Manuel sacudiu a água da mão, que caiu em gotas devolvidas à corrente que descia com um rumo certo, contornando cabeços e saltando penedos, até onde não se pudesse distinguir nenhuma origem de nenhuma água. Mas, mais abaixo, detinha-se um pouco na pequena largura de um poço onde as mulheres lavavam a roupa.
Das idosas, sempre houvera umas que enrolavam a saia nos joelhos, sem se importarem de a molhar com a água que saltava na viagem das mãos entre o poço e a roupa, e outras que descuidavam o inútil pudor da sua ruína física. Das mais novas, algumas imitavam aquele recato, outras expunham a generosidade de um palmo de coxas à cobiça de quem passava.
As pernas das lavadeiras tinham envelhecido. Começava a valer pouco a pena ir até ali, por acaso ou de propósito, e olhar disfarçada ou claramente. Já nenhuma protestava contra a passante presença, já nenhuma ajeitava a roda da saia, num gesto subinte de fingido desleixo, em descarada provocação.
Nessa Primavera, Joana ainda lá fora pela roupa do marido e pela sua. Mas, do filho que haveria de nascer-lhe, pouca seria rebaptizada naquela água, porque ela iria para França no fim do Verão.
Quando o menino nasceu, Manuel percebeu que talvez fosse o último a vir ao mundo da serra. Chamar-se-ia João, e por isso lhe ocorreu imitar Gil Vicente e o seu “Auto da Visitação”, presenteando a jovem mãe e o filho com um cordeiro e um poema.
Os versos, fizera-os ele e terminavam assim:
“Subiste à serra descendo/ de alturas muito subidas./ E que o Deus dessas alturas/ e de todas nossas vidas/ te faça tão venturoso/ como um rei verdadeiro./ Aqui trago este cordeiro, / de um ano e muito formoso,/ meu dom João derradeiro.”
Três meses depois, pai e mãe, com os parentes mais chegados, comeram o cordeiro na despedida da aldeia. Como uma celebração da Páscoa.
Um abraço de parabéns ao autor deste excelente texto. O Mundo é pequeno: ontem ouvi a viola da terra tocada pelo magistral intérprete Hélio Beirão, amanhã faz cinco anos que comecei a ter uma crónica semanal no programa Inter Ilhas da RDP Açores. Cinco anos passaram num instante.
bonito, sobretudo pela evocação tão pictórica de um quadro que ainda recordo, das lavadeiras no rio.
daniel,
moral da história: é certo que a poesia não enche barriga, mas sempre é melhor oferta que um cordeiro, que dura menos.
(bom naco de prosa, sabe a pouco)
” E outras que descuidavam o inútil pudor da ruína física”.
Tanta verdade neste verso!
Mas a Páscoa e o cordeiro e as lavadeiras no rio ….que saudades, meu Deus!