Manuel sacudiu a água da mão, que caiu em gotas devolvidas à corrente que descia com um rumo certo, contornando cabeços e saltando penedos, até onde não se pudesse distinguir nenhuma origem de nenhuma água. Mas, mais abaixo, detinha-se um pouco na pequena largura de um poço onde as mulheres lavavam a roupa.
Das idosas, sempre houvera umas que enrolavam a saia nos joelhos, sem se importarem de a molhar com a água que saltava na viagem das mãos entre o poço e a roupa, e outras que descuidavam o inútil pudor da sua ruína física. Das mais novas, algumas imitavam aquele recato, outras expunham a generosidade de um palmo de coxas à cobiça de quem passava.
As pernas das lavadeiras tinham envelhecido. Começava a valer pouco a pena ir até ali, por acaso ou de propósito, e olhar disfarçada ou claramente. Já nenhuma protestava contra a passante presença, já nenhuma ajeitava a roda da saia, num gesto subinte de fingido desleixo, em descarada provocação.
Nessa Primavera, Joana ainda lá fora pela roupa do marido e pela sua. Mas, do filho que haveria de nascer-lhe, pouca seria rebaptizada naquela água, porque ela iria para França no fim do Verão.
Quando o menino nasceu, Manuel percebeu que talvez fosse o último a vir ao mundo da serra. Chamar-se-ia João, e por isso lhe ocorreu imitar Gil Vicente e o seu “Auto da Visitação”, presenteando a jovem mãe e o filho com um cordeiro e um poema.
Os versos, fizera-os ele e terminavam assim:
“Subiste à serra descendo/ de alturas muito subidas./ E que o Deus dessas alturas/ e de todas nossas vidas/ te faça tão venturoso/ como um rei verdadeiro./ Aqui trago este cordeiro, / de um ano e muito formoso,/ meu dom João derradeiro.”
Três meses depois, pai e mãe, com os parentes mais chegados, comeram o cordeiro na despedida da aldeia. Como uma celebração da Páscoa.
Arquivo da Categoria: Daniel de Sá
O meu Avô Mello
Estas são algumas das memórias escritas pelo Dr. Jim Mello, pai do Nobel da Medicina Craig Mello. A minha tradução foi autorizada por ele, que também me autorizou a publicá-la onde quisesse. Nota curiosa: o avô do Dr. Jim Mello morou na rua onde eu nasci e resido, tendo sido nesta que nasceu o seu pai.
Este é o relato do que recordo de meu Avô Mello. Lamentavelmente incompleto, decerto não faz justiça ao homem mas é quanto posso, e quero deixá-lo registado para gerações futuras. O seu nome era Eugene Mello (N.– Eugenio Mello, no registo de baptismo). Nasceu na ilha de São Miguel, Açores, Portugal, cerca de 1880. (N.– Nasceu em 12/10/1873) Foi o terceiro filho (N.– segundo) de seu pai, que era agricultor, mas a terra que este possuía era demasiado pequena para suportar uma família, caso fosse dividida. Por isso meu Avô precisou de procurar outros meios de subsistir por si mesmo. Não sei nada acerca da sua infância e juventude, mas desejo visitar um dia a sua terra natal para fazer uma ideia de como seria o ambiente. Quando veio para Rhode Island estava casado e tinha três filhos: Ana, a mais velha, um rapaz que morreu já aqui, e José. (N.– Tinha seis filhos, segundo o rol paroquial) Muitos jovens portugueses vieram para Rhode Island e para o litoral de Massachusetts em finais do século XIX e princípio do XX, à semelhança da invasão hispânica a que assistimos agora. Meu Avô trouxe apenas a sua força e determinação. Não falava Inglês, não tinha dinheiro e não sabia ler nem escrever. Assim, teve de confiar nos portugueses que já aqui viviam para o ajudarem a encontrar trabalho. Não sei o que fez para se manter nos primeiros tempos, mas trabalhou durante a maior parte da vida nos Caminhos-de-Ferro de Nova Iorque, New Haven e Hartford, que serviam Bristol e Warren. Dei a Jake o seu velho relógio de algibeira, que era a única recordação sua que eu possuía. Ele precisava de um relógio no trabalho a fim de saber quando a linha tinha de estar desimpedida para a chegada dos comboios, e penso mesmo que esse relógio terá sido para ele um motivo de orgulho. Tento imaginar muitas vezes as primeiras andanças de meu Avô por aqui e como teria sido a sua vida.
