Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Não levem a mal

Espero que não me ponham a ferros por dizer isto, mas eu estou convencido de que a maior parte da rapaziada dos dois sexos que aqui vem matar o tempo ou irritar-se, ler mexerico fresco e novidades do para-socialismo socrático, dar ou levar porrada de criar bicho, fazendo uso de pulmão ou megafone, a primeira coisa que faz é dar um relancear ao nome de quem assina o post. Quando o nome agrada ou convém, algo que tem pouco ou nada a ver com o apreço ou admiração que se tem pelo escriba despejador, já todos têm uma ideia do número de palavras envolvidas. A seguir, computa-se tudo isso em dois segundos e meio e consulta-se a lista de autorizações e prioridades penduradas no interior das próprias cabeças de acordo com as preferências políticas ou outras e perde-se mais um segundito ou dois a coçar queixos, ponderando se realmente merecerá a pena perder o tempo precioso. Se ainda indeciso, apesar do arsenal racionalista que utilizou, o leitor, ou leitora, calmamente dando volta à manivela da rotina defensiva, pode passar à fase seguinte que envolve o sacrifício de ler as primeiras linhas do post, não vá perder algo interessante. Umas vezes, meio-prendido pela curiosidade embriagada lá se vai deixando levar à espera que tudo resulte no orgasmito final que bem precisa, outras não. Sem vergonha, também me confesso vítima ocasional desse vício.

Fiquem com esta mensagem dum senhor cansado. Quando eu aqui voltar novamente, sugiro sem entusiasmo ou interesse de qualquer espécie que continuem a ler-me. Ou, alternativamente, façam o que lhes der na real gana e viva a liberdade saloia e colorida. Não liguem à redundância pleonástica dessa sugestão e desta explicação, pois fazem parte do discurso. O que eu realmente vos queria dizer é que não me leiam por mercê ou obrigação. O obséquio e graça reivindico-os como meus, porque sou eu que tenho de dar volta ao miolo a escrever coisas fastiosas, esforçando-me para excitar sem ofender demasiado, provocar sem cair voluntariamente em subterfúgios linguísticos que frequentemente convidam ou encorajam os menos dispostos ou desmotivados, tipo senhora bigornas, a não lerem. Concluo assim, sem ter encontrado espinhas nenhumas pelo meio. Mas não prometo nada para o futuro na área da franqueza escandalizante, nem posso garantir que as novidades irão ser só gozo, desfile de cabeçudos pela avenida portuguesa abaixo. No entanto, esperança é sempre bom tê-la, pode ser que lhes venha a falar dalguma coisa útil, pelo menos superficialmente lembradora do fundamental, do importante, que vocês depois burilarão, aperfeiçoarão e polirão com a ajuda dos vossos instrumentos de gente mais educada do que eu. Todos sabemos que a “importância” que se dá a certas coisas é sempre, simplifiquemos, relativa, influenciável, corrompível e dependente, sobretudo dependente da maneira como se observa, como se pesa o que se lê e se compara, muitas vezes seguindo fielmente opiniões dos nossos amigos e tutores que não nos conhecem, ou conhecem bem demais, parte deles consumadas varinas da tradição que fomos ensinados a admirar e imitar. Mas não subestimem nem esqueçam, e isso é que é realmente soberano, os perigos, as consequências irremediáveis de não nos importarmos de sermos mais uma das muitas vidas que andam por aí rés ao chão, a debicarem migalhas caídas de papo-secos tradicionais fabricados com farinhas magras e refinadas, roubadas do farelo nutritivo e dos minerais preciosos.

TT

Passeio bloguítico

No blogue colectivo Da Literatura, Eduardo Pitta assinala o reaparecimento de Diário Íntimo, livro de poemas de Luís Amaro. Belo livro, excelente edição. Acertada lembrança.

