Balada para Victor Jara

(E para o meu amigo Manuel Estrada e todos os que queiram fazê-la sua)

“Que horas seriam do dia?”
– Não era dia, eram trevas.
“Ainda há pouco o ouvia…”
– São as saudades que levas.

“Quantos mortos viste, quantos?”
– Não os vi, não os contei.
“Mas ainda se ouvem cantos?
– São prantos, o que escutei.

“Choram as metralhadoras
Pelos homens que mataram?”
– E pelas mães sofredoras
Cujas lágrimas secaram.

“Enquanto o mundo desperta
Em Santiago anoitece.”
– Noite de medos coberta
Que nunca mais amanhece.

“Quem mata tão cegamente?
– A ordem… o ódio, digo.
“Pela ordem morre gente…
– Pelo ódio, o meu amigo.

“Eu tenho a alma encharcada
Da chuva de Santiago.”
– Essa chuva foi sangrada
Da f’rida que aberta trago.

“Chuva que nunca mais pára!
Victor Jara, vão calá-lo?
– Ninguém mata Victor Jara,
Por mais que queira matá-lo.

11 thoughts on “Balada para Victor Jara”

  1. O melhor da toada pátria (a lembrar, na feitura, «Lá vem a Nau Catrineta») posto ao serviço dum belo e triste tema (e é nisso que a pátria toada é boa).

  2. Parabéns ao poeta da Maia que é de toda a Ilha Verde e de toda a Lusofonia porque os outros não percebem. E ainda bem se todos percebessem não tinha piada. O Agostinho da Silva faz anos a 13 de Fevereiro, está perto. Tudo isto anda ligado.

  3. Zé do Carmo,

    Queres tu sugerir que, se não estivéssemos a (deixa ver) três dias da (suponho que casualíssima) data de nascimento desse guru nacional – a coisa andaria menos… ligada?

    Vou-te ser sincero: são estas pataratices dos agostinhófilos que me fazem desconfiar muito, mas muito, dessas coisas que sempre tão ligadas andam.

    Mas, sim, ah! O 13 de Fevereiro «está perto». Mais três (três!) meses, e estamos a 13 de Maio. Isto anda tudo ligado.

    PS.
    E ando eu a ler «A Morte de Portugal», ensaio do Miguel Real, mais «A eternidade e o desejo», romance de Inês Pedrosa sobre António Vieira. E a gostar de ambos. Só julgo é que o Quinto Império nos anda a fazer um mal tremendo. Pelo sonho é que vamos? Pois, vê-se, vamos munta bem!

  4. daniel,
    Ando numa corrida há dias, descanso e consolo-me contigo, como sempre. Vim só bicar um abraço, ‘entronco-me’ mais tarde. Mas ainda se ouvem cantos? São prantos, o que escutei.

    âncio,
    Adoro quando és viperino.

  5. A respiração deste poema lembrou-me a nossa saudade e um poema do próprio Agostinho da Silva que começa assim: «Sou marujo mestre e monge / Marujo de águas paradas / Mas que levam os navios / Ás terras por mim sonhadas». Mal de mim se viesse reclamar o que quer que seja, não sou historiador das ideias, sou um prático.

  6. Nuno, pois é. E quem mata um génio não sabe quanto multiplica a sua força.
    JCF, sou um simples utilizador da Língua, que uso tentando ter com ela o cuidado que meu avô carpinteiro tinha com a madeira com que fazia violas e guitarras.
    RVN, recebi o abraço. Notaste o aperto que te dei nas costelas ?
    Susana, não me digas que tiveste paciência para voltar a lê-lo! Olha, sabes que há pormenores de segundos sentidos que só quem escreve sabe que estão lá, sendo por vezes difícil de entendê-los. Digo isto a propósito da questão com o Fernando quanto a “seja” ou “esteja”, e deixo-te um desses exemplos, que facilmente entenderás. (É um parágrafo de um “sermão” inteiro em que tentei imitar Vieira.)
    “Vários são os passos da Sagrada Escritura em que se lê que a boca tem poder de vida e poder de morte. Ah, que maravilhoso e terrível poder! Pela boca se alimenta o corpo, mas, desatenta do que come, o matará se engolir peçonha. Assim são as palavras, que podem servir à salvação de muitas almas ou trabalhar na perdição de tantas outras. Com a falsidade das suas bocas perversas, quiseram os velhos luxuriosos perder a fiel Susana; mas com a mentira delas se condenaram ambos, porque um disse que a vira debaixo de um lentisco e, o outro, de um carvalho. De maneira que se salvou o lírio de ser arrancado ao jardim da sua vida, e foram arrancados ao paul, de que era a deles, os dois perversos.”

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