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Será que isto pode servir como crítica sintética a Das Märchen?
Carta que escrevi ao Baptista Bastos tentando imitar o estilo de Vieira
Senhor,
Dá Deus o dom da fala a todos os homens, mas a alguns somente o da palavra. Porque também os tontos falam, pelo que não é à míngua de inteligência que há quem não fale; e falam os néscios, pelo que ao falar não faz falta o entendimento; e falam os brutos, pelo que ainda que aos homens falte a sensibilidade, sendo mudos não o serão por causa disso.
Mas ao dom da palavra se requer inteligência, entendimento e sensibilidade. Inteligência, para saber o que convém ser dito; entendimento, para discernir como se deve dizê-lo; e sensibilidade, para escolher o momento oportuno em que o ouvinte seja disposto a ouvir.
O dom da palavra pode abrir os ouvidos que teimam em estar fechados ou fechar os ouvidos que sempre estão abertos. Porque há aquilo que deve ser ouvido, e há quem não queira ouvir; e há o que não convém que seja ouvido, e abunda quem queira ouvir.
A vós, senhor, deu Deus o dom da palavra. E muito me regozijo porque haveis sido lembrado para lembrar o dia em que minha mãe me pôs no mundo, para nele ficar até quando o Senhor das nossas vidas for servido. Porque desde o dia em que nasci muitas vezes morreram mil vezes mil homens, e eu continuo vivo, não por mérito meu senão pela graça de Deus e pela bondade de corações como o vosso.
Desculpai-me, senhor, se tão mal ditei esta carta que quem ma escreve não a entendeu bem, ou se, ditando-a eu como devia, não fui entendido como convinha.
A rogo do P. António Vieira, S. I., por não poder escrever,
Daniel de Sá
Balada para Victor Jara
(E para o meu amigo Manuel Estrada e todos os que queiram fazê-la sua)
“Que horas seriam do dia?”
– Não era dia, eram trevas.
“Ainda há pouco o ouvia…”
– São as saudades que levas.
“Quantos mortos viste, quantos?”
– Não os vi, não os contei.
“Mas ainda se ouvem cantos?
– São prantos, o que escutei.
“Choram as metralhadoras
Pelos homens que mataram?”
– E pelas mães sofredoras
Cujas lágrimas secaram.
“Enquanto o mundo desperta
Em Santiago anoitece.”
– Noite de medos coberta
Que nunca mais amanhece.
“Quem mata tão cegamente?
– A ordem… o ódio, digo.
“Pela ordem morre gente…
– Pelo ódio, o meu amigo.
“Eu tenho a alma encharcada
Da chuva de Santiago.”
– Essa chuva foi sangrada
Da f’rida que aberta trago.
“Chuva que nunca mais pára!
Victor Jara, vão calá-lo?
– Ninguém mata Victor Jara,
Por mais que queira matá-lo.
A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE RITA GORDA
(Do livro Stories Gandma Never Told, de Sue Fagalde Lick, escritora americana de ascendência açoriana)
– Tradução de Daniel de Sá –
Rita da Silva não era a noiva que Frank Lewis desejara. Quando ele deixou o Faial a caminho dos Estados Unidos, prometeu a sua irmã Carolina que a chamaria logo que tivesse dinheiro suficiente. Os anos passaram sem uma palavra de Frank. Cansada de esperar, Carolina emigrou por sua conta e risco e casou-se com outro.
Inesperadamente, Frank mandou cinquenta dólares para pagar a viagem da noiva para os Estados Unidos. A resposta foi a de que ela estava casada. A única que restava era a irmã chamada “Rita Gorda”. Com 1,77m de altura e 90 kg de peso, essa última irmã solteira não era bonita, mas, como Frank tinha enviado já o dinheiro, concordou em que ela deveria ir.
A viagem foi um horror. No barco, Rita esteve sempre enjoada e custou-lhe muito arranjar um lugar reservado que servisse de quarto de banho. A família prevenira-a para não comer a comida de bordo porque o barco era muito sujo, e assim ela alimentou-se de pedacinhos de pão e queijo que levara de casa. Só falava Português, e não teve ninguém com quem conversar durante a longa jornada. A sua única companhia era um livrinho de orações.
