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Coerência

No início da polémica sobre os cartoons dinamarqueses disse o que pensava sobre o assunto: defendo o direito à liberdade de expressão e nem por isso me sinto obrigado a ser solidário com o seu conteúdo e com os seus objectivos. Logo passei a ser um defensor da censura. Agora, a propósito do julgamento do “historiador” de extrema-direita David Irving, reafirmo coerentemente o mesmo: defendo o direito à liberdade de expressão e nem por isso me sinto obrigado a ser solidário com o seu conteúdo e com os seus objectivos. Sendo certo que, desta vez, é de anti-semitismo que serei acusado.

Mas daqui não saio: todos os bandalhos que usam a liberdade de expressão para espalhar o ódio e a ignorância devem ser livres de o fazer. E nem por isso deixam de ser bandalhos. A negação do Holocausto não é, ao contrário do que tentam apregoar os defensores de Irving, um debate científico. É a propaganda vinda das profundezas do que de mais sinistro a Europa conhece. Mas a verdade é que esta condenação a três anos de prisão, resultado de uma lei que nasce da má consciência de um país que nem a desnazificação conseguiu fazer até ao fim, deu aos radicais muçulmanos o argumento que lhes faltava: isto da liberdade de expressão tem dias, tem pesos e tem medidas.

Estas polémicas podiam ao menos ter uma utilidade: acabar com todas as leis censórias e adoptar a tradição americana (que nos últimos anos tem sido abastardada) que, nesta matéria, é bem mais liberal do que a europeia. O desrespeito por símbolos nacionais, o discurso racista ou homofóbico, a “glorificação” do terrorismo ou da guerra ou a negação de indesmentíveis factos históricos deve ser livre e apenas combatida através de argumentos ou do isolamento político e social. De fora, apenas a difamação e o incitamento à prática de crimes. No último caso, a fronteira legislativa deve ser clara e não permitir leituras abusivas. Nesta matéria, mantenho a minha coerência. Mesmo quando não me apetece nada.

Negacionismos

Sob o título e sobre o tema acima, Vasco Pulido Valente escreve um excelente post n’O Espectro (desculpem a falta de link, mas eu venho do jurássico, e lá nunca aprendi essas coisas). Único senão: a comparação de Auschwitz com o Gulag – que VPV inclui no seu elenco das formas de negacionismo e que eu concordo que é falsa, porque o Gulag não era um sistema de extermínio, muito menos etnicamente motivado (tem muito mais que ver com o universo concentracionário “ancien régime” do czarismo do que com qualquer sistema genocidário “moderno” ou com o “mal banal” Eichmanniano) e imoral, porque nega o carácter único de Auschwitz – paradoxalmente, não ocorreu nunca, como VPV sugere, durante o período stalinista, mas sim depois: apesar do “totalitarismo” ser uma construção ideológica dos primeiros anos do “containment”, e de a aproximação do nazismo ao comunismo (ou até da justificação do nazismo pelo comunismo) remontar, pelo menos, a Nolte, é na só na “segunda guerra fria” francesa dos anos 70 – quase vinte anos depois do XX Congresso do PCUS, portanto – que essa comparação ganhou o carácter de quase evidência que tem hoje; é obra de Furet e dos seus pares, e dos “nouveaux philosophes” – bons propagandistas, talvez, mas muito piores historiadores. Eu não sou velho, mas ainda me lembro do culto parisiense de Soljenitzin e de este ser declarado a “consciência moral” do Ocidente; isto passou-se, claro, antes de o dito ter aberto a boca e explicado o que pensava desse mesmo Ocidente, que o adulava, mas adiante: Soljenitzin era (e é, eu pelo menos acho, reaccionário que seja) um notável escritor – mas é obsceno falar do “Gulag” (assim, como conceito unificador) em paralelo a “Auschwitz”.

A América não era outra coisa?

BrokebackMountain_h2.jpg

Fui ver o filme. Nele fuma-se (muito), bebe-se (muito), matam-se a rifle veados (veados tipo Disney), comem-se veados (tipo Disney, claro), grita-se «Jesus Christ» como variante de «fuck you», brinca-se com os Pentecostais e com os Metodistas. E com o Papa. Ah, e há dois homens que não aguentam quietos juntos.

Se isto é a América, começa a ser muito, mas muito correcto gostar da América.

Além da Serenella Andrade, o que há de estranho na extracção da lotaria?

Resposta: a patusca invenção das “dezenas de milhar”, apensa a uma das redomas do sorteio. Apesar de a ninguém lembrar dizer “dúzias de ovo” ou “centenas de ano”, a coisa anda por todo o lado: em acórdãos de tribunais, documentos de universidades, discursos presidenciais, entradas da Wikipedia, etc. E neste “etc.” até cabem blogues por norma bem-falantes. Ele há epidemias bem esquisitas.

Mais achas para a fogueira da liberdade de expressão, ou “Poor Charles and the appalling old waxworks”.