Em Blue Everest, João Camilo reflecte sobre as vantagens do silêncio. Transcrevo:

Não falar é não querer distinguir, preferir não tomar partido. Quem não fala não escolhe, mas também não recusa; não acerta, mas também não erra; não agrada, mas também não ofende; não mostra que sabe, mas também não mostra que ignora; não se auto-retrata, mas também não tem a pretensão de retratar o mundo; não elogia, mas também não condena; não se compromete, mas também não compromete ninguém; não adula nem põe num altar, mas também não calunia nem ostraciza; não se eleva, mas também não se rebaixa. Quem não falou não tem de falar de novo para corrigir o que disse antes. Apesar disso falamos. Porquê?

A Bola é redonda

Portugal foi uma equipa de virgens e fiduciários, fazendo do acaso o terceiro e único segredo das vitórias, e perdeu contra uma colectividade de reformados. Há consolo nisto, a vetustez ganhar à imaculada predestinação. Consolo e alívio, pois já se tinham esgotado as epifanias do pensamento mágico, esse que no futebol exorbita para lá da suposta fronteira que separa a loucura normal da normalidade da loucura. O que é de mais esfalfa, arrenega, mesmo que se trate de milagres (ou sobretudo, pois os milagres favorecem a procrastinação e desvitalizam a assistência).

Oui, desejava que a França ganhasse para que Zidane colhesse a sua mitologia. O homem merece pela elegância com que serviu a física do chuto na bola. Mas já antes tinha preferido perder com a Inglaterra. Porque os nativos da velha Albion começam e acabam os jogos a cantar, perene sinal de saúde étnica, ficando eu a roer-me de inveja por ter nascido em terra onde já ninguém canta. E antes teria sido melhor a eliminação face à Holanda. É que nos Países Baixos o civismo é alto, com o Mundo a carecer mais desse tipo de flores mediáticas do que das imagens da sardinha assada (apesar da filha-de-putice de não nos terem passado a bola no tal reatamento, barbaridade nunca antes vista entre países com corpos diplomáticos reconhecidos). Assim como teria sido vantajoso, para a segurança internacional, a derrota com o Irão. Os apanhadinhos da bola, como Ahmadinejad, estão a uma finta de substituir a retórica corânica pela intelectualidade de balneário; o que levaria à troca da belicosidade pela inanidade e provocaria um “efeito dominó” capaz de pacificar todo o Próximo e Médio Oriente. Finalmente, achei escandaloso o golo do Pauleta contra Angola. Vi nisso o pé do colonizador, displicentemente esmagando a alegria não de um povo, mas de todas as nações que sofreram a exploração do homem e da mulher brancos. E das duas uma: ou Pauleta devia ter sido coerente, seguindo o critério zelosamente aplicado nos jogos seguintes onde tudo fez para evitar marcar, ou, se só tinha levado um golo para gastar na Alemanha, pois que o guardasse para a meia-final onde fez verdadeira falta. Mas como a coisa se passou, apenas conseguiu acrescentar desperdício à arrogância.

O melhor deste Mundial, contudo e com tudo, foi mérito do jornal A Bola, naquela que é uma cacha de dimensão histórica. Na passada quarta-feira, no dia do jogo com a França, publicou uma coluna onde se apresentava ao leitor desportivo a vida, obra e importância filosófica de Nietzsche. Só isso já seria ocasião para pasmo e abertura de garrafas de espumante nacional, mas o melhor estava no fim. Termina-se a biografia dizendo que os nazis invocaram a obra do sifilítico autor para justificarem a “estupidez do holocausto”. E para mim, de pé, com uma sandes de queijo na mão que mal tinha começado a esculpir, o jornal entornado em cima do balcão de um tasco, desapareceu o enigma que tanto humilhou a minha enfezada inteligência. Foi-me sugado violentamente, chegando a causar vertigem. Enfim, agora, “aquilo”, afinal, e com tudo pesado, tudo ponderado, tudo bem pensado, o que aquilo era, lá no fundo, era mas era uma estupidez. Que estupidez a minha não ter percebido mais cedo.