Desembarcou em Boston, mas tinha ainda um longo caminho a percorrer. A etiqueta da mala pequenina que era toda a sua bagagem dizia Frisco, USA. Agora ia dirigir-se para Ventura, Califórnia, centenas de milhas a sul, mas era sempre o mesmo caminho para os viajantes de Leste. A única coisa que conduzia Rita pelo país fora era o bilhete pregado no casaco, que explicava quem ela era e para onde ia. Quando alguém lhe perguntava, apenas o mostrava. Teve medo também de comer no comboio. Apesar de os revisores terem sido simpáticos quando lhe ofereciam das suas sanduíches, ela pensou que estavam a tentar envenená-la. “Não comas nada, se não souberes o que é”, havia sido prevenida muitas vezes. Sacudia a cabeça e dizia: “No, no, no.” Os desconcertados revisores insistiam: “É bom. Come.” Mas Rita continuava a negar.
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História de um beijo
Naquele tempo não era nada disso que se vâ agora, que isso é tudo um putchedo, o que elas querem é gandaiar, elas é qu’andam atrás dos rapazes, qu’um home inté fica menente com tanta franquidão das raparigas, e as mães c’ma cegas, não vêem ou fingem que não vêem, não falta agora quem viva ameigado, que intigamente um caso desses era ralíssimo, e era uma escandaleira medonha, mas são coisas dos tempos, dizim, mas os tempos não mandam na gente, e isso que cada ovelha paga p’lo seu pé, e não tenho nada que me meter na vida dos outros.
A gente não podia nim sequer tocar na nouva, o senhor padre dezia que antes de receber as ordes não podia dezer missa, assim que nim sequer na véspra do casamento um home podia fazer cousas co’a nouva, era assim mesmo. E só dei um beijo de verdades na minha depois de me casar, mas eu vou-le contar o que aconteceu.
Minha sogra e meu sogro, mais ela qu’a ele, que era uma subica, tinha o rei na barriga, e inté a avó dela, uma pinarreta toda espevitada, tava sempre d’olhos arregalados não le fosse eu comer um bocado da neta. A gente começou a namorar de longe, quando calhava, por ameces, se ela aparcia à jinela, eu fazia uns ferrumecos, a gente ia-se entendendo, mas tanto ateimei que lá quando Deus quis e foi servido deram autorizo do namoro, mas sempre com muntch’ó vigiar, a gente não se podia chegar um ao outro, e mesmo à jinela, se calhava um instintinho sem ninguém tar a ver, ela não me deixava tocar nim c’um dedo, que mamã tá aí, que vavó pode ver, um fogue que las abrase, qu’ambas e duas não faziam outra cousa senão vigiar a rapariga.
Inté um dia, namorando na cozinha, a gente se qu’ria dezer alguma cousa más cá prà gente era por intomas, pra elas não entenderem – a raia da velha não tava, havera de tar falazando c’o as vizinhas –, minha sogra sempre d’olho bem aberto enquanto ia fazendo a ceia, vai botar uma acha no lar, e sempre c’os olhos inviezados, não viu o que tava fazendo tocou co’a mão num tição, deu um berro c‘ma uma alma quando pela o cu no inferrne a primeira vez, foi muncth’ó rebim fecthe.
Segue-se qu’um dia, despous do trabalho, ciei, lavei os pés, calcei as galochas e fui passar por casa dela. Não era dia de namoro, mas era só aquela inlusão de ver se la via, que é qu’o senhor quer, era assim mesmo, cousas da novura. Era já à boquinha da noute, e veje-la na jinela. A casa dela era mesmo incostada à travesa, assim que fou mal desemboquei dei com aquela querida à mão de samiar. Vou devagarinho, ela tava olhando pra baxo, chegue-le ao pé, e presanto-lhe um bejo na cara, de fugidela, que nim sequer deu pra tomar gosto ninum, tá-se mesmo a ver. Mas nisto a corina deu um grito medonho. Ó meu rico senhor, era a raia da minha cunhada, que tava à espera de ver passar o nouvo, a mardita. Eu dei uma corremaça por aquela rua abaxo qu’inté me caiu uma galocha do pé.
