Os mouros são trengos

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De repente, acordámos. O Benfica empatava em Setúbal, com cenas de implosão moral no relvado. No banco, um treinador messiânico, mas sem força para encher um balde de mar vermelho, fazia contas ao destino. O Sporting era borrego no Bessa. A equipa tinha juventude, talento, treinador carismático, condições para treinos vanguardistas, mas não conseguia jogar à bola. E, então, pensámos que a regularidade nos resultados do Porto, ao longo dos anos, e apesar de mundo e meio a lançar suspeitas de tenebrosa corrupção, só podia significar a vitória da competência. Os gajos, lá em cima, eram melhores. E prontos.

E agora? Creio que a solução passa por entregar a gestão do Sporting e do Benfica a um cartel que reúna as televisões, a imprensa desportiva, as cervejeiras, os amigos que ainda conseguem vender couratos à socapa e o Ministério da Economia. É que o País não aguenta o buraco. Quando o Benfica ou o Sporting perdem, ou não ganham, há milhões de pessoas que deixam de ver os telejornais, fogem dos resumos desportivos, baldam-se à compra do jornal, não vão aos estádios, não se juntam com os amigos, não compram cervejas nem frangos assados, deixam os preservativos sem uso. Isto do Porto estar sempre a ganhar é uma autêntica desgraça para o PIB, com a agravante de multiplicar geometricamente a quantidade de deprimidos em Portugal.

Perante este problema, o derby Opus—Maçonaria, no estádio do BCP, é um jogo a tostões.

Apanha-se mais depressa um mentiroso se formos com ele de férias

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O discurso da desgraça foi tranquilamente boicotado ao longo de 2007 pela classe média. As agências de viagens facturaram mais 10% do que no ano anterior. A previsão é a de continuarem a crescer. Conclusão: as coisas podem estar muito mal no reino da Dinamarca, mas no Brasil, Cuba e República Dominicana ninguém se queixa. O fluxo de refugiados políticos em busca do turismo iluminado deveria merecer a atenção das alimárias da oposição, pois estamos perante nova arrogância de Sócrates; agora obrigando os portugueses a passar férias longe da sua terra, alguns até despachados para descaracterizados hotéis de 4 e 5 estrelas.

Como disse o profeta Santana, um dia isto ainda vai dar uma revolta a sério. Talvez na Jamaica.

Cry for me, America

Há a resposta cínica, a qual diz que foi um momento planeado. E depois há a resposta ainda mais cínica, a qual diz que foi um momento espontâneo, e, por isso, revelador de uma fraqueza incompatível com a função a que concorre.

Há a resposta ingénua, a qual diz que foi um momento espontâneo. E depois há a resposta ainda mais ingénua, a qual diz que foi um momento planeado, e, por isso, revelador de um talento superior para a corrida eleitoral.

Hillary estava a falar no meio de mulheres, um dia antes da votação em New Hampshire. Vivia o pior momento da sua carreira política, com sondagens a indicar 10 pontos de atraso para Obama, com a sua equipa escavacada de baixo ao cimo, com todos os jornalistas e comentadores a escolherem gravatas pretas para o funeral do dia seguinte. E perguntam-lhe pelo cabelo. Começa a responder, comove-se consigo, é afagada com aplausos, aproveita o balanço e acaba numa declaração de fé em si própria.

Talvez a América ainda não esteja preparada para uma mulher. Um homem castanho, preto ou amarelo, sim. Já é indiferente. As mulheres continuam seres desconhecidos. Por exemplo, quase ninguém sabe que as mulheres choram quando estão a pensar.

Mar alto e bocas do mundo

Alfredo andou nas bocas do mundo pela primeira vez há-de haver um ano, aqui no Aspirina. Deixara para trás o mar alto de Quipert, ao pé de Nantes, apanhara o Sud-Expresso e vinha ver a mulher, à espera dele em Mira.

Embrulhado em considerandos sobre o salário que tinha, aguentou a travessia de Castela nocturna a poder de cervejas. Chegou à Pampilhosa já toldado, a muito custo encontrou a mulher, e quando lhe passou a bebedeira já estava de regresso a Quipert, outra vez a atravessar Castela.