Prince Charles’ lawyers fight diary leak

The prince believes the diaries were accessed unlawfully
Prince Charles is entitled to keep his personal documents confidential, like “the humblest private citizen”, his lawyer has told the High Court.
Associated Newspapers is being sued for breach of confidentiality and copyright after the Mail on Sunday published part of his private journal.
In extracts about the 1997 Hong Kong handover, the prince described Chinese officials as “appalling old waxworks”.
The prince claims eight diaries were copied by a former member of his staff.
“We say it is absolutely vital to the position of the claimant, and anyone else in his position, that this sort of document cannot be published willy nilly by the press,” said Hugh Tomlinson QC, for the prince.
Mr Tomlinson said Prince Charles had given copies of his private journals to family members, friends and advisers over the last 30 years in envelopes marked private and confidential.
“The claimant does not intend or wish to publish the journals although it is possible that after his death, edited extracts may be published,” he said.
Like everyone else, from the humblest private citizen to the highest public figure, he is entitled to keep his personal documents private
The Prince of Wales says the documents, including the 3,000 word journal he titled The Handover of Hong Kong – or The Great Chinese Takeaway, were unlawfully copied and wants the court to order their return.
In another reported extract published by Mail on Sunday in November 2005, Prince Charles described one ceremony as an “awful Soviet-style” performance and dismissed a speech by then-Chinese President Jiang Zemin as “propaganda”.
His client recognised he was the subject of public comment, Mr Tomlinson said.
“What he says, however, is that like everyone else, from the humblest private citizen to the highest public figure, he is entitled to keep his personal documents private.”
Mr Tomlinson said the publication in the Mail on Sunday could not be justified as “press freedom” as the right of free speech was governed by responsibilities.
He told the trial judge, Mr Justice Blackburne, that the prince’s legal team had decided against seeking orders for confidentiality over witness statements in the case.
Associated Newspapers, together with other media organisations, had been trying to stop the case being made the subject of such rulings.

(Extraído há meia-dúzia de minutos do site da BBC)

Idiotia e liberdade

Um idiota que andou durante anos a fazer dinheiro dinheiro à conta de obras de “história” em que negava o Holocausto está preso e a aguardar julgamento na Áustria.
Alguns outros idiotas, que resolveram provocar a comunidade islâmica na Dinamarca com umas caricaturas sem grande graça, vendendo mais uns jornais pelo caminho, são heróis da liberdade de expressão.
Aguarda-se agora a aparição de reimpressões das teses de David Irving em resmas de jornais europeus, outras tantas provas de solidariedade desta Europa tão tolerante.

Em duas palavras

Pegava no currículo de Direito e deixava lá uma única cadeira, “Das Cadeiras em Geral”, com sebenta em dois vastos volumes, editada de preferência pela Almedina e escrita por algum antigo ministro do Prof. Oliveira Salazar (no final do quinto ano, para assinalar cinco anos de puro desperdício, haveria um único exame, um exame-súmula, um caldeirão jurídico que consistiria na prova de um hábil manejo dos códigos por parte do examinando, o mestre pedir-lhe-ia um artigo difícil e ele, de olhos fechados, encontrava-o logo à primeira com os seus dedinhos lestos).

Acabava com as bandas todas e mandava o R. saltar para o palco imitar o vocalista, o guitarrista, o baterista & o baixo, sem som nem nada, e depois ficava a gozar o prato à distância, até o produto acabar, o R. desmaiar de exaustão ou alguém desligar a electricidade e ficar tudo calado e às escuras (o público que interpretasse então o silêncio, se quisesse: como a música anda de péssima qualidade, só pode ganhar com uma dieta assim, este silêncio são as cinzas de que poderá renascer um dia).

(Isto na música; no desporto, atacaria em primeiro lugar, por causa do irritante high moral ground que reivindicam, os jogos olímpicos, que, mesmo se apenas de quatro em quatro anos, são sempre uma maçada e uma despesa:) Acabava com as modalidades todas e ficava só uma, a “pose olímpica”, ganhava o mais garboso e pronto, era o único que verdadeiramente merecia, uma só medalha, um só hino, uma só cerimónia, le tout vite fait, uma tremenda economia.

Sonho com um futebol parado, onde nunca nada aconteça, ninguém perca, ninguém se magoe, onde os campeonatos não comecem nunca, nem muito menos cheguem ao Natal, onde todos sejamos campeões, tomba-gigantes de gigantes que nunca tombaram. Sonho com um futebol falado, uma conversa sem fim e sem propósito, recordado em vez de visto, descrito em vez de jogado, o futebol de senhores que devia haver no lugar do futebol de carroceiros que há. Se eu mandasse (ai, se eu mandasse!…), se eu mandasse (mas quem disse que eu queria mandar?), se eu mandasse (apenas, sem excessos, como um bom pai de família), suspendiam-se os jogos, dissolviam-se os clubes, depurava-se o público e acabava-se com o futebol de vez, sempre por amor ao futebol. As vitórias morais da minha infância confundir-se-iam assim com as vitórias propriamente ditas, que sempre invejaram, em cujo encalço sempre seguiram e cuja sombra sempre habitaram; subversivamente, os campeões passariam a ser sempre justos; e enfim, vasto como a vida, o futebol confundir-se-ia em definitivo com ela, deixaria de ser a chatice de desporto que alguns aindam teimam que ele é para passar a ser a musa, o mote, a filosofia que sempre será.

Em duas palavras, a crescente complexidade do real requer uma redução drástica da nossa disponibilidade mental; em duas palavras, é preciso apreender menos para perceber melhor (no further comments, j’en peux rien pour vous, quem ainda não percebeu que meta explicador).

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