Pous intances fou assim mesmo, é verdade, qu’o único bejo qu’eu dei na minha mulher antes de casar não fou nela, fou na irmã!
Minha nega Fulô
Minha Nega Fulô
Não bata não, sinhá,
Não bata não.
Nunca ninguém pegou minha mão
Por gostar,
Nunca ninguém, sinhá.
Papai morreu no negreiro.
Eu viajei segura dentro de mamãe,
Que morreu dez vezes na viagem
E a última na senzala quando nasci.
Nunca ninguém catou meu cafuné.
O sinhô abriu caminhos no meu corpo,
E nem pediu com licença nem por favor.
E eu não mando no sinhô,
Nem mando em mim, sinhá.
Bichinho da terra não tem dono,
Nem ave do céu, sinhá.
Mas se o sinhô gostou meu coração mirim,
Ficou seu dono, sinhá.
Me deixa, dona, me deixa chorar.
Não precisa bater, a dor que eu tenho dá.
Um Stradivarius no Pico da Vara
Paris, aeroporto de Orly, 27 de Outubro de 1949. Completa a lotação do voo da Air France com destino a Nova York. Na grande cidade americana, a solidão de Edith Piaf, que sofre uma das suas depressões tão frequentes. E espera que, na manhã seguinte, Marcel Cerdan se vá juntar-lhe. Mas não há lugar no Lockheed Constellation para o amante, fisicamente o seu oposto, que perdera em Junho o título de campeão do Mundo de pesos médios para Jake La Motta. A sorte, porém, parece estar do lado de Marcel e de Edith. Um casal em lua-de-mel desiste da viagem em favor do grande ídolo francês nascido na Argélia. O avião levanta voo às 20h 05m.
Esta parte da história contém talvez uma lenda romântica, pois só embarcaram trinta e sete passageiros, e o Constellation tinha capacidade para mais de sessenta.
Provavelmente Ginette e Marcel nunca se terão encontrado. Ela não frequenta ringues de boxe nem ele assiste a espectáculos musicais em que Edith Piaf não cante. Mas certamente que não passa despercebida a Cerdan aquela jovem de uma beleza serena, esguia e segura como uma deusa grega. Nem talvez o violino, um Stradivarius, que leva consigo. Viaja com ela um homem também muito novo, que vagamente se lhe assemelha. É seu irmão, Jean-Paul, que costuma acompanhá-la quando as obras a interpretar exigem piano.
A Fome de um Duque
Se as casas vazias não se queixam, nem os gatos parecem estranhar muito ausências a que não estão acostumados, os cães ficam aparvalhados, andam como órfãos, vagueando à procura dos donos e de comida.
O pastor estava no seu almoço de pão e presunto quando viu o Duque. O animal andava vagarosamente. Parou a uns dez passos à sua frente, ficando a seguir com o olhar os movimentos da mão entre a mesa de pedra e a boca. Chamou-o: “Anda cá, Duque.” Ele chegou-se-lhe sem pressas, que talvez nem pudesse, e ficou com a cabeça quase encostada à sua perna direita, à espera. O pastor partiu metade do pão e do presunto, para lhe dar bocadinho a bocadinho. O cão mastigou cada pequeno naco de presunto de um lado, depois do outro, saboreando a fome. Engolia batendo várias vezes os maxilares, fazendo uns estalidos secos com os dentes, de beiços muito molhados e ligeiramente despegados, como que tomando gosto à saliva.
Duque não tinha genealogia. Era um rafeiro cuja nobreza não ia além do nome, uma ironia. Mas tinha carácter. Seria incapaz de deixar os donos como quem abandona um cão.
Cantar as velhas
O cantar as “velhas” é uma preciosidade da cultura popular terceirense. Trata-se de um género de cantigas ao desafio, tradição herdada talvez das trovadorescas cantigas de escárnio e mal-dizer. A brejeirice está sempre presente em cada “velha”, composta por dois tercetos e uma quadra. O seu nome deve-se ao facto de ser normalmente referida uma velha, tendo como contraponto um velho, que com frequência são “avó” e “avô” dos contendores. Actualmente o par mais famoso de cantadores de “velhas” é formado pelo genial João Ângelo, um fenómeno de talento e popularidade, e pelo engenheiro José Eliseu, que se dedicou à prática para ajudar a manter viva esta tradição. Uma “velha” é tanto mais bem conseguida quanto mais disfarçado estiver o significado da brejeirice.