Ida e volta — as opções

Pega comigo e vai comigo num barco qualquer, a remos ou à vela, tanto faz, e vamos procurar a terra dos francos que nos espera no outro lado do mar. Para ganhar e aprender ou para levar no toutiço do juízo, como nos velhos tempos de Paris. Não temas vagas alterosas, nem ligues ao sal frio e liquefeito que inevitavelmente nos refrescará as caras e os corpos na viagem de quase-aventura. Não tenhas medo que não estás sozinha. Irei contigo duma margem à outra, haja o que houver. Os nossos corpos unidos em calor-paixão de procura de lazer-prazer (desnecessariamente caro, necessariamente defendido pelo poder fictício do cartão de crédito que o Big Brother nos pôs na mão) apertar-se-ão ainda mais se os perigos de navegação se apresentarem com caras sujas de ventos contrários à nossa intenção firme e jurada de vermos e compreendermos mais — intenção que força, como tu e eu muito bem sabemos, à limpeza de coisa antigas em caves e arquivos mentais onde se passeiam ratas velhas sob ruínas de teias de aranha dos tempos do Aprendizado.

Era assim que eu gostaria de ter atravessado o Canal da Mancha, com uma companheira presa ao meu destino, num bote ou lancha. Em vez disso, meti-me no ventre duma enorme toupeira sobre carris, que já ameaça desastre financeiro pelas bocas de alarmados e hipócritas Cityistas londrinos, em Folkestone e saí no outro lado, lá para as bandas de Calais, terra de muita cebola e gritos de cebolório!

Mas nada se passa, nem nas idas nem nas voltas, como a gente gosta, isto é, de como gostamos de ver narrado em poemas leves mas ricos em oxigénio e rabanadas de vento. Jubilante e comovedor e realmente gratificante seria eu chegar aqui todo ufano e a suar para contar aos rapazes e raparigas os resultados da Conferência de patriotas americanos em LA sobre a característica indesmentível e inegável de inside job que tresandou do churrasco humano em Nova Iorque há cinco anos. Do meu discurso, se lá tivesse ido a convite, se me tivessem dado importância, se soubessem que existo, sacaria seguramente as passagens mais relevadoras e reveladoras — as do tipo de entrar sem oposição de nenhuma espécie pelas cabeças dentro de qualquer nhurro português com preocupações verdadeiramente democráticas, e tenho a certeza que pasmaria alguns deles. Mas não, em vez disso, volto, como muitos outros voltam doutros lados onde vão esquecer dívidas e frustrações e dizer mal de patrões, cansado de duas semanas de férias self-catering numa manoir, num chateau, como o seu dono gosta de chamar-lhe para acentuar o seigneurismo que escorre dalguns cantos teimosamente escuros e impermeáveis aos olhares de estranhos.

TT

Portugal profundo – 1 (encore)

