Um romance anda a fazer-se. Há-de chamar-se Deus chega no próximo avião, mas não me comprometo. O primeiro capítulo será como vai aqui. Mas sem este visual de blogue.
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Nunca hei-de perceber porque é que, tarde ou cedo, toda a gente rompe comigo. Até os mais íntimos, até os mais indiferentes. «Não dês as culpas logo a ti», consola-me a Noémia. Por vezes, insiste: «Tens tantas qualidades, tantas! Mas é isso também, acho que é isso, o que fere as pessoas.» E explica melhor: «Elas não aguentam o ciúme que lhes fazes.» A Noémia tem sempre estas profundidades.
A sério. Se há coisa que não entendo, são os invejosos. Eu posso ter, e de certeza tenho, todos os outros pecados capitais, mas a inveja é-me estranha. Invejar, invejar o quê? O que eu quiser conseguir, hei-de tê-lo por mim próprio. E se não, não. O mundo não acaba aí.
O caso do Luciano Malta, sirva esse exemplo. Jamais me apanhou a tratá-lo mal, tive sempre o cuidado de envolver em modos afáveis as reservas ao trabalho dele, convidei-o até várias vezes para almoçar. Era uma maneira de falarmos da família, dos gostos, da sua Constância natal, que tanto refere e onde tem ainda casa, falarmos enfim do que calhasse, tudo menos do trabalho. Porque, julgo eu, é assim, nesse terreno pacato, que os entendimentos crescem. Pois disse-me sempre que sim senhor, mas achou mil desculpas para nunca irmos tomar sequer um café.
E, ontem, foi o que se viu. Pôs-se aos berros, disse inconveniências, tudo diante dos colegas, e não me admiraria que na direcção lhe estivessem a ouvir os mimos. Por mim, fiz quanto pude para acalmá-lo, disse-lhe duas ou três vezes que sim senhor, tinha razão nisto e naquilo, fui mesmo ao ponto de propor trocarmos de funções: eu fazia as correcções mais miúdas, as vírgulas, a ortografia, mexia só em algum vocabulário, ele que amaneirasse depois os textos à sua vontade, falasse com os autores, decidisse com eles o produto final. Procurei ser desinteressado, mostrar que a minha posição ali não era tudo na vida, bem sabendo que a Irene, atenta ao ecrã, estava a seguir-nos a conversa, a sonsa, ansiosa por ver se era desta que eu me espalhava. Pois tanto me valia ter estado calado. Quanto mais terreno eu sacrificava, mais o senhorito perdia as maneiras. Que eu era um cínico, um impostor, um pedante, que hoje em dia «as letras do burgo», termos dele, não estavam à espera das camisas-de-forças em que eu sonhava amarrá-las, e que não era já a primeira vez, nem a segunda, que um autor da casa tinha ameaçado levar os originais a outras paragens.
«Luciano», disse-lhe eu, e quis dar a impressão de que procurava ainda as palavras. «Se as coisas, para você, estão já nesse pé, parece-me altura de a direcção ser avisada.» Parou o gesto, recuou, quase perdia o equilíbrio. Depois, desgrenhado, espumando incapazes raivas, despediu para lado nenhum a sugestão definitiva: «Vá pró car…». Deixou o dito assim, e desembestou dali, enquanto da pasta se lhe perdiam canetas de várias cores. A Irene ergueu ao céu os bem desenhados punhos: «Que mal fiz eu a Deus…» Mas também a eloquência lhe ficou por aí.
Ia eu buscar um café ao andar de cima, quando o dr. Cícero, no corredor, me barrou o caminho. «Chegue aqui». E fez-me entrar no gabinete. «Quer tomar alguma coisa? Toma, que vão sendo horas do meu uísque.» Senti que apreciaria que lhe apanhasse a graça, e eu fiz-lhe a vontade, embora sem o talento que tanto me favorece nestas ocasiões. «Você anda stressado.» Disse-mo, e logo sorriu, enquanto servia generosamente os dois copos. «Esse stressado, aposto, não lhe saía vivo das unhas.» Corrigiu: «Das mãos.» É esta a minha triste fama: a de puritano, a de castigador dos desbragamentos de linguagem. Não, nunca saberão eles a tolerância a que, desde há muitos anos, me venho obrigando.
«Sabe, Gildo», meditou ele, «o poder de encaixe das pessoas…» Mas foi sentar-se, mais propriamente caiu na cadeira, e ergueu o copo com uma indecisão que denunciava outros uísques no bucho. «À sua, Hermenigildo.» «À nossa, doutor Cícero.» O que era cerimónia a mais nas nossas relações. E o doutor atirou, fixando os infinitos, e englobando o Luciano Malta, a editora, a avenida dos Defensores de Chaves, o planeta, a parte reconhecível do universo: «Não ligue, Gildo. Até lhe ficava mal. Você está muito, mas muito, acima disto tudo.» Ficámo-nos olhando, como se algo de decisivo tivesse sido suspenso. Segundos depois, desatávamos a rir, regalados. Já só se falou do campeonato.
A Noémia casa-se com o Hermenigildo?