Por desfastio, às vezes escrevo alguma, para me divertir ou divertir os amigos. Aqui deixo três exemplos.
Lição de gramática
Tua avó foi à lição:
“Fá-lo é verbo, falo, não
– É substantivo comum.
Mas, se levar o pronome,
Falo fica, em vez de nome,
Verbo como qualquer um.”
Tua avó bem aprendeu
E a teu avô ensinou:
“No quinhão que Deus te deu
Só o verbo te calhou.”
O orçamento
Teu avô muito suava
De tanto que trabalhava
Para ganhar o sustento.
Tua avó fazia a conta
E não encontrava a ponta
Do novelo do orçamento.
Ela quase enlouquecia
C’o resultado que dava,
Pois quanto mais lhe mexia
Mais o orçamento minguava.
O voto
Uma velhinha sem jeito
Fala mal de tudo a eito,
E não queria votar.
Para fugir ao dever
A velha foi-se esconder
Numa furna à beira-mar.
Tanto o velho procurou
Que deu com ela na furna,
Mas a velha até gostou
De pôr o voto na urna.
Tremor de terra ou talvez não
Durante alguns dias, a terra tremera com frequência. Uns pequenos soluços, uns ligeiros solavancos, mas nisto o que se imagina assusta mais do que a realidade. Bastava um gato passear-se no telhado, uma porta mover-se com um sopro de vento, e logo se gritava “ai Jesus!”, como se já fosse tremor ou terramoto, fim do Mundo ou juízo final. António quase nunca dera por nada, ocupado no trabalho ou dormindo profundamente.
O Manuel Pimentel amarrara o cão, com uma espadana, ao pé do galinheiro, para vigiar os pintos de uma ninhada nova. Estava o dia já mais tornado em noite do que crepúsculo, e as galinhas deitadas, quando apareceu um gato mesmo na cara do zeloso vigilante, que não o fez por menos: com um grito de guerra atirou-se na direcção do inimigo rebentando a frágil amarra, saltou o curral do porco em sua perseguição, subiu para o forno, do forno para as telhas, e, como a rua era ligeiramente a descer e as casas desciam em altura numa proporção semelhante, a fuga e a perseguição aconteceram até à última, num remover e quebrar de telhas que, dentro, ecoavam como um desastre em acto. Estando os sentidos atentos a todo o aviso de tremor, as portas foram-se abrindo uma a uma, com famílias inteiras a virem para a rua aos gritos de “Louvado seja Deus!”, “Credo em cruz, Santo Nome de Jesus!” e outras jaculatórias de imprecação e temor. A Branca, mulher do Manuel Pimentel, percebendo o que se passava nos telhados de cada um, e já temendo que, sabida a verdade e denunciados os culpados humanos pelo seu silêncio comprometedor, lhes viessem cobrar a conta do prejuízo, mandou com sentido de obediência imediata: “Vai lá, Manuel, vai louvar também a Nosso Senhor, se não queres trabalhar toda a semana para pagar as telhas.”
Poema de Destroços
Nota: Este poema não é meu! E, embora seja do Eduíno de Jesus, também não é dele! Tratou-se de uma brincadeira em que sou reincidente. Do seu livro “Os Silos do Silêncio” catei um verso aqui, outro acolá, e, juntando-os, dei-lhes a aparência de um poema novo. Portanto, todos os versos são do Eduíno, a colagem é que é minha. Não mudei nada, a não ser um plural que transformei num singular.
Poema de destroços
Lembro-me de tudo:
Um gesto a abrir,
rosas brancas na haste,
o milagre do pão, a ternura que deixaste
como um rio desliza,
num silêncio de gumes.
Os adeuses digo,
único passageiro no navio.
Levo o saibro das lágrimas,
e vou sozinho. A guitarra da chuva persiste.
Se eu tinha coração? De ouro…
Quase ia dizendo puro,
uma árvore à beira da vida.
Consumiu-o depressa a labareda
neste desolado cais.
No cais da Saudade, morre um sonho mais.
A esfumada paisagem, o porto solitário.
