Alguma ingenuidade impediu-me de prever um manual explicativo ao texto anterior, em forma de relatório burocrático. São formas que dizem muito menos, sobre qualquer assunto, como geralmente é sabido. Mas são mais explicadinhas, dão menos trabalho a ler. E assim servirão melhor às zonas mais sensíveis da respeitável caixa de comentários.
Toda a gente sabe que o país é uma aranha. Tem um rotundo ventre centrado na capital e as patas nas auto-estradas. E uma Casa da Música fazia falta ao Porto, tanto como o pão da boca. O Porto ia a concertos ao Coliseu, à sua Traviata, nos intervalos dum circo ou de espectáculos avulsos, sem desprimor. Há muitos anos que a cidade já merecia outra coisa, abençoada Casa.
É ela um meteoro vanguardista, e não peca por isso. Embora fique a suspeita de ter havido ali um sacrifício à forma, mais que à função. Caiu ali e provocou em volta ondas de choque, que as rugas no terreno atestam. São de mármore travertino, os ondulados. Vieram da Jordânia e são perfeitos.
A estrutura é de betão pigmentado, apto a assumir a patine mais adequada, quando os anos passarem. E de alumínio e vidro. Tem lá dentro um quilómetro de escadarias e um mundo inteiro de arrojos tecnológicos, que nos escapam à imaginação. Na construção e na acústica. O coração do conjunto é a Sala Guilhermina Suggia, cuja acústica (a da sala) já se coloca entre as melhores do mundo. Atentos, nas paredes, enquanto nós estamos ali refastelados, há componentes específicos de madeira que se ocupam de modular-nos os graves, os médios e os agudos. Os painéis das paredes têm revestimentos a folha de ouro, a sugerir os veios da madeira. E melómanos há que já levaram para casa um ourito raspado na unha do mindinho. Os veios de ouro estão ali a sugerir-nos o período barroco, o tempo dos desvarios dum rei que nos coube em sorte. Ou nossos, não sei bem, que isso não foi explicado.
A Sala, cobrindo a orquestra, dispõe duma canópia em PVC, que pesa quatro toneladas. É única no mundo (outras pesarão quarenta) e move-se a impulsos dum computador. Na parede da direita ressalta a caixa barroca dum órgão de tubos, a fazer lembrar uma nave de Mafra. Na da esquerda está a caixa doutro órgão de tubos, mais tardio. Chamaram-lhe romântico e não faz lembrar nada. As caixas sobressaem ali, nos seus volumes, por enquanto silenciosas, por estarem vazias. Não tem havido verbas para lhes meter lá dentro a maquinaria que lhes é própria. Mas esta capela imperfeita não nos interessa muito, que basta adaptar-lhe o reportório.
A nascente e a poente há janelões de vidro a receber a luz. É um vidro grossíssimo, ondulado, por causa da refracção, e forma dupla parede, para obviar aos gritos das ambulâncias. Os planos do vidro, com doze metros de comprido, vieram duma fundição de Barcelona. E os janelões têm cortinas acústicas para fechar, para dosear, ou para velar a luz. A Sala dispõe de 1238 lugares, em tudo equivalentes, além de um vasto coro nas costas da orquestra, que pode ser ocupado segundo as necessidades. E bem assim dois camarotes laterais, que parecem reservados a VIP’s e não o são.
Além deste auditório há um segundo, mais pequeno, que é menos bafejado pela tecnologia e não provoca sobressaltos. O resto, dentro da Casa, para lá do administrativo indispensável, são aproveitamentos acessórios, que têm o seu papel: câmaras de trabalho e ensaio de artistas, um atelier de criação musical infantil computorizada, um outro de workshops juvenis, e um espaço de baby-sitting, com acesso auditivo opcional aos espectáculos.
Por ser o município mais destratado pela dita síndrome da aranha capital, e por jogar no todo do país uma função maior, o Porto precisava duma Casa da Música. E o meteoro realmente embasbaca. Mas tem o seu senão. A um lado, quando quiserem voltar à Traviata, ou aguardam os portuenses a saída dos leões e voltam ao Coliseu, ou mandam o chauffeur rumar a outras paragens. Porque a Casa da Música é um concert hall, uma Philharmonie de gente rica. E o conceito não prevê fosso de orquestra, nem os equipamentos requeridos por recitais operáticos. Embora a meio caminho, não perderam tudo, os portuenses. Já podem assistir como gente à 9ª de Beethoven, sem pedir contenção à vizinhança. Porém, à fortuna que se enterrou ali, de impostos de quem os paga, merecia esta cidade melhor sorte.
E falta o último lado, ao janelão poente. Ali ao pé já se escavam os caboucos duma sede bancária, com 50 metros de altura. Vai comer ao meteoro metade do fulgor arquitectónico. Há gente, mesmo assim, de olhos em bico, inchada de contente. Eu comungo do seu contentamento, na suspeita de que não temos remissão.
Jorge Carvalheira
Caro Fernando Venâncio,
Não percebo a insistência em colocar textos deste imbecil!
Ah, e para quem estiver interessado: na próxima quarta-feira, haverá um concerto com o grande Lenine (não é esse!.. é o outro..),na Casa da Música.
Gostei muito desta irada e humorosa inspecção do Carvalheira à Casa. Agora só nos falta uma Casa da Ópera – buffa e ordinária de preferência e com admissões baratas ou à borliu para os restantes 95 por cento que permanecem, por razões económicas e de tradição, fieis ao assobio.
TT
Parece que já temos um assobiador de serviço.
Graças a Zeus!!
Caro iluminado da crítica arquitectonica, ficamos-lhe gratos pela inconveniência dos gastos públicos na humilde cidade que viu nascer entre outros o Infante e por fazer chegar aqui, a este poderoso instertício da comunicação, a voz de muitos – que por não quererem, não saberem ou não poderem e/ ou sobretudo porque querem, sabem e podem insistem em molestar o exercício da evolução urbana. Haja quem!
Ó Adaufe, não fique apoquentado, que não perceber isso é uma insignificância!
Muito mais grave é tudo o resto, que V. também não compreende!
Imbecil? Ah, Adaufe. Todos nós aqui já fomos tidos por «imbecis» – eu, o Luís, o Valupi, até o Zé Mário (este «até» não é irónico, mas elogioso). Escapa o Jorge Mateus? Ele que se cuide. Agora é a vez do Carvalheira. O TT não demorará.
Nascemos para isto, Adaufezinho.
Adaufe:
“A boa cavalgadura tem reacções directas e primárias, nunca se empina por capricho. Manda soltar-lhe o albardão e escovar-lhe o lombo. Se ela escoicinha, algum espinho lhe morde por baixo do aparelho.”
Por aqui ninguém leva a sério a norma antiga. Mas nos casos mais gravosos, vai o palafreneiro ao domicílio. Veja lá, não se acanhe!
Mas quando é que esta gente se convence que a Casa é da Música e não do Teatro?
Ó Carvalheira, dedique-se à pesca…ou às «micro-correntes».
É um final cordato, Adaufe!
Eu dispenso o seu conselho sobre as minhas ocupações. E V. dará dispensa à grosseria, voltando aos comentários.