Hoje volta Alfredo às bocas do mundo pela última vez, através do Aspirina. Há dias a tempestade apanhou-o no mar de Nantes, afundou-lhe a traineira, e em menos de meia hora já o tinha congelado.

a minha rua está salpicada de cocós de várias cores

Para não destoar e, de caminho, cumprir as quotas femininas do Aspirina, deixo aqui um um post feito à conta dos outros. Desta vez vou aproveitar-me de talento alheio que é prata da casa – da minha. A Catarina, numa série de eufemismos fumarentos, saúda a nova lei do tabaco e as melhorias genéricas que esta nova resolução trará por arrasto. Aplaudo uma delas, antevendo o fim da minhas gincanas diárias:
Suponho também que, se ainda não aumentaram, deverá estar para sair um aumento das coimas aplicadas aos donos dos cães que enchem as ruas todas de, literalmente, a merda deles. E que qualquer vizinho imediatamente chamará a polícia para multar o bicho (porque o cão não tem culpa).
Agradeço-te, mana. Ajudaste-me a despachar serviço. E logo com um tema de tão premente actualidade. A merda do costume. Perdão, dos costumes.

Procura-se post

O sempre atento João Pedro da Costa faz, no nosso Aspirina B, uma observação devastadora. Esta.

Há uns valentes meses atrás (adenda: no dia 26 de Junho de 2005, segundo um não menos atento comentador), o Eduardo Pitta escreveu um post muito engraçado sobre o poeta (e meu amigo) Daniel Jonas. Tudo a propósito da edição, pela Cotovia, do livro de poemas Os Fantasmas Inquilinos. No dito post, o Eduardo Pitta lamentava, de forma muito engraçada, a ausência, no livro, de qualquer informação biográfica desse poeta «desconhecido» que teve a suposta honra de ver uma obra sua publicada na prestigiada colecção de poesia da Cotovia (isto é, de facto, mesmo super engraçado, porque toda a gente sabe que a poesia, e sobretudo a contemporânea, é simplesmente ilegível sem qualquer informação biográfica do respectivo autor). O post, que, repito, era mesmo muito mas muito engraçado, terminava com o resultado pictórico de uma pesquisa Daniel+Jonas no Google: uma fotografia janota de um simpático e homónimo cozinheiro.

Ora, entretanto, o post desapareceu. O que é uma pena, porque, de facto, o post era, como já o disse aqui algumas vezes, mas não custa nada repeti-lo, muito mas mesmo muito engraçado. Mas talvez mais engraçado ainda seja o facto de, nesse mesmo entretanto, o Daniel Jonas ter traduzido e anotado para a Cotovia o Paradise Lost de Milton, recebido inúmeros elogios (como este) pelo livro que serviu de mote ao post muito mas mesmo muito engraçado do Eduardo Pitta e publicado mais um belo e arrojado livro de poesia pela Cotovia (Sonótono), o que me leva a supor que, talvez, ele tenha deixado de ser «desconhecido», segundo os padrões do Eduardo Pitta. HTML volant, scripta manent, dirão alguns. É. E acrescento que, por vezes, esse voo é cirurgicamente assistido. Mas pode ser suspeita minha.

Era?

Rui Ramos (historiador), hoje no Público, a propósito de Luiz Pacheco e dos nossos anos 60:

«O grande segredo da cultura literária portuguesa era que, em privado, pouca gente do chamado “meio” levava a sério os “grandes autores” do momento. Em público, porém, todos faziam as esperadas genuflexões.»

«SOS! Será que estou a ficar racista?» de Manuel Geraldo

Metro de Lisboa. Um negro corpulento insulta («Querias era o banco todo para ti! Racista!») um jornalista que lhe chamara a atenção para o espaço indevido que estava a ocupar.

Manuel Geraldo, o jornalista, faz em «SOS! Será que estou a ficar racista?» (Editora CEPAS) uma compilação de reflexões e recortes de imprensa sobre uma realidade dolorosa: o decepcionado percurso do homem africano depois das independências. Um livro desiludido de um jornalista que dedicou a vida a lutar contra opressões rácicas, éticas e culturais.

Aí lemos, por exemplo, o que Mia Couto escrevia no jornal «A Capital» em 2004: «É um facto que os europeus criaram um sistema colonial e de escravatura que levou África para uma situação desastrosa, mas isso foi sempre feito a duas mãos dado que houve sempre africanos que colaboraram e participaram na construção dessa situação como um sistema. Não devendo haver por isso a visão de nós somos os puros e eles os que estragaram.»

Também em «A Capital», o cantor e compositor Fausto afirma numa entrevista conduzida por Viriato Teles: «No tempo colonial a mandioca dividia-se, agora já nem a mandioca se pode partilhar. É um povo que está completamente abandonado e o melhor é não opinar sobre os governantes. A guerra civil teve mais tempo do que a guerra colonial e, portanto, quando um povo se vê assim, a gente tem de apontar o dedo a quem está no Governo. A independência de um país concorre sempre para a felicidade, quem se vê livre do jugo de alguém tem de ser mais feliz a seguir. Com a infelicidade do povo angolano chegamos à conclusão de que não houve independência.»