Depois o imenso, profundo oceano,
enquanto o céu ainda é azul.
Comerei o pão que deixaste
para a minha fome,
uma esmola para o pobre marinheiro.
Haverá um sinal?
Apenas um sinal no céu:
Os deuses que tivemos devorámos.
Coração apagado,
uma açucena na estrumeira.
Pior é morrer
culpado de alguma culpa inocente.
E a noite. A noite, por fim, indiferente.
O Requiem da Ginjinha
Perdemos a ginjinha do Rossio
E as bolas-de-berlim ao sol de Agosto.
Os pés hão-de deixar de fazer mosto
E o medronho de dar combate ao frio.
A varina, coitada, está sem pio.
A fruta unificada não tem gosto.
O jornal das castanhas foi deposto,
Mas Portugal ganhou o desafio.
Não temos quem nos ponha em risco a vida.
E se nos pesa muito qualquer carga,
Basta alijá-la logo na subida.
Já ninguém usa lança nem adarga,
Os burros são espécie protegida,
E a escola de Medrões tem banda larga.
Herdeiros das Capelas Imperfeitas
Somos de pura raça lusitana,
Herdeiros de um incerto Viriato,
De um bastardo que foi prior do Crato,
Dos que foram além da Taprobana.
Vendemos lã para comprarmos “lana”,
(“Caprina”, que é negócio mais barato.)
E já produz mais fumo o nosso mato
Do que oxigénio a nossa mata emana.
Povo de heróis, de artistas e de santos,
(Líamos assim… sábios, outros tantos…),
Em seus brandos costumes ledo e manso.
Mas ter como morada este país,
E mesmo assim viver sempre feliz,
– Oh! meus amigos, só de santo ou tanso.
Justiça cega
O rapazinho chorava. O agente da PSP que estava de serviço àquela escola de Rabo de Peixe perguntou-lhe a razão do choro, e ele respondeu: “Minha mãe não teve dinheiro para comprar velas.”
Uns anos antes, o pai fora acusado de maus tratos à mulher e aos filhos. Entretanto, deixara de beber e arranjara emprego. Mas foi então que, numa certa noite, alguns polícias foram buscá-lo a casa para cumprir a pena de prisão finalmente decidida pelo tribunal. Quando ele já não representava nenhum perigo para a sociedade nem para a família, e se tornara indispensável para garantir o sustento desta.
A mãe não tivera dinheiro para pagar a conta da electricidade, que lhe foi cortada. Nem o teve para comprar velas à luz das quais o filho pudesse fazer os trabalhos de casa. E ele estava com medo de que a professora se zangasse.
A justiça é cega. Mas, às vezes, seria melhor que abrisse os olhos.
Outro poema de Emanuel Félix
FIVE O’CLOCK TEAR
Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos parados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio
p’ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora
Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la
E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito
E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos
E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio do silêncio
colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes
Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada
Emanuel Félix
Um poema de Emanuel Félix
A Luz que Guiou os Magos
Houve grande alvoroço entre as estrelas quando se soube que uma delas guiaria os Magos até Belém. A que se julgou com mais direito a essa glória foi a imensa Betelgeuse, tão grande que, se deixasse a constelação de Orion e viesse aos tombos por aí abaixo, poderia esmagar ao mesmo tempo o Sol, Mercúrio, Vénus, a Terra e Marte, como se fossem poeira do deserto sacudida pelas mãos de um gigante.
Mas Deus passou por ela e não a escolheu.
Então Sírio, a mais brilhante, que reina em Cão Maior, convenceu-se de que seria a eleita do Senhor. Mas Deus passou também por ela e não a escolheu.
“Fica muito para o Sul. Sou eu quem mais resplandece a Norte.” Proclamou Vega., confiante no mérito da sua luz. Mas Deus passou por ela e nada lhe disse.
“Serei eu decerto”, pensou a Estrela Polar. “Porque eu guio os homens e hei-de guiá-los por mais uns quatro mil anos ainda, até ceder o meu cargo às minhas vizinhas de Cefeu.” Mas Deus foi adiante.
Na constelação de Centauro, a sua Alfa, a estrela mais próxima da Terra, ganhou todas as esperanças. Beta, sua companheira, com algum despeito tentou desfazer-lhe as ilusões. “Como poderias ser tu a escolhida, aqui sobre estes confins do Sul? E, de facto, Deus passou por ela sem Se deter.
