mereceu uma curiosíssima sentença do juiz da Horta, homem que, pelo seu sentido de humor, deve merecer a nossa admiração perpétua. Quem tal não admirou foi o Tribunal da Relação, que nesse tempo havia em Ponta Delgada, que mandou dar-lhe uma grande descompostura, de cuja leitura foi encarregado o juiz da comarca mais próxima, que era no Pico. O juiz da Horta teve de descer da sua cadeira, e, à vista e aos ouvidos de todos o seus inferiores, foi assim que ouviu a severa admoestação. Que não merecia, penso eu. Opinião que se perceberá melhor passando a uma das partes mais interessantes da sentença, na qual o juiz justificava a decisão em favor do embargante, que se insurgia contra o facto de o embargado dar a vestir à criada as roupas da mulher finada. Sentenciou a seu favor, é certo, mas aproveitou para ridicularizar o homem, como se verá.
“Seria o embargante qual outra primavera de touca, caso se apresentasse enfeitado com um dos vestidos daquela relação a fl. 3; sobrepondo o apertado espartilho, tornando-se assim uma jovem fantástica; e demais se ainda em volta do seu níveo colo voltas desse de fios de finos corais, e se cobertos os dedos de brilhantes anéis, e em desdém sustendo fresco de que, seria, não uma encantadora bela, mas uma decrépita personagem hábil a afugentar assustadas crianças. Era justo pois no requerente arredar para longe esse espectáculo sem privar contudo o mesmo embargante do usufruto de tais objectos.”
Na sentença se faziam outras judiciosas considerações, como aquela em que se justifica, pela leis de Deus e da natureza, que o embargante, também viúvo (e assim se percebe para quem quereria as roupas e atavios) sentisse como é frio o frio que sente quem vive só. Eis, a esse respeito, outro mimo. (Mas faço este parêntese para dizer que, no texto, está “ultémas”, que suponho tratar-se de “ulemas”, como o são os talibans, capazes de inventar sempre a melhor maneira de ler o Alcorão a seu favor.) “Verdade é que o ano não vai bem para enlaces matrimoniais. Uns saem mancos, aleijados, outros farfantes e de estulta impostura, mas não é decerto a tanto que se pretende expor o embargante, que antes quer seguir o conceito do velho abade do Bispado de Viseu, que tendo-lhe recomendado observar a constituição do mesmo Bispado que só consente aos revd.ºs párocos ter criadas em casa de cinquenta anos de idade, o bom e inteligente Abade, seguindo a opinião dos sumos sacerdotes ulemas, e para cumprir aquela disposição, tinha duas criadas, cada uma de vinte e cinco anos.”
“O Socialismo, a religião da esquerda, é um dos caminhos mais rápidos para o empobrecimento de uma sociedade”
Bela história e bela moral da história mas com duas mulheres de 25 anos em casa o home deve ter estoirado cedo.
daniel,
Seria corrido da magistratura de hoje, este teu juiz, apostrofado de relíquia oitocentista e remetido à cosedura dos processos por processo manual. Não sabes tu que agora, há bem pouco tempo, a juíza e ex-predidente do TIC Amália Morgadp apresentou uma queixa no CSM contra os seus colegas juizes, a quem acusa de não redigirem sentenças, apenas juntarem anotações de rodapé e deixarem o trabalho de redacção para os oficiais de justiça, que usam minutas de formulário para o efeito?
Este teu juiz não teria espaço para o humor, meu amigo, não obstante o fino recorte do dito. E não teria a enorme piada da justiça dos nossos dias. Isso é certo.
Olá Daniel,
Bem interessante este conto. Tanto do ponto de vista do juiz, bem como aconvivência da rapariga, que enfeitiçou o dito cidadão, sem dúvida.
Um abraço
Geraldo
Boa história esta, mas confusamente contada. Põe lá ordem nisso, para a gente perceber. Farfantes deve ser farsantes, não?