Se calhar também eu ando distraído

O sempre atento Eduardo Pitta faz, no seu Da Literatura, uma observação devastadora. Esta.

“Ouvidos pela Lusa, Vítor Aguiar e Silva, da Universidade do Minho, e Manuel Gusmão, da Universidade de Lisboa, disseram: «Sempre admirei muito em Luiz Pacheco o seu espírito de irreverência, a liberdade crítica, a capacidade de destruir corrosivamente as convenções, quase sempre mortas já. […] Era um espírito que, naquela atmosfera passiva, adormecida, dos anos 50, 60 e ainda 70, trouxe, por vezes com excessos de linguagem, uma lufada de ar novo. Era dos espíritos mais irreverentes deste país.» [V.A.S]; «Obra escassa, mas bastante interessante, com destaque para Comunidade e O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor […] praticou uma fusão entre a literatura e a vida, o que significa uma espécie de projecto de linhagem romântica, mas de cariz surrealista.» [M.G.] Não me lembro, em vida de Luiz Pacheco, de ler uma linha a seu respeito assinada por qualquer destes professores. Mas pode ser distracção minha.

Poema de Destroços

Nota:  Este poema não é meu! E, embora seja do Eduíno de Jesus, também não é dele! Tratou-se de uma brincadeira em que sou reincidente. Do seu livro “Os Silos do Silêncio” catei um verso aqui, outro acolá, e, juntando-os, dei-lhes a aparência de um poema novo. Portanto, todos os versos são do Eduíno, a colagem é que é minha. Não mudei nada, a não ser um plural que transformei num singular.

Poema de destroços 

Lembro-me de tudo:
Um gesto a abrir,
rosas brancas na haste,
o milagre do pão, a ternura que deixaste
como um rio desliza,
num silêncio de gumes.
Os adeuses digo,
único passageiro no navio.
Levo o saibro das lágrimas,
e vou sozinho. A guitarra da chuva persiste.
Se eu tinha coração? De ouro…
Quase ia dizendo puro,
uma árvore à beira da vida.
Consumiu-o depressa a labareda
neste desolado cais.
No cais da Saudade, morre um sonho mais.
A esfumada paisagem, o porto solitário.
Depois o imenso, profundo oceano,
enquanto o céu ainda é azul.
Comerei o pão que deixaste
para a minha fome,
uma esmola para o pobre marinheiro.
Haverá um sinal?
Apenas um sinal no céu:
Os deuses que tivemos devorámos.
Coração apagado,
uma açucena na estrumeira.
Pior é morrer
culpado de alguma culpa inocente.
E a noite. A noite, por fim, indiferente.

Mochila

Levantou-se da cama, pôs a mochila e – não se diria – achou-se vestido. Não era Verão, nem nada parecido, e até sentiu um arrepio.

Na rua, as pessoas olhavam espantadas (modo de dizer, porque era bem pior) e ele perguntava-se que é que dera, agora, ao Mundo.

Chegou ao quiosque, mas já não à bica. Prenderam-no quando estava a fazer o pedido. Foi só então que reparou.

– Só por isto? – e apontou o entrepernas. – Ainda vocês não viram nada.

Apanhou dois meses por ofensas à autoridade.

Barreto saloio

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António Barreto dignifica-me como cidadão. Portugal é melhor, muito melhor, com ele do que sem ele. Os portugueses devem-lhe 30 anos, ou mais, de intervenção pública marcada por uma ética republicana e democrática exigente, rara; o que o levou para um trilho independente. Nesse lugar faz-se boa crítica e crítica da boa. Ele é um dos senadores guerreiros, daqueles que velam pela nossa liberdade, com actividade académica de mérito e actividade mediática de relevo. Sou seu leitor e admirador. É por isso que sei que ele está acabado.

