No DN de sexta-feira, Ferreira Fernandes chamou-me “pedaço de asno”, a propósito da minha última crónica sobre José Sócrates.
Como observou – e bem – um amigo meu, isso não é necessariamente um insulto: dependendo do pedaço do asno de que estamos a falar, pode até ser lisonjeiro
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Um caluniador
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Qual será o pedaço do asno que, aos olhos do caluniador, transformará o insulto numa lisonja? O caluniador não o identifica. Apenas ficamos a saber que até os caluniadores têm amigos com poder de observação. Será o focinho? Será a pelagem? Serão os cascos? Seja lá o que for, é do agrado do caluniador. Algo cujo valor, ou benefícios, ele conhece bem. Algo que o deixaria envaidecido ao se imaginar o feliz proprietário dessa parte cripticamente elogiada do asno. Este enigma leva-nos para a intrincada questão da anatomia de um caluniador.
O caluniador, este caluniador, respondeu primeiro ao Ferreira Fernandes e só ontem ao Óscar Mascarenhas. A explicação para a diferença de tratamento é do foro anatómico. Com o Ferreira Fernandes, o caluniador sente-se à vontade para ser ele próprio. Primeiro, começou por lhe dar um coice. Disse que esse tal de Ferreira Fernandes foi incapaz de encontrar utilidade nos “infindáveis indícios” que substituíam na perfeição inexistentes provas, antes preferindo o surrealismo socrático e sendo conivente com o “sufoco evidente do poder judicial às mãos do poder político“. Convenhamos, não é coisa pouca. Como o Ferreira Fernandes teve a ousadia de se sentir, o caluniador resolveu voltar a encher de bosta uma página do Público. Isto não é mais do que a Natureza a reger-se pelas leis naturais.
Óscar Mascarenhas gastou 7306 caracteres para dizer aos seus leitores que o caluniador, na sua provedoral opinião, se comportava como um pulha – Eis que chega a mais patusca teoria da irresponsabilidade dos colunistas. Como é que um caluniador consegue responder a isto? Há aqui óbvias limitações anatómicas. Não por acaso, nunca ninguém viu uma prova de saltos com asnos. Com burros, sim. Já se viu e vê. Burros em cima de cavalos. Mas asnos a saltar barreiras, isso não. Ora, para lidar com a desanda oferecida carinhosamente pelo Óscar Mascarenhas, o caluniador teve de ganhar muito balanço em ordem a tentar essa avaria do salto asnático. Resultado: meteu as patas pelas patas e acabou estatelado no chão com a cabeça enfiada entre as nádegas. Um exemplo de justiça poética.
Talvez a comparação com outro animal, posto que é de alimárias que estamos a falar, ajude. 1953 é o ano em que The Sun Shines Bright iluminou os ecrãs deste mundo. Ford conta uma história passada no Sul dos Estados Unidos por volta do princípio do século XX. Entre outras peripécias que vão todas dar ao mesmo, o ponto central do filme trata de uma acusação a um rapaz preto. Acusado de ter violado uma miúda branca. Quem o acusou? Cães. Ele estava nas imediações da plantação para onde tinha ido em busca de trabalho e os cães do grupo que procurava o violador começaram a persegui-lo. Ao ver os cães a vir na sua direcção, o rapaz desatou a fugir. Pouco depois era apanhado pelo grupo. O xerife conseguiu chegar a tempo de evitar o linchamento e entregou o suspeito ao juiz. Este mandou-o para a prisão local com vista a ser levado a julgamento em breve. No dia seguinte, o pai da rapariga e um grupo armado avançam pela cidade com a intenção de enforcarem o rapaz sem esperarem pelo julgamento. Ao ver a multidão a chegar, o xerife abandona o local. O único que se interpõe entre os linchadores e o rapaz, à porta da cadeia, é um velho juiz. Um veterano da Guerra Civil, onde combateu pelos Confederados. Last but not least, a cidade estava em período eleitoral e este juiz concorria para mais um mandato na comarca.
O que se passou a seguir pode ser visto graças ao Al Gore, o inventor da Internet, agora mesmo, mais tarde ou nunca: filme integral. Para o que aqui nos distrai, apenas quero elaborar um bocadinho à volta da raça do animal, Cão de Santo Humberto. Os preferidos dos caçadores ingleses e que continuaram essa fortuna farejadora na América. Mas já desde a Idade Média eram usados nas perseguições a fugitivos. Pelas faculdades olfactivas, temos uma canina aproximação à psicologia de um caluniador. O bloodhound é um dos mais apurados especialistas em infindáveis indícios. Contudo, tal como se pode ouvir no filme, esse afunilamento numa só competência deixa-os com défices noutras áreas. Assim, têm também a fama de serem cães estúpidos e não há quem os use para a guarda dos seus bens. Onde eles não falham é como máquinas de captar indícios infindáveis. E que ninguém duvide, no que toca à temática dos indícios desse ponto de vista de um cão que não serve para mais nada, estamos mesmo a lidar com o infinito. Será que algo relacionado com a sua anatomia nos ajudará a desvendar o enigma nascido em relação ao pedaço do asno com que o caluniador se identifica lisongeiramente? Vejamos o bicho.

Atente-se na testa. Não dá para enganar, é a vincada e sofrida manifestação de quem se sente sozinho a contemplar o sufoco evidente do poder judicial às mãos do poder político. Atente-se nas bochechas. Quais cortinas de cena a esconder uma boca destinada à proclamação da verdade. Atente-se na papada. Um cachecol de gordura a servir de agasalho para a friagem vinda de uma sociedade repleta de socráticos corruptos. E atente-se nas orelhas. Grandes, enormes, magníficas, superlativas. Umas orelhas de parar o trânsito e levantar um estádio. Orelhas “John Holmes”, o sonho de qualquer caluniador que se preze e se faça cobrar. Qual destes elementos conterá a chave da afinidade caluniador-asno? Há que proceder a uma comparação anatómica.
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Questão resolvida: o único atributo em comum entre este tipo de cão que nos poupa à chatice dos julgamentos humanos e o asno invocado pelo Ferreira Fernandes em bate-boca com o caluniador são as orelhas. Era das orelhas que o caluniador e o amigo observador estavam a falar. Quão maiores se disser que são, maior a lisonja sentida pelo caluniador, este caluniador, que se passeia livre e jactante na via pública agitando para quem passa as suas pujantes orelhas de burro.