A Bola é redonda

Portugal foi uma equipa de virgens e fiduciários, fazendo do acaso o terceiro e único segredo das vitórias, e perdeu contra uma colectividade de reformados. Há consolo nisto, a vetustez ganhar à imaculada predestinação. Consolo e alívio, pois já se tinham esgotado as epifanias do pensamento mágico, esse que no futebol exorbita para lá da suposta fronteira que separa a loucura normal da normalidade da loucura. O que é de mais esfalfa, arrenega, mesmo que se trate de milagres (ou sobretudo, pois os milagres favorecem a procrastinação e desvitalizam a assistência).

Oui, desejava que a França ganhasse para que Zidane colhesse a sua mitologia. O homem merece pela elegância com que serviu a física do chuto na bola. Mas já antes tinha preferido perder com a Inglaterra. Porque os nativos da velha Albion começam e acabam os jogos a cantar, perene sinal de saúde étnica, ficando eu a roer-me de inveja por ter nascido em terra onde já ninguém canta. E antes teria sido melhor a eliminação face à Holanda. É que nos Países Baixos o civismo é alto, com o Mundo a carecer mais desse tipo de flores mediáticas do que das imagens da sardinha assada (apesar da filha-de-putice de não nos terem passado a bola no tal reatamento, barbaridade nunca antes vista entre países com corpos diplomáticos reconhecidos). Assim como teria sido vantajoso, para a segurança internacional, a derrota com o Irão. Os apanhadinhos da bola, como Ahmadinejad, estão a uma finta de substituir a retórica corânica pela intelectualidade de balneário; o que levaria à troca da belicosidade pela inanidade e provocaria um “efeito dominó” capaz de pacificar todo o Próximo e Médio Oriente. Finalmente, achei escandaloso o golo do Pauleta contra Angola. Vi nisso o pé do colonizador, displicentemente esmagando a alegria não de um povo, mas de todas as nações que sofreram a exploração do homem e da mulher brancos. E das duas uma: ou Pauleta devia ter sido coerente, seguindo o critério zelosamente aplicado nos jogos seguintes onde tudo fez para evitar marcar, ou, se só tinha levado um golo para gastar na Alemanha, pois que o guardasse para a meia-final onde fez verdadeira falta. Mas como a coisa se passou, apenas conseguiu acrescentar desperdício à arrogância.

O melhor deste Mundial, contudo e com tudo, foi mérito do jornal A Bola, naquela que é uma cacha de dimensão histórica. Na passada quarta-feira, no dia do jogo com a França, publicou uma coluna onde se apresentava ao leitor desportivo a vida, obra e importância filosófica de Nietzsche. Só isso já seria ocasião para pasmo e abertura de garrafas de espumante nacional, mas o melhor estava no fim. Termina-se a biografia dizendo que os nazis invocaram a obra do sifilítico autor para justificarem a “estupidez do holocausto”. E para mim, de pé, com uma sandes de queijo na mão que mal tinha começado a esculpir, o jornal entornado em cima do balcão de um tasco, desapareceu o enigma que tanto humilhou a minha enfezada inteligência. Foi-me sugado violentamente, chegando a causar vertigem. Enfim, agora, “aquilo”, afinal, e com tudo pesado, tudo ponderado, tudo bem pensado, o que aquilo era, lá no fundo, era mas era uma estupidez. Que estupidez a minha não ter percebido mais cedo.

13 thoughts on “A Bola é redonda”

  1. Lindo!!! O mais hilariante texto que li sobre esta saga, na lingua materna.
    E o remate, fabuloso!!
    Vou de fim-de-semana com duplo sorriso.

  2. Valupi,

    Alem da tua falta de patriotismo muito condenável e por isso merecedora duma justa denúncia à FPFA (Federação Portuguesa de Futebol Armador), que não sei se existe nem me interessa, puxas também pela imaginação à minha bola de cristal que depressa se sintonizou, sem que eu ordenenasse, numa cena de há sessenta e tantos anos onde vejo o Goebbels a segredar ao Himmler: “estou a passar uma vista de olhos por uns papelitos filosóficos do Nietzsche e parece-me que poderemos recorrer à sua ajuda se as coisas derem para o torto com o Holocausto que estamos a preparar”.

    E não é o anacronismo da palavra “Holocausto”, que começou a circular nos anos 70, salvo erro, que me espanta. O que me espanta é a vida que levas em tascos ordinários a leres menus de carapaus ardidos e papas à valenciana para te inspirares e arrebanhares gulosamente os louvores disponíveis na caixa de comentários. Chamem-te parvo.

    TT

  3. Deixe-se de crochets conceptuais, Valupi, e faça um esforçozinho. Vá lá, soletre comigo: “G, A, Z, A.”

    Verá que não sobram inomináveis (“aquilo”, Valupi, “aquilo”…) nem enigmas; e verá que resta a estupidez, e em abundância.

    Holocaustos houve e há vários; hologramas, povos eleitos e esculturas de sandes de queijo ainda mais.

    Vá lá, Valupi, soletre comigo: “G, A, Z, A.”, e leia todo os jornais. Para que, daqui a uns anos, não tenha de exclamar para si próprio: “Que estupidez a minha não ter percebido mais cedo.”

  4. Cada qual vê as coisas à escala que lhe cabe na cachimónia, meu caro Valupi.
    Vinda da Bola, essa não é uma escala nada má.
    V. é que lhes deu uma fasquia muito alta.
    Aconteceu o mesmo ao Pauleta.

  5. Fui ver «O Nariz» de Chostakovitch, encenado pelo João Lourenço, com que o S.Carlos encerra a temporada de ópera.A obra do compositor russo foi levada à cena em Leninegrado em 1930 quando a revolução soviética ainda permitia a inovação e a pluralidade culturais.Depois foi censurada no auge do estalinismo pela sátira evidente aos detentores de cargos públicos muito «senhores do seu nariz», mas sem nenhuma razão para tal.Um prazer para os olhos e um treino para os ouvidos.

  6. Qual pot-amun da bola, com frustação de vida. Os iracundos revelam-se… mas ineptos continuam ad eternum!

  7. Tendes todos razão, a começar pelos que deixaram elogios — no que mostraram rigor e bom gosto — e exceptuando o Anonymous do dia 7 às 05.31 PM, que é tolinho.

  8. Lindo. Já disseram. Munta bom. Assino por baixo.

    Mas, agora, com o rio da história já mais corrido, ainda achas que Zizou colheu a sua mitologia? Ou criou uma paralela, a dos deuses mortais?

  9. Luís e Fernando

    Vosselências estragam-me com mimos. Sois generosos, talvez misericordiosos — sorte a minha.

    Quanto ao Zizou, alinho muito contigo, Fernando. Pois que vasta é a mitologia dos deuses mortais.

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