Alguma ingenuidade impediu-me de prever um manual explicativo ao texto anterior, em forma de relatório burocrático. São formas que dizem muito menos, sobre qualquer assunto, como geralmente é sabido. Mas são mais explicadinhas, dão menos trabalho a ler. E assim servirão melhor às zonas mais sensíveis da respeitável caixa de comentários.
Toda a gente sabe que o país é uma aranha. Tem um rotundo ventre centrado na capital e as patas nas auto-estradas. E uma Casa da Música fazia falta ao Porto, tanto como o pão da boca. O Porto ia a concertos ao Coliseu, à sua Traviata, nos intervalos dum circo ou de espectáculos avulsos, sem desprimor. Há muitos anos que a cidade já merecia outra coisa, abençoada Casa.
É ela um meteoro vanguardista, e não peca por isso. Embora fique a suspeita de ter havido ali um sacrifício à forma, mais que à função. Caiu ali e provocou em volta ondas de choque, que as rugas no terreno atestam. São de mármore travertino, os ondulados. Vieram da Jordânia e são perfeitos.
A estrutura é de betão pigmentado, apto a assumir a patine mais adequada, quando os anos passarem. E de alumínio e vidro. Tem lá dentro um quilómetro de escadarias e um mundo inteiro de arrojos tecnológicos, que nos escapam à imaginação. Na construção e na acústica. O coração do conjunto é a Sala Guilhermina Suggia, cuja acústica (a da sala) já se coloca entre as melhores do mundo. Atentos, nas paredes, enquanto nós estamos ali refastelados, há componentes específicos de madeira que se ocupam de modular-nos os graves, os médios e os agudos. Os painéis das paredes têm revestimentos a folha de ouro, a sugerir os veios da madeira. E melómanos há que já levaram para casa um ourito raspado na unha do mindinho. Os veios de ouro estão ali a sugerir-nos o período barroco, o tempo dos desvarios dum rei que nos coube em sorte. Ou nossos, não sei bem, que isso não foi explicado.
A Sala, cobrindo a orquestra, dispõe duma canópia em PVC, que pesa quatro toneladas. É única no mundo (outras pesarão quarenta) e move-se a impulsos dum computador. Na parede da direita ressalta a caixa barroca dum órgão de tubos, a fazer lembrar uma nave de Mafra. Na da esquerda está a caixa doutro órgão de tubos, mais tardio. Chamaram-lhe romântico e não faz lembrar nada. As caixas sobressaem ali, nos seus volumes, por enquanto silenciosas, por estarem vazias. Não tem havido verbas para lhes meter lá dentro a maquinaria que lhes é própria. Mas esta capela imperfeita não nos interessa muito, que basta adaptar-lhe o reportório.
A nascente e a poente há janelões de vidro a receber a luz. É um vidro grossíssimo, ondulado, por causa da refracção, e forma dupla parede, para obviar aos gritos das ambulâncias. Os planos do vidro, com doze metros de comprido, vieram duma fundição de Barcelona. E os janelões têm cortinas acústicas para fechar, para dosear, ou para velar a luz. A Sala dispõe de 1238 lugares, em tudo equivalentes, além de um vasto coro nas costas da orquestra, que pode ser ocupado segundo as necessidades. E bem assim dois camarotes laterais, que parecem reservados a VIP’s e não o são.
Além deste auditório há um segundo, mais pequeno, que é menos bafejado pela tecnologia e não provoca sobressaltos. O resto, dentro da Casa, para lá do administrativo indispensável, são aproveitamentos acessórios, que têm o seu papel: câmaras de trabalho e ensaio de artistas, um atelier de criação musical infantil computorizada, um outro de workshops juvenis, e um espaço de baby-sitting, com acesso auditivo opcional aos espectáculos.
Por ser o município mais destratado pela dita síndrome da aranha capital, e por jogar no todo do país uma função maior, o Porto precisava duma Casa da Música. E o meteoro realmente embasbaca. Mas tem o seu senão. A um lado, quando quiserem voltar à Traviata, ou aguardam os portuenses a saída dos leões e voltam ao Coliseu, ou mandam o chauffeur rumar a outras paragens. Porque a Casa da Música é um concert hall, uma Philharmonie de gente rica. E o conceito não prevê fosso de orquestra, nem os equipamentos requeridos por recitais operáticos. Embora a meio caminho, não perderam tudo, os portuenses. Já podem assistir como gente à 9ª de Beethoven, sem pedir contenção à vizinhança. Porém, à fortuna que se enterrou ali, de impostos de quem os paga, merecia esta cidade melhor sorte.
E falta o último lado, ao janelão poente. Ali ao pé já se escavam os caboucos duma sede bancária, com 50 metros de altura. Vai comer ao meteoro metade do fulgor arquitectónico. Há gente, mesmo assim, de olhos em bico, inchada de contente. Eu comungo do seu contentamento, na suspeita de que não temos remissão.

Jorge Carvalheira

«Jogar bonito»

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Hoje, no «Público», o jornalista JORGE MARMELO escreve na sua crónica desportiva, a propósito do Mundial em curso:

«Quando a Alemanha, bem vistas as coisas, tem sido, entre as quatro semifinalistas, a única equipa capaz de jogar a bola de forma minimamente empolgante, está tudo dito. O resto é futebolzinho de risco zero, burocrático e calculista, caravaggiano e fatimista».

Há ainda uma oportunidade para ganhar, ou para perder, dignamente.

O escritor Manuel Jorge Marmelo está aqui. E o blogueiro aqui, com um obrigado ao Joao Luc.