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Like A Rolling Stone

Este ano, não vou maçar ninguém com listas dos vídeos musicais que mais fizeram vibrar a minha corda sensível em 2007, porque cheguei à conclusão que já falei aqui de quase todos eles. No entanto, gostaria de chamar a vossa atenção para aquele que considero, de longe, o mais belo videoclipe que alguma vez vi na minha vida. Foi produzido e realizado o ano passado por Koichiro Tsujikawa para o muito etéreo «Like Rolling Stone», um tema desta obra-prima de noise-pop que é Sensuous (2006) de Cornelius. Para além do enorme trabalho que terá estado por detrás da sua produção (aquilo é tudo stop-animation com uns muito subtis efeitos de chroma-key) e do facto do som e das imagens se fundirem num todo uno e indivisível, o que verdadeiramente me emociona ao ver este vídeo (e vocês nem sonham o quanto me custa confessar isto) é conseguir identificar naquela multidão de bonecos todas as pessoas que amei na minha vida. O meu pai, por exemplo, está lá com o seu inevitável fato azul e a sua mala de viagem, a gabardine preta por cima do braço e o chapéu todo estiloso que apenas conheço de fotografias antigas. É sempre bom matar saudades. Oxalá vos aconteça o mesmo.

Esqueçam lá a péssima resolução do You Tube, e vejam lá o meu pai e as pessoas que vos são queridas aqui (Quick Time).

Arte poética para o novo ano

1.

Não me assiste divino mestre
na dura lida ao touro incerto
mas apenas este vozear terrestre
que tarde noite me mantém desperto

jamais pobre cautério de esteta
mas disciplina de pedra sua calada
condição sequer música que faz alada
a trama viscosa da prosa mais perneta

no sombrio intervalo entre erro e erro
meto suor desespero assobio de medo
por meu engenho demasiado perro
(às vezes há que afiar o esmeril a dedo)

mas no tempo da safra esquecer o berro
que isto de dores redentoras é engano ledo

2.

Tudo no poema é vero e sentido
estertor berro cãibra tudo é final
que contrabandeia a pauta qual
eco repetido ou fugitivo estampido

piéria voz decadente e glabra
que esta rupestre moldura guarda
tudo é esta rouca música em que te vens
pobre poesia que nem o pagode já entreténs

rilkes em muzot perscrutando o adriático?
rimbauds negreiros estações no inferno?
só o meu vizinho e o seu berro ciático
sempre que o calendário assinala inverno

digam lá se a poesia fez ou não progressos
enquanto com o mindinho sondo os recessos

José Luís Tavares

Até sempre, Luiz

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Era um homem que não conhecia o medo. Por isso metia respeito.

«O nosso primeiro e único contacto foi há bem vinte anos, e seria excessivo presumir que você hoje o recordasse. No Largo de São Roque, em tarde ensolarada, trocámos uma dedicatória e uma nota de banco. ‘Levas, mas dás vinte paus.’ Eu fiquei para sempre a ganhar.»

fvm, Maquinações e Bons Sentimentos 

(O meu livro é de 2002, o texto citado de 1995. O livrinho de LP era Comunidade, um relato sublime. Desde então, visitei LP por várias vezes. Em 1975, com vinte escudos fazia-se – calculo por alto – o que hoje se faz com dez euros. O procedimento, disseram-me, era habitual, e o preço bastante estipulado).

Luiz Pacheco, obrigado por teres nascido em Portugal

Voltando à minha missão nesta tribuna: cai-me nas mãos um livro novo ou uma reedição para crítica. Conhecendo o autor e as actividades dele em vinte anos, posso eu (devo) constranger-me a uma imparcialidade impossível por falsa? Dito por outros termos: posso (devo) fazer tábua-rasa da sua conduta, naquilo que nos opusemos e opomos se as atitudes que os vi tomar forçosamente abandalharam as suas obras? reduziram-nas a uma mercadoria congeminada na mentira e na má-consciência? Vos arrenego que tal não farei. DIZE-ME QUEM ÉS E COMO AGES, DIR-TE-EI O QUE ESCREVES. De caras e cara-a-cara. Logo, loguinho. Antes de abrir-vos o livro aposto comigo (se é tipo meu conhecido) e depois vou ver. Lá está! Queriam (convinha-lhes, não era?), então, que ficasse calado? fizesse friamente a dissecação retórica e inútil da polivalência significante, da linearidade de expressão, da libertação metafórica, do gosto pelo conceptual, do esquema rítmico, da intencionalidade fundamental, do teor poético, oh meu Deus! Ná!… Tiro-lhes antes o retrato à la minuta (mas com uma, a minha, memória de elefante) e já ‘stá!… Saiu fotomaton? paciência. Foi do meu mau-humor do momento. Ou da caricatura em que se tornaram. Caricatura de homens, de escribas. A culpa não é minha se o retrato ficou parecido e tresanda a malfeitor procurado pela polícia. A isto chamo crítica de identificação.

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Colhido, ao calhas, em LITERATURA COMESTÍVEL, Editorial Estampa, 1972, p.126