Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Um iate, um cais, um copo de gin

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Voltei as costas ao bulício da parte velha da cidade, aos sacos que já cheiram a compras de Natal, à pressa das pessoas nas escadas rolantes dos armazéns e às iluminações da quadra que já estão nas ruas. Uma pequena viagem de Metropolitano é o suficiente para chegar ao Mar da Palha. Com a ponte Vasco da Gama à direita, o Peter lá está à esquerda à minha espera. Um iate, um cais e um copo de gin – eis o lema que, desde sempre, fixei. Não tenho iate, cheguei aqui muito prosaicamente de Metropolitano, mas tenho à minha frente um cais e um copo de gin. Junte-se um livro e uma tosta mista feita com aquele pão tão especial, e temos programa para uma tarde bem passada no Peter do Parque das Nações. Como já estamos no fim do Outono, o dia começa a cair muito cedo. O cinzento vence o azul. Acendem-se as primeiras luzes do lado de lá. Sei muito bem que tenho à esquerda Alcochete e logo a seguir Samouco, Montijo, Barreiro e Seixal, mas o meu espírito diz-me que ali em frente tenho na verdade a Ilha do Pico. As luzes do lado de lá podem ser da Madalena. Estou sozinho na mesa de quatro, mas tenho à minha volta uma solidão povoada. Estão aqui comigo, mesmo sem ninguém os ver, a Eduardina, o Urbano Bettencourt, a Zezinha Lacerda, o Carlos Lobão, o Sidónio Bettencourt, o Emanuel Jorge Botelho, o Álamo Oliveira, o J.H. Santos Barros, o Emanuel Félix. E todos. E todas as vozes. E todos os livros. E todos os filmes a começar por «Gente feliz com lágrimas» de João de Melo e Zeca Medeiros. Sem um iate, mas com um cais e um copo de gin eu posso convocar a paisagem e o povoamento dos Açores aqui no Parque das Nações. E ser feliz. Mesmo se for apenas nestes momentos de alegria breve numa tarde cor de cinza.

José do Carmo Francisco

Vital

Por causa de um comentário da Cristina, participante nesta discussão, colhe enfrentar o artigo de Vital Moreira, há dias saído no PÚBLICO. A tese é a de que a penalização não é eficaz na diminuição do número de abortos, só contribuindo para a indignidade do aborto clandestino e para a ausência de acompanhamento profissional das mulheres. Uma tese basilar do SIM, já conhecida de todos e bastamente argumentada. Que torna interessante, mesmo fascinante, o texto do famoso professor?

Agarrando o boi pelo cornos, temos uma autoridade em direito, e direito constitucional (!), a dizer-nos que isto da lei e das leis é uma coisa má. Não me engano, e é passagem que encerra o artigo:

Do que se trata é de saber se as primeiras [mulheres que querem preservar gravidezes indesejadas] podem impor às segundas [mulheres que não querem preservar gravidezes indesejadas] as suas convicções morais e religiosas, não com a sua capacidade de persuasão, mas sim com a ajuda do Código Penal e a cominação de prisão. É essa a diferença entre o “sim” e o “não”.

Eis mais uma das sínteses que os obreiros da opinião publicada se sentem impelidos a fazer nesta recta final. Mas eis uma síntese que abre a caixa de Pandora donde saem os monstros mais grotescos; pois podemos aplicar o mesmíssimo raciocínio a outras práticas igualmente criminalizadas por razões que só se explicam moralmente ou por herança religiosa (por exemplo, a eutanásia, o incesto**, a poligamia, a pedofilia, o consumo de drogas**, a ofensa, mesmo o roubo — entre tantos outros casos, onde se inclui toda a temática da assistência social em geral, seja por obra do Estado ou de instituições e pessoas particulares). Segundo Vital Moreira, por razões nunca explicitadas, a decisão de executar o feto não deve ser passível de um consenso comunitário. Um Estado não deve ter opinião, interesses jurídicos ou políticos, quanto à viabilidade da existência dos seres humanos até às 10 semanas. Porquê? Porque — lê-se e não se acredita que tal possa ser dito por quem o diz — o direito do feto a sobreviver durante os primeiros dois meses e meio da sua vida não passa de uma convicção moral e religiosa que só obriga quem a tem. Trata-se de uma lotaria. Se o feto calha aparecer em útero moralizado e religioso, estará garantido. Se calha escolher útero mais progressista e todo desempoeirado de avoengas sensibilidades, está feito; isto é, desfeito. Fait vos jeux.*