Já pensaste no espaço que pouparias se o homem se chamasse somente Gil? Mas, como sei que esta história é rigorosamente real, tens de ser exacto.
Venha lá o romance, que não deve faltar quem queira tomar mais algum whisky à custa do Dr. Cícero. Nem precisa de ser um Nec Plus Ultra ou um Dimple. Qualquer Famous Grouse me satisfaz. Ou menos. Ainda que eu não acredite que Deus viaje de avião.
Daniel,
A Noémia não se casará com o Hermenigildo. Mas também nunca se separarão. Mesmo nos piores momentos, que hão-de seguramente vir.
Quanto ao nome, Hermenigildo, ou Gildo… é uma minúscula homenagem a um amigo. De quem o Valupi foi amigo também. Não foi a menor surpresa que tivemos ao descobri-lo.
Constança! Boa! Há tempos queria lembrar-me do nome desse lugar, e nada!
Se não fosse esta homenagem ao Hermenegildo, não chegava lá. Obrigada!
Também temos direito ao 2º capítulo ou vamos ficar a salivar?
Sininho,
Se calhar, se calhar… Tenho de pensar.
Mas para já: não percebo essa conexão entre «Hermenigildo» e «Constança».
Isso tens de explicar-mo.
estou certa, ou esperançada, de que vamos poder contar com a tua generosidade, fernando. não há uma sem três (numa reformulação oportuna).
“Nunca hei-de perceber porque é que, tarde ou cedo, toda a gente rompe comigo. Até os mais íntimos, até os mais indiferentes.”
É aqui que reside o mistério… sobretudo nos empregos.
Constança não é uma aldeola que fica perto de Óbidos, Baleal, mais coisa menos coisa?
Há uns meses atrás andava à procura do nome dessa aldeola, que por força dos anos teimou em desaparecer da minha memória. Quando li teu primeiro capítulo, liguei o interruptor.
Mas se calhar o interruptor está a funcionar mal…
Tudo muito bonito mas faz-me confusão uma coisa: então a terra não se chama Constância?
Claro, JCFrancisco, a terra chama-se Constância, não ‘Constança’. Obrigado. Está corrigido.
De resto, a belíssima Constância – à beira Zêzere e beira Tejo, e onde se diz que viveu Camões – vai ter no romance um lugar de relevo.
Espero que a Sininho agora tenha outras associações mentais.
Ah! Isto está cada vez melhor – Constância! Isso!
Sim, vou ter de certeza Fernando… se fizeres o favor de não me deixares a salivar muito tempo pelo 2ºcapítulo. Força!
JCF, isto é uma canalha que o que quer é apanhar-nos distraídos. Claro que há essa Constância da lendária presença de Camões, e há uma Constance lá para as bandas de Marco de Canaveses.
E também há o bolo constança, que leva os seguintes ingredientes:
Para o bolo
150 gr de manteiga
6 ovos
1 colher de chá de baunilha
240 gr de açúcar
60 gr de farinha
75 gr de cacau
Para a calda
180 gr de açúcar
2,5 dl de água
1 cálice de vinho do Porto
E também há a gula Constante, Daniel, que por mais esforços que se façam, volta sempre ;-)
Sininho, confesso que do mal da gula não sofro. Muito menos da gula doce. Prefiro apimentados, azedos e amargos. (Não no que se refere a temperamentos humanos, claro.)
Este primeiro capítulo é uma delícia. Abre a porta a um Portugal do tamanho do mundo (desconhecido, de tão próximo). E a acção/narração está um primor. Sim, senhor.
Ninguém escreve como tu, Fernando. A sério. Seria gajo para detectar a autoria deste texto a quilómetros de distância. Grande honra a nossa de publicares aqui o primeiro capítulo.
hum, Fernando, acho que vale a pena teres isto em conta no mercado, pressagiam-se estranhos amores, antes ilícitos?
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1310211&idCanal=13
FMV:
Conheces a Comissão Nacional de Protecção de Dados – Privacidade?
E conheces o artigo 11º da Lei 67/98 de 26 de Outubro?
Se conheces, acho bem que retires lá de cima o que escreveste. Não porque me prejudique. Nem uma coisa nem outra estão completas. Mas pela impunidade a que te julgas com direito. Pisaste o risco. E ficaste mal-visto. Mostraste como és maldoso e vingativo.
Pode “não haver pão para malucos”. Mas também não há paciência para aturar criancinhas com birras como as tuas.
Marcelino Caldeira da Silva Gomes
Tás a ver, Marcelino? Fazem-se-te todas as vontadinhas. Está apagado o comentário.
Eu tinha copiado para aqui o teu texto, pensando que o tivesses colocado na caixa errada. Era só para teu bem, pensei eu na minha inocência. Afinal…
Afinal, fala-se-me agora em birras, em maldades, em vinganças.
Sabe-se lá o que ficou por dizer!
Por enquanto, mais nada. Foste sensato. Pelo menos, ainda te restam algumas qualidades.
Marcelino Caldeira da Silva Gomes
(Vou ler os seguintes capítulos, que não li por falta de tempo)
Deus ainda não chegou no próximo avião, Fernando! E eu tenho saudades tuas!!!