Sem olhos em Gaza

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No Knesset, já há quem peça a “obliteração” de Gaza. Enquanto estes extremistas não passam a maioria, toda a população da Faixa de Gaza vai sendo castigada pelas acções de outros fanáticos. E a vida de milhões permanece sequestrada pelos que julgam só poder contentar os seus usando a violência à mínima oportunidade.
O soldado raptado continua longe de casa; entretanto, seu exército persiste nos raids contra a “infra-estrutura civil do Hamas”; incluindo orfanatos e lojas de brinquedos.
Aos homens de bom-senso, pouco mais resta que continuar a fazer propostas já desesperadas que ninguém ouvirá. E actualizar a contabilidade mais funesta.

Portugal profundo – 2

Vais-me dizer que eu inventei a história. Que eu sou um cínico e a história é impossível. Andas muito longe da verdade.
O padre Abreu não é padre, nunca chegou a sê-lo. Não tem cabeça para teologias, e as latinadas cansam-no. Mas veste-se à futrica, como os padres modernos, e sempre que pode exercita a função. Mora aqui na cidade. E o povo, que não separa o facto do direito, chama-lhe padre Abreu. Terá razão, que o padre Abreu não sonha com outra coisa, passa a vida na sé. Ajuda à missa, cuida da liturgia, aconselha as devotas e decora os responsos. Já perdoou pecados capitais, e há gente que entrou no céu por sua mão.
Há tempos havia que enterrar um cristão numa aldeia, dessas despovoadas, onde nem padres vão. E o padre Abreu lá foi, a encomendar o defunto, a fazer-lhe o funeral. Mas os parentes vieram a saber que o padre Abreu nunca tomara ordens, e temeram o pior. Puseram-lhe uma demanda em tribunal.
O padre Abreu sentou no banco dos réus a gravidade e a mansidão dum sócio do Vaticano. Alegou em defesa o serviço de Deus e afiançou as encomendações.
– Pois faça aí o responsório dum defunto! – ordenou o juiz, a esfolhear os códigos. – Já veremos se merece remissão!
Não pedia outra coisa, o padre Abreu. O meretíssimo chegou ao fim apaziguado, como quem deixa um amigo em boas mãos. E absolveu o réu.

Jorge Carvalheira

Shame on you, Mr. Seabra!

Recuperando a tradição dos itálicos, eis um comentário vindo deste post do Luís. A nossa comentadora Maria de Fátima oferece-nos um texto com donaire.

Sucede que o artigo a que este post alude não é, infelizmente, um artigo com cabeça, tronco e membros. Trata-se de uma série de três artigos preguiçosos em que Seabra confunde “espaço público” com blogosfera e, não contente com isso, considera, do alto do seu sabe-se lá o quê, que a fórmula crítica de EPC está esgotada. Assim mesmo, tal e qual, o crítico Seabra que aponta armas à falta de argumentação de alguma crítica, esqueceu-se de consolidar este tenebroso veredicto sobre EPC, deixando na gaveta o suco da barbatana que o levou a semelhante conclusão na fronteira de uma intolerável pureza ou desejos de uma crítica velada. E assim, de delírio em delírio, Seabra chega ao ponto de afinfar em Pulido Valente porque este teve a ousadia de publicar um livro recenseado no jornal onde colabora três vezes por semana. Haja santa paciência e, a este propósito, escuso-me de explicar o que quer que seja, ou antes, que quereria Seabra que Pulido Valente fizesse? Que enquanto colaborador do Público não escrevesse livros, que enquanto escritor não assinasse colunas de opinião, que o Público ignorasse olimpicamente o livro de Pulido Valente, que José Manuel Fernandes se recusasse a escrever sobre o que é, sem sombra para dúvidas, um livro incontornável? Seabra quereria que aos leitores do Público fosse vedada uma nota crítica, uma linha que fosse sobre um livro de um opinion maker que escreve livros e é editado? O que faz correr Seabra, é como quem diz, é assunto de interesse e debate, mas nunca da forma leviana e burocrata com que produz o levantamento do número de vezes em que uns e outros escrevem, opinam, dizem, pensam nos jornais, blogues ou televisões. Seabra tem, para mal dele e nosso, uma alma de contabilista, enfim, para não lhe dar outro nome, que lhe dá uma pinta de Jack Bauer, agente federal com a cabeça à roda com o dia mais longo da vida dele. A Bomba Inteligente que me perdoe, mas, coitada, no meio daquilo tudo é o menos porque é realmente o menos. Quem diz a Bomba, diz George, e quem diz este diz os outros que Seabra procurou em arquivos sem tom nem som, como se os tivesse atirado aos ares e de caras lhe saíssem aqueles nomes e não outros. Um tipo que se nos apresenta como um crítico de força e sem território comprado, um crítico daqueles que tem o rabo torcido e com uma volta na ponta, deveria ter dedicado mais energia e empenho ao assunto. Shame on you, Mr. Seabra!