“Sou eu a estrela de Israel. A luz que guiará os magos será por mim dada, certamente.” Saturno o pensou. Mas enganou-se.
Foi então que Júpiter começou a preparar-se para agradecer a divina escolha. Tinha o nome do pai dos falsos deuses, e brilhava intensamente. Quem melhor do que ele poderia anunciar o nascimento do Filho do Deus verdadeiro? Mas Deus passou por Júpiter e tão-pouco o escolheu.
Restava Vénus. O excelente luzeiro das tardes e das manhãs, o companheiro das madrugadas dos pastores. Ali Se deteria Deus para o convite. Mas não. Não era ainda aquela a escolha do Senhor.
Cheias de espanto, e como que não acreditando ser possível, todas as estrelas viram Deus dirigir-Se a uns minúsculos destroços de pedra vagabundos nos caminhos do firmamento por onde a Terra anda. E ouviram, com mais espanto ainda, que Deus os convocava para serem eles a indicar aos magos o caminho de Belém.
“Nós, como, Senhor?” Perguntaram, incrédulos. “Ninguém repara em nós aqui no espaço. Ninguém nos vê. Como poderemos, tão humildes, cumprir tal ordem?”
Deus disse-lhes que Maria também não acreditara ser possível tornar-Se na Mãe do Seu Filho. Mas Ele, o Senhor, sabe exaltar os humildes até à glória que nem os mais poderosos alcançam. E explicou-lhes a sua missão. Precisava de umas centenas que se fossem lançando um a um na direcção de Belém. Ao aproximarem-se da Terra haveriam de deixar um brilhante rasto de luz. Os magos, seguindo-o, chegariam seguros ao seu destino.
E assim foi. Os santos homens viajavam quase sempre de noite, para evitarem o calor do sol do deserto. Não se enganaram nem foram enganados uma única vez. Quando chegaram a Belém, olhando a cidade à sua frente, não sabiam, porém, onde encontrar o Menino. Mas o último dos meteoritos riscou um caminho no céu, mais brilhante que todos os outros, e foi explodir, abrindo-se num leque de luz, sobre o lugar onde Jesus dormia nos braços de Sua Mãe.
Uma Cruz no Presépio
(A Eduardo Nery)
Nota: A história de “A Cruz nas Montanhas” (1807/08) é verdadeira.
* * *
Não era habitual um católico visitar a oficina de pintura de Caspar Friedrich. Mas o padre Olaf Berger era seu amigo de infância. Deteve-se longamente a observar um quadro com moldura de talha dourada à maneira de altar. Uma rocha nua, sem sinais de vegetação, subia em cone, rodeada por abetos, sob um céu de nuvens cor de fogo. No cimo, entre os dois penedos mais altos, uma cruz culminava a paisagem. Uns feixes de luz solar apontavam ao alto como faróis entre nevoeiro, fazendo um deles realçar a imagem de Cristo no crucifixo. E uma hera, mais improvável que os abetos, abraçava até metade a longa haste da cruz. Não havia perspectiva. Apesar disso, a conjunto fascinava. O oiro do baixo-relevo, com anjos e alegorias sobre Jesus e a Trindade, formava contraste com a austeridade das cores e do desenho. O trabalho de talha fora de Gottlieb Kühn, amigo de Friedrich, que o concebera.
Quando o padre Berger acabou a contemplação, perguntou: “Isto é um nascer ou um pôr-do-Sol?”
O pintor pareceu pensar como se não soubesse a resposta. Disse: “Se estiveres cheio de esperança, é manhã. Sem alento, é o ocaso.”
A obra fora criada para oferecer a Gustavo Adolfo, rei da Suécia. Cristo, no alto das montanhas, como Senhor do Mundo e da vida, estava ali em sinal de esperança universal. A redenção que começara com o Seu nascimento. O cenário da cruz era, pois, uma espécie de presépio de Belém. Mas, ainda antes de o quadro estar completo, Gustavo IV, enlouquecido, fora deposto. Caspar Friedrich permanecia como um dos seus raros admiradores, mas já não poderia oferecer-lhe a pintura. E aquele nascer do Sol original transformou-se num crepúsculo da tarde.