Carta que escrevi ao Baptista Bastos tentando imitar o estilo de Vieira

Senhor,
Dá Deus o dom da fala a todos os homens, mas a alguns somente o da palavra. Porque também os tontos falam, pelo que não é à míngua de inteligência que há quem não fale; e falam os néscios, pelo que ao falar não faz falta o entendimento; e falam os brutos, pelo que ainda que aos homens falte a sensibilidade, sendo mudos não o serão por causa disso.
Mas ao dom da palavra se requer inteligência, entendimento e sensibilidade. Inteligência, para saber o que convém ser dito; entendimento, para discernir como se deve dizê-lo; e sensibilidade, para escolher o momento oportuno em que o ouvinte seja disposto a ouvir.
O dom da palavra pode abrir os ouvidos que teimam em estar fechados ou fechar os ouvidos que sempre estão abertos. Porque há aquilo que deve ser ouvido, e há quem não queira ouvir; e há o que não convém que seja ouvido, e abunda quem queira ouvir.
A vós, senhor, deu Deus o dom da palavra. E muito me regozijo porque haveis sido lembrado para lembrar o dia em que minha mãe me pôs no mundo, para nele ficar até quando o Senhor das nossas vidas for servido. Porque desde o dia em que nasci muitas vezes morreram mil vezes mil homens, e eu continuo vivo, não por mérito meu senão pela graça de Deus e pela bondade de corações como o vosso.
Desculpai-me, senhor, se tão mal ditei esta carta que quem ma escreve não a entendeu bem, ou se, ditando-a eu como devia, não fui entendido como convinha.
A rogo do P. António Vieira, S. I., por não poder escrever,

Daniel de Sá

11 thoughts on “Carta que escrevi ao Baptista Bastos tentando imitar o estilo de Vieira”

  1. Daniel,

    Excelente exercício.

    Pergunto-me, só, se Vieira escreveria «em que o ouvinte seja disposto a ouvir». Creio que, no tempo do Mestre, já não era possível esse uso de «ser» por «estar». A menos que pretendesses dizer «se obrigue a ouvir», «se torne disposto a ouvir». E mesmo isso… Repara que Vieira, parecendo-nos antiquado, sobretudo pelos contorcionismos mentais, era linguisticamente do seu tempo. (E, através dos saramagos e dos carvalheiras, do nosso).

    No resto, chapeau e profunda dobra de cintura.

  2. joão pedro da costa,
    Fica calmo. O Daniel ainda não chega aos teus calcanhares nos títulos.

    daniel,
    Atendendo à comprovada fartura de cherne, muito charroco, muito besugo e bué de chaputa na política nacional, vou mesmo ter de considerar esta tua prosa como mais um sermão aos peixes. E anda, admite: o outro, o original, saiu melhorzito, que me dizes? Mas este não está mal. Pronto, está bonzinho. Bem, … vá, deixa.

    âncio,
    olha o lumbago, homem, geme mas endireita-te.

  3. Fernando
    Bom fora para o ouvinte que a cada palavra um só sentido fosse dado, mas é esse ser mudável ou vário que há nas coisas que se dizem, e que nem sempre são o que se ouve ou julga ouvir-se, que muito obriga quem fala a bem escolher as palavras, como semeador as sementes antes da sementeira. Assim que em se dizendo “ser” ou “estar” pode não se estar dizendo o mesmo, e quase nunca se está, porque “ser”, que em tempos, como bom filho latino de “sedere”, foi “seer”, representa, ou apresenta a quem ouve, a ideia de segurança, de estado definido ou definitivo. Porque pode o espírito em um momento estar disposto ao melhor bem e logo no seguinte ceder à mais ruim das tentações.
    Ora quem “é”, ou aquilo que “é”, é porque assim nasceu ou porque aprendeu a fazer-se, e, tendo sido feito ou tendo-se feito, ficou “sendo”. Por tais razões, falar a quem está disposto a ouvir pode não dar bom fruto, se esse estado, sendo de estar, não for de ser.

  4. lá que é bonito, é

    agora ainda lá vamos parar a Spinosa e Parménides, com um cheirinho de Heraclito

    mas eu vim para aqui asinino e feliz e assim peço ao Senhor que me contemple na sua graça

  5. Felizes torneados andais fazendo, Senhor de Sá, em que o meu entendimento ora volteja alucinado, ora se afunda e perde o pé. Mas algo me diz que andastes bem e que grande razão vos assiste. Bem hajais, pois.

  6. Daniel,
    Que maravilha! Que alicerces tão perfeitos e que arquitectura fabulosa e que rico exemplo de argumentação!Amanhã vou pegar neste texto e vou com ele para a aula e pôr os alunos a compará-lo com um de Vieira.
    Ainda não me chegaram às mãos os livros que pedi, mas tenho lido coisas tuas aqui na aspirina e nos blogues da Elisabete.
    És um escritor de mão cheia e entende-se bem tudo o que escreves, sem recorreres a artificialismos que desmotivam os olhos.É uma prosa sólida,a tua, porque de poesia li muito pouco.
    Gostei muito de um poema de Emanuel Félix alusivo ao Natal e deixei lá comentário.
    Tenho a certeza que Vieira deve estar orgulhoso de um tal de Sá, Daniel ,de baptismo,ao qual ele deve ter assistido e, quem sabe,não terá ele próprio derramado, com mão invisível, a água benta…

  7. E muito bem andais vós, Senhor Venâncio, que tanta razão tendes que a concedeis a outros quando não se mostram contra a vossa os argunentos da razão alheia.
    Amiga Lia
    Se alguém eu pudesse escolher ter sido, decerto me ficaria pelo espírito deste homem que guerreou sem fazer guerra, que amou sem macular o amor, que usou as palavras como matéria principal da sua obra, de tal modo que por mais que se servisse delas nunca as gastava, antes as foi aumentando e elevando a tão alto como nunca nenhum antes ou depois dele alcançou fazer.

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