Maria de Fátima

Portugal profundo – 1

Quem vai ao Porto vem do sul. Chega à margem do rio e dá com o Porto do outro lado, húmido e escuro, como as pedras antigas. A cair devagar pelas escarpas. Fizeram-no assim para durar muito, como os casacos velhos. Já não agasalham grande coisa, mas ainda servem.
Um poeta chamou-lhe o arrabalde de si mesmo, e quem o fez assim nunca mais olhou para ele, até chegar, em 2001, a Capital da Cultura. Algumas ruas ficaram transitáveis.
O Porto é o retrato mais inteiro que se pode fazer de todos nós. Cabemos todos lá. É o país integral, tirando os arrebiques. Ao pé dele um Rossio qualquer, um largo em Santarém, uma Albufeira de cimento, são curiosidades modernas.
Como imagem dum país de equívocos ou mitos, o Porto junta aos mitos os equívocos. O vinho, que é da casa, vem todo do Pinhão. Ufana-se de ser a terra do trabalho, quando apenas esbraceja a ver se mata a fome. Quando começa o verão solta no ar balões de mecha a arder, para ilustrar o S. João e incendiar pinhais. A cidade mais paroquial do hemisfério, onde o Mozart é muito conhecido porque já jogou nos lampiões, exercita o efémero em Serralves, vai a concertos minimais no Rivoli. E mandou fazer uma Casa da Música, multiplicando por três os prazos de entrega, e por seis o orçamento. Ficou com um vistoso meteoro, onde alternam lanços de escadaria com firmamentos vazios.
A zona histórica do Porto foi, há dez anos, património mundial. E agora, por já não ser português, desaba o património nas escarpas. O resto da cidade antiga é um campo devoluto, a apodrecer aos poucos, entre cheiros a mofo e a óleos de cozinha requentados.
Toda a beleza concentrada do Porto não enche um pátio de Évora. O lugar mais nobre da cidade, que são os Aliados, faz de largo das camionetas. A roncar, ao ralenti, à espera do horário da tabela.
Se os portugueses todos fizessem Portugal, punham sotaque do Porto, o único com marca na ourela. Levantavam-se cedo e iam a Lisboa, tirar a capital da cama. Assim, nem o rio mais homem deste mundo resiste a esta cidade. Quando lá chega encolhe-se, mete o rabo entre as pernas, e safa-se para o mar. Como ribeira qualquer do sexo fraco.

Jorge Carvalheira

Neo-realismo

Um grande mar foi o que deixou na campina a chuva de quarenta dias e quarenta noites.
As vinhas morreram afogadas no lodo.
Os ratos e os bois estrebucharam na torrente, e lá foram.
Os homens ficaram torcendo as mãos, desamparados.
Melhor fizeram os galos e os pardais, que assaltaram a ventana do campanário.

Jorge Carvalheira

Decomposição artística

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A peça de Damien Hirst que há pouco se aproximou do recorde de preço para obras de um artista vivo está a apodrecer. O tubarão que habita The physical impossibility of death in the mind of someone living, encomendada em 91 pelo publicitário Charles Saatchi, apresenta claros sinais de decomposição. Pouco atraído pela perspectiva de poder ver o espectáculo de 9 milhões de euros a desfazer-se na sua sala de estar, o infeliz proprietário está a tratar, com o artista, de substituir o inquilino da precária obra por um espécimen mais resistente.

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório