No blogue colectivo Da Literatura, Eduardo Pitta assinala o reaparecimento de Diário Íntimo, livro de poemas de Luís Amaro. Belo livro, excelente edição. Acertada lembrança.
Em Blue Everest, João Camilo reflecte sobre as vantagens do silêncio. Transcrevo:
Não falar é não querer distinguir, preferir não tomar partido. Quem não fala não escolhe, mas também não recusa; não acerta, mas também não erra; não agrada, mas também não ofende; não mostra que sabe, mas também não mostra que ignora; não se auto-retrata, mas também não tem a pretensão de retratar o mundo; não elogia, mas também não condena; não se compromete, mas também não compromete ninguém; não adula nem põe num altar, mas também não calunia nem ostraciza; não se eleva, mas também não se rebaixa. Quem não falou não tem de falar de novo para corrigir o que disse antes. Apesar disso falamos. Porquê?
Isso é o que dizem, por palavras várias, todos os filósofos da ataraxia.
Mas quem tem razão é o Valupi, que ‘a civilização é uma grande conversa’.
É que até eu me rendi às vantagens do silêncio, e das Jeunes Filles.
Luís Oliveira,
Se conhecer a poesia de João Camilo, os seus temas, os seus lugares, as suas obsessões, saberá quanto as «Jeunes Filles» vêm aqui a matar. Amusez-vous, messieurs.
Respondo à pergunta, no contexto em que ele é formulada.
Falamos porque queremos exercer poder.
É tão simples quanto isso.
Claro que falamos por também por outros motivos. Mas estes não são para aqui, agora, chamados.
O silêncio é uma ilusão. Sob a espessura aparente do silêncio estalam ruídos
de presenças esquecidas, vozes sussurram vindas de outras épocas das nossas vidas, alarmam-se animais inquietos, animam-se coisas inertes e esquecidas. O silêncio está para o nosso mundo como a sombra para nós: o que parece ausência é um novo mundo. Mundo assolado pela fome, pelo desejo, pelo orgulho. E pelo medo. E pela solidão. Onde nos perdemos iludidos que esse mundo novo seja o inverso disto tudo
As desvantagens do silêncio e as vantagens do sofrimento!
Não se pode falar do silêncio com palavras bonitas. As palavras bonitas são para falar da dor, do sofrimento, da solidão, da amargura e da saudade. Escrevem-se textos lindos de morrer sobre o choro, sobre a perda, sobre a angústia e o abandono. Por acaso gosto de sofrer. Se for de artista gosto de tudo o que me faça sofrer. Palavras sofridas, magoadas fazem-me companhia. As lágrimas fazem-me sentir viva!
No silêncio não há palavras bonitas. Pode-se morrer de silêncio, sem palavras bonitas que nos façam companhia. Morre-se muito mais de silêncio do que de solidão. A solidão tão bonita! O silêncio do dia-a-dia tão feio!
O silêncio do cão que o homem comprou para o ouvir ladrar matou-o. O silêncio do filho esquizóide que maltratava a mãe matou-a. O silêncio do marido opressivo que saiu de casa sem dizer uma palavra matou-a. Os antidepressivos que a velha tomava para não ouvir as pancadas nas paredes não a mataram, mas o silêncio das pancadas que já não ouve, mataram-na. Não há nada que mate mais que o silêncio ensurdecedor do amor. Insultem-me, apedrejem-me, enxovalhem-me, ofendam-me, condenem-me, caluniem-me, rebaixem-me. Usem palavras horríveis mas não me deixem no silêncio. Não quero morrer já!
Uma explosão de aparente bom senso. Mas começa mal e acaba mal. Será que haverá entre os nossos visitantes algum mudo que ponha isto em pratos limpos para dormirmos mais descansados?
TT
Sobre um dos temas deste post:
-‘Apesar disso falamos. Porquê?’ – será por várias razões, uma delas por necessidade de acalmar a consciência…
De tão redutora, a bipolarização desenhada pelo texto é irreal.
Ademais, a fala é não raramente uma forma de expressão subalternizada face a outros recursos comunicacionais: antes de fulano abrir a boca, recorrendo às nossas múltiplas técnicas e equipamentos de sondagem e pesquisa, já procedemos à recolha estratégica de material quanto baste para depreender quais as suas opções e preferências, para formular juízos de valor e até — quantas vezes — para nos sentirmos ofendidos ou adulados. E são essas as sensações que habitualmente prevalecem, e perduram, numa espécie de bolha conceptual, não obstante as sucessivas vagas de palavras ditas que possam vir a confrontá-la, indiferentes à razão lógica da fala.
Ignoro quem, mas alguma alma propensa ao trocadilho fácil vaticinou que ‘não há segunda oportunidade para causar primeira impressão’.
Muitas vezes falamos porque não suportamos a vozearia dentro de nós próprios — urge abafá-la, dominá-la, encaminhá-la para a válvula de escape. Mas nem por isso o que falamos traz algo de novo a quem escuta. Falar é, as mais das vezes, uma redundância, fruto da nossa inépcia na gestão do silêncio ou imperícia para lidar com o peso das emoções.
E quem mente calado, por norma mente quando fala. E vice-versa. E quem fala o que pensa, já antes fora franco noutras dimensões. E vice-versa.
Simplesmente, a sociedade fast-foodiana em que gravitamos insta-nos a falar e a ouvir o mais possível, e sempre, que observar é demasiadamente moroso. Não podemos ater-nos no luxo de ler a obra; é forçoso que nos cinjamos ao resumo. “Por isso, faça o favor de dizer o que pretende”.
Alguém lá atrás convocava a opinião de um mudo para pôr a questão “em pratos limpos”. E tem razão. Por força da sua natureza, mais facilmente se encontra nas pessoas privadas da fala a verdadeira grandiloquência. O resto é conversa, com mais ou menos técnica e virtuosismo treinado.
Aproveito para esclarecer que não concordo com nada do que disse antes. Isto é só a gente a falar…
Até já.