Continuar a lerVital

O MAL QUE DIVIDE AS ALDEIAS (4)

Em termos do grande encontro, ou recontro, chamem-lhe embate se quizerem, entre o Mal e a Humanidade, há que ser amigo da verdade de todos os tempos e há que ser realista até ao desconforto doloroso, mesmo que esse seja o preço que cada um terá de pagar para permanecer acordado ou simplesmente diferente. Dói admitir, mas repare-se no triunfo, ainda que passageiro porque descaradamente desumano, do Mal sobre o Bem, exuberantemente inegável a toda a largura do espectro das cores do engano apresentado panoramicamente na frente de qualquer observador atento. Só um despeito sumamente irrealista ou ingénuo se lembrará de menosprezar ou ignorar as aptidões do Mal e a grande perícia que demonstra nas suas actividades de endrominação, ou de ver defeito geométrico no desenho, ou funcional na organização e distribuição estrutural ou de instabilidade na construção do grande edificio que alberga o cérebro central da índole malfazente.

Que ninguem perca um segundo sequer a duvidar da suprema organização e astuta inteligência que presidiram à obra maldosa levantada a poder de ouro mitológico vindo não se sabe donde, ano após ano, década sobre década, século após século, e depois depositado como aposta no pano verde de escombros renováveis da politica e da intriga sob o olhar impávido e comprometido das quintas-colunas com ninho nos antros da grande finança e nos grandes palácios da religião ou mosteiros de alquimistas.. O Mal está de parabéns como sempre esteve desde que se organizou em partido encapotado, sem dúvida nenhuma, a usufruir lucros capitalizados, vivendo alegremente à grande e à latina nas grandes capitais, senhor do seu nariz arrogante, corroendo memórias confusas e manipuláveis ou mantendo sob prisão o subconsciente do ente que ainda consegue respirar, ou permanecendo confortavelmente longe das recordações dos que por cá já passaram e que agora apenas são capazes de pensar ou criticar com corações de perdão e sem azedumes. E não é de há pouco esta teia e organização. Foi sempre assim desde que a História deixou de ser escrita em linhas direitas.

Mas a Humanidade é um monstro sagrado respeitável e praticamente indestrutivel, uma senhora enorme com bilhões de filhos de todas as idades, com um destino colectivo que não pode ser mantido eternamente longe da capacidade de percepção do individuo que dela é parte integrante, e até se pode dar ao luxo de dormir plàcidamente a dois passos de soldados e generais do Mal que não fecham os olhos, meio-acagaçads com receio de morrerem sem deixarem saldos anímicos visíveis, ou de serem reduzidos a pó biologicamente intransmutável, ou chorosos porque ninguem lhes dá garantias nenhumas de que não serão reencarnados na forma de filhos de gente pobre duma tribo da Somália, em vez de o serem nas mais apetitosas posições de vantagem que agora desfrutam. Problemas que as consultas de oráculos e rezas a Isis e Osiris ainda não conseguiram resolver.

Alguns dirão que o Mal nem é assim tão mau. Pois não. Só é (se traduzirmos para miudos e linguagem simples as politicas concretas dos seus representantes em governos por esse mundo fora) contra a Família, unidade fundamental e natural de resistência a uma planeada sociedade robotizada e robotizante modelada a partir de organizações secretas piramidais onde não se pergunta com indiscrição, onde impera o dogma e onde 95 por cento das infantarias patetas não têm a mínima ideia donde vêm nem onde assentam os valores que dizem perseguir e abraçar. É contra Deus, seja qual for a definição, variedade da interpretação ou intensidade da crença. É contra a sobrevivência depois da morte sem o tal regresso reencarnável ou bilhete de ida e volta, porque aceitar isso arrastaria consequências políticas incalculáveis numa transformação da atitude do individuo em relação ao poder que abalaria os alicerces onde se apoiam as várias ordens fundadas na ronha e na pouca-vergonha. É pela guerra, pois claro, se necessária, conveniente, lucrativa e estratégica e como instrumento imprescindível à sua continuação no poder ou alargamento do mesmo. É pelo estrangulamento da ciência, não só através da imposição de deuses já ultrapassados dessa ciência que permite, mas tambem através do encobrimento de verdadeiras descobertas cuja natureza põe em risco esse mesmo poder, e é, em remate importantíssimo, pela falsificação da História, derradeira acusação e corpo de delito.

Tudo somado não monta a grande coisa, passe a ironia ou intenção de levar isto para o lado do gozo. Outros dirão que não há provas de que este Mal existe e se existe é só nalgumas cabecinhas. Ou, alternativamente, que este Mal é um mal necessário, à prova de bala e sindicância. Enfim, em terra de Perpétuas não há Englantina que não tenha opinião tambem à prova convenientíssima de arranhar os rabos a gente importante. Por mim, poderiamos muito bem passar sem ele – sem Ele, ficaria melhor, ao lado da auréola, coroa, tridente e pêra de bode.

TT

Novos Portugueses

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Há uma geração de portugueses, agora na viragem para os 30 anos, que nasceu depois do 25 de Abril. Juntam a essa característica outras tão ou mais relevantes, como o convívio desde os cueiros com as novas tecnologias da computação, diversão e comunicação. E, ainda por cima, não têm estudos superiores (sequer inferiores) em cultura clássica, tradições humanistas, formação científica. Não se interessam por política, não gostam de touradas, nunca leram a Bíblia. E eu tenho a sorte de me dar com alguns deles, alguns que são particularmente talentosos.

É o caso do Nuno Baltazar, um dos mais interessantes dos novos artistas/designers portugueses. Acho que é dos mais interessantes porque sou amigo dele. É muito simples justificar o meu gosto. Porém, pode dar-se o caso de eu não estar só nessa opinião. Haveria coincidências mais estranhas.

A paranóia das Ligas já chegou ao Boavista

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Apareceu há pouco tempo nos jornais desportivos uma curiosa notícia sobre os 2000 golos do Boavista na I Divisão. Nada mais falso. De facto entre 1935 e 1938 realizou-se em Portugal uma prova experimental, um torneio particular intitulado Liga no qual as equipas entravam por convite. Assim aconteceu por exemplo com a Académica que em 1934/35 ficou em último com 3 pontos e voltou a jogar em 1935/36 ficando de novo em último. Voltou a jogar em 1936/37 e em 1937/38.

O campeonato nacional da I Divisão só começou a ser disputado em 1938/39. Até essa época existiu sempre o Campeonato de Portugal. Nos anos das Ligas os vencedores do Campeonato de Portugal foram o Benfica (1934/35), o Sporting (1935/36), o Porto (1936/37) e o Sporting (1937/38). Ora acontece que, como o Benfica ganhou 3 Ligas e o Porto 1 delas, alguns jornalistas tentaram apagar o Campeonato de Portugal desses anos. Ou seja fingem que não existiu Campeonato de Portugal entre 1934 e 1938. Depois escrevem burrices como esta: «O Boavista em 1936 desce de Divisão». Nada mais falso, pois a II Divisão só surgiu em 1938/39 tendo o vencedor desse ano sido o Carcavelinhos.

O que aconteceu de facto ao Boavista em 1936 foi que não foi convidado. No seu lugar apareceu o Académico do Porto. Essa é que é a verdade e como dizia o «outro» a verdade é só uma. Não pode haver duas verdades. Na época de 1935/36 o campeão de Portugal foi o Sporting Clube de Portugal, que venceu o Belenenses por 3-1 na final em 5-7-36, depois de ter vencido o Salgueiros, o Carcavelinhos e o Marítimo.

O Boavista não desceu de divisão em 1936 porque não havia descidas de divisão. Isso só começou a acontecer em 1938/39. Pese embora a boa vontade dos jornalistas sem memória que tentam apagar os Campeonatos de Portugal de 1934 a 1938 como se eles não tivessem existido.

José do Carmo Francisco

Esta pergunta, e não outra (II)

O Fernando fintou a sovinice (e pouca visão comercial, mas esse é outro assunto) do PÚBLICO e deu a ler, a quem ainda não o tivesse feito, a última crónica de Rui Tavares. Ainda bem para nós, e ainda bem para mim que vou aproveitar a oportunidade. O texto em causa termina com um repto:

O que não se pode é invalidar a pergunta, degradando a sua lógica. Trata-se de uma pergunta directa. Como tal, pede apenas uma resposta honesta.

De facto, o homem tem razão. Entretanto, aqui já desenvolvi os pressupostos do meu voto. Agora, especificarei adentro dos significados da pergunta. Ei-la:

Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?

Rui Tavares explicou-nos que a pergunta é directa, razão para se ser honesto na resposta. Claro que não convém ir incomodar o esforçado articulista com a nossas dúvidas quanto à sua noção de honestidade. Não que ele esteja privado da mesma, que é carência que nem me permito pensar existir, apenas acontece estar aqui em causa uma concepção de honestidade que poderá ser divergente da minha, da nossa, da de cada um. Como não ficou definida, não se sabe. Mas, adiante, ultrapassemos a dilacerante interrogação e usemos a prata da casa, a minha humilde noção do que seja a honestidade.

E, para dar uns ares de Rui Tavares, vou também tentar explicar o óbvio: ser honesto, cá comigo, é não mentir. Não mentir, que fique claro, é ser honesto. Diria ainda mais: há uma impossibilidade ética na simultaneidade do estado honesto com o acto mentiroso. Espero estar a ser fiel ao estilo ruitavariano, um estilo que me lembra muito o maior legado do Poder Local ao País, logo a seguir à corrupção: as rotundas.

Ora, posto que eu não quero mentir, por que razão haveria de concordar com a interrupção voluntária da gravidez, fosse lá por opção de quem fosse, fosse lá quando fosse e fosse lá onde fosse? É de resposta directa: não devo concordar com aquilo que não me está a ser apresentado, explicitado, justificado. Se eu concordasse às cegas, de cruz, estaria a ser cúmplice de todas as interrupções de gravidez feitas nas tais circunstâncias — mas onde se poderiam incluir algumas que me tirassem o sono, ou a dignidade, ao concordar com elas; que poderiam ser barbaridades, até crimes contra a humanidade. Assim, sendo coerente com o propósito de não invalidar a pergunta degradando a sua lógica, como ensina Rui Tavares, o melhor para a minha honestidade é não concordar.

Outro exemplo. A pergunta remete para a opção da mulher, conferindo-lhe o exclusivo da decisão. Que diabo… Então, e eu? Quero eu que a mulher grávida do meu filho, filha ou filhos, possa abortar por sua solipsista iniciativa? Claro que não! Eu não quero alienar a minha paternidade. Guiando-me pelo avisado conselho de Rui Tavares, que frisou estar apenas em causa a capacidade para dar uma resposta honesta, é evidente que tenho de discordar.

Último ponto. Na pergunta estipula-se o limite das 10 semanas. Mas todos concordam que este limite é um arbítrio, seja lá qual for o ponto de vista sobre ele — científico, médico ou jurídico. Nem para os defensores do SIM este limite parece ser bom, pois conduz a absurdos trágicos ou a práticas ilegais: i) 10 semanas e 1 dia já será crime; ou; ii) 10 semanas e algum tempo mais, não limitado e segundo o critério de cada médico, não será crime. Pois não vou ser eu a esclarecer a trapalhada. Se os doutores dos calhamaços não se entendem entre si, como poderei alinhar com uma condição temporal que não sei donde vem nem porquê? Lamento, mas está em causa a minha honestidade, como lembra tão a propósito Rui Tavares, e como tal eu seria um mentiroso se concordasse com a pergunta.

Rui Tavares, obrigado pela tua clarividência.

O SOL QUANDO BRILHA È PARA TODOS

Ontem, assim que me levantei, vi logo que se iria ter um bonito dia de sol na Londónia Blairo-trabalhosa, uma coisa que cada vez surpreende menos mesmo em fevereiros pós-dickensianos. Global (war)mings, pois então, para assustar as pessoas e arranjar uns quantos tachos a ecologistas desempregados.

Dei uma olhadela rápida ao que tinha agendado para o dia e notei que me seria possivel levar a cabo três salutares actividades, se o solinho se mantivesse: a) apanhar uma banho de vitamina D através das vidraças; b) ir ao newsagent e comprar um jornal às cegas e lê-lo sem sequer me incomodar em saber quem é o seu dono porque já sei disso há muito tempo, e c) ir aviar-me ao supermercado duma cadeia deles que abarbata a bagatela de um terço do dinheiro que se gasta em comida neste país. Os nomes dos donos não são para aqui chamados.

E assim fiz. Com o sol a bater-me no peito e o adjunto da hormona a entrar-me na pele, fui lendo as notícias. Mas só duas me espicaçaram a atenção. O resto era o merdismo jornaleiro do costume. Numa delas dizia-se que o Tony Trabalhista comprou a sua quinta propriedade residencial que juntou às que já tinha para tudo ficar a valer cinco milhões de estrelinas. Pensei: a sua clique de amigos irá certamente lamentar a dificuldade que agora terá em pagar as amortizações dos cinco empréstimos – um encargo mensal da ordem das 20 mil mocas. Eu fico com pena dele porque sei que o seu amigo Berlusconi costuma dar isso de gorgeta em restaurantes em Roma ou Milão.. Se não dá é porque não quer (50 bilhões de eurodemocráticos bruxelenses de fortuna). Estas disparidades injustas entre antigos e presentes cabeças de governo da Comunidade Europeia não se admitem. Um dia destes ainda vai haver por aí uma revolução, se os comunistas venderem a patente. Mais que não seja nas lojas pequenas porque as grandes estão-se cagando.

A outra notícia que me fez piscar o olho da indignação foi uma à volta dum juiz que condenou um pedófilo a dar uma bicicleta ao rapazinho que molestou. Estas coisas têm que progredir aos poucos. Que ninguem se admire que daqui a uns anos as penas baixem para um triciclo com cromados ou um pacote com duas dúzias de fraldas.

Depois fui ao tal supermercado, e quando de lá voltei carrregado com vários quilos de bananas sul-americanas que tenciono transformar numa sopa potássica para me fortalecer os nervos até o comandante Sócrates decidir voltar ao seio dos homens normais, fui ao computador e carreguei no botão do Aspirina, levando de seguida com várias coisas na tromba, entre elas os 25 tostões de prosa tavariana de coçar na pila ao Sim e no grelo à Nova Ordem Mundial – outra surpresa que contribuiu para animar um dia cheio de sol que não foi para brincadeiras, graças a Deus.

TT

O MAL QUE DIVIDE AS ALDEIAS (3)

Que ninguem se canse demais a procurar as causas primeiras das decisões politicas na História recente entre as leituras oficiais de manutenção do statu quo ou nemésicas contra os vários figurinos da opressão. Uma e outra são desenhadas para nos confundir ou cegar. Melhor será, com um pouco de boa vontade e espírito aberto a actualizações, tentar isolar o ingrediente favorito e remoldável, o método elástico e maleável da Maldade organizada. Depois duma certa prática na maneira de se olhar nesse jeito, uma nova visão do conjunto e das conjunturas entrará pelos olhos de qualquer um disposto a ultrapassar as velocidades minimas de educação politica permitidas nas auto-estradas democráticas.

Neste período de paz prolongada na velha Europa do bom senso e de guerras ferozes e animalescas, Europa da alquimia e da cabala importada, das descobertas e invenções de tantas coisas boas, no meio delas a Intriga activíssima que continua a influenciar o resto do mundo e a ditar a maior parte do que nele hoje se passa, o objectivo primeiro do Mal organizado é o de manter as classes trabalhadoras de calo ou computador em coma ressuscitável ou em reserva para utilização em eventuais situações de emergência.

Foi realmente trabalho árduo chegar a esta fase, lá isso foi, ter domado a besta pobre e agangada depois da última Guerra Grande de muitos mortos, fomes e racionamentos, tudo aos poucos debelado com a ajuda das farturas marshalianas dos gringos a varrerem os pós da destruição. No âmbito da filosofia inconfessada de que é possivel haver lucro em tempo de guerra ou de paz e em vários tipos de mercado, a Secção do Capital da Organização do Mal depressa se mobilizou e arregaçou mangas e, apesar duma Guerra Fria que se meteu propositadamente pelo meio para assustar cágados e arvelas e umas quantas outras quentes e mornas em várias áreas do globo para se provar que o Homem nunca mais deixa de ser um animal de fácial persuasão política, cresceu e fez crescer tanto à sua volta com a magia e os dedos de ouro que lhe conhecemos que até se deu ao luxo e ao trabalho de fornecer pópó e casa própria a muitos dos até ai destituidos labregos. Passada essa fase, lei capital dos crescimentos económicos impossíveis de se manterem por mais de trinta anos, tratou o Mal de proceder a revisões e preparar a Força de Trabalho para a luta morna do fado-chanson-rock contra o outrora desalmado (hoje contratualmente civilizado, responsável e compreensivo) capitalista ou burocrata. Vestiu-a, para isso, das gangas caras de Nimes, gravatas e saltos altos como requere a chucha capitalista dos Contratos de Desemprego Cíclico e Harmonioso. Depois foi só deixá-la especada frente ao televisor a comer pipocas ou a beber a propaganda-entretenimento, sem que montes dessa gente extraordinàriamente inteligente e politicamente lúcidíssima ainda hoje se aperceba que não é dontem que o Mal anda de braço dado com o Trabalho e o Capital com olho de ourives e mão de artista, escondendo a sua natureza de amante secreto.

E não será agora neste tempo de cruzadas que ao Mal lhe interessará acordar gritos de guerra sociais nos peitos das velhas guardas de irem tradicionalmente nas suas fitas. Melhor será ir aguentando o barco, retocando as pinturas alegóricas, desfraldando bandeiras menos agressivas ou ofensivas nos desfiles e procissões, distribuindo às bocas aguantes os elixirs eternos de manutenção de energias dormentes. Conservar a chama um pouco acesa, sim, mas não ao ponto de a deixar apagar completamente, impedindo-a de continuar a ser a distracção alumiante capaz de criar o atrito e espírito de bulha tão convenientes para quem aposta na arteirice de manter o rabo de fora. Par o Mal, agora, aqui e em todo o lado, o importante é manter as boas relações entre o negativo e positivo, em equilibrio não faiscante; suster quanto possivel ou moderar os apetites por visões de futuros demasiado materiais; nada de excentricidades ou esbanjamentos; nada que exceda o imprescindível simples em matéria de coreografia nos bailados de classe ou transtorne demais o novo grande espectáculo das academias dramáticas da politica. A Promessa do Aquário prepara-se para se instalar em força, com sedes e fomes programadas para horas certas, de acordo com os planos de fundição das ideias e sincronização das respirações, tudo cuidadosamente monitorizado pelos operadores do computador central.

Trabalhadores versus Patronato, fitas antigas de punhos cerrados, teatros do engano com participação de plateias-claques perigosamente volúveis e incontroláveis , ameaças de greves gerais – tudo isso passou temporàriamente à história porque indecente, ilegal ou ultrapassado, ou mesmo politicamente incorrecto; porque impeditivo e atrapalhador doutras tarefas mais urgentes, mais globalizantes, mais preocupadas com a robotização geral e subordinação total do cidadão a esquadras de policia em ponto grande a que seremos convidados no futuro a chamar de governos regionais ou administrações de áreas geográficas com ligação directa à cabeça de polvo que as controlará.

O processo engorda e insinua-se a olhos vistos, sobe às cabeças dos primatas já meio-esquecidos de que nada é definitivo e tudo se transforma mesmo quando se fala em planos de maldade. Teòricamente, pelo menos metade já antegosta o futuro pesadelo dum Estado Geral que promete olhar pelas nossas tesões e ambições, enquanto o resto vacila na dúvida perante os encantos da promessa que irá causar dissabores e desilusões tanto aos que agora descrêm por princípio ou tipo de sangue, como aos que ainda vêem sentido e razão em militarem em partidos de Esquerda ou Direita. E, para o Mal, que ainda funciona com o mesmo e inalterado cérebro de sabedorias velhas, nada é definitivamente definitivo. Como qualquer igreja que se preza, provisoriedade e improvisação são armas do seu arsenal de resposta e reacção e desempenham um papel importante nas tácticas diárias. Hoje pode ser sexta de bombásticas declarações parlamentares em nome da Paz com inicial maiúscula, amanhã sábado de bombas nucleares.

Não que esse desenho do Mal para empurrar a Humanidade para o fundo do barranco onde se lança lixo, sobras de civilização e vómito não esteja condenado ao fracasso último quando pensamos em termos de cosmologia e consciência colectiva universal. Está, e disso há provas de sobejo. Mas que existe plano para feri-la mortalmente ou inani-la neste local e fase da existência, ou pelo menos para roubar-lhe a consciência e o intelecto que a capacita a compreender o seu papel transcendental numa visão do cosmos não subordinada a decretos ou pressões, disso também não há dúvidas nenhumas…

(I Lóv-you-baby, tururu-ru, tururu-rá….)

Direi mais, quando a febre me passsar.

TT

Saudação breve a Ana Carolina

Eu te saúdo oh! Ana Carolina, menina pequenina envolta em cor-de-rosa numa alcofa de ternura entre o olhar doce da tua mãe e a força do teu avô, entre o frio da tarde a anunciar hipóteses de chuva e a minha pressa em te conhecer.

Tu não sabes, mas, minutos depois de te ter conhecido, eu comprei uma embalagem de beijinhos e fiz-me à estrada a caminho de Lisboa. Tu não sabes, mas nessa tarde choveu muito. As terras finalmente encharcadas fizeram deslizar essa água fértil para as valetas. Passei pelas Gaeiras, pela Ponte Seca, pela Sancheira Grande, pela Palhoça, pelos Carreiros e pelo Cercal sempre debaixo de uma chuva que nos anunciava e nos trazia de facto a fertilidade.

E tu dormias descansada nos braços do teu avô, dando à tua mãe um pouco de descanso nas rotinas e nas tarefas diárias perante um recém-nascido. Tua não sabes ainda, mas a fertilidade começa pela água e eu já não via chover assim desde 2003. Aquilo a que chamamos «vida» começa com um momento que se define como «o rebentar das águas».

Pequena e indefesa tu, oh! Ana Carolina, não sabes como gostei de te conhecer e de fazer esta viagem entre as Caldas da Rainha, onde ficaste, e Lisboa, onde te escrevo esta saudação breve e emocionada.

Vejo naquela chuva que caiu poucos minutos depois de te conhecer um anúncio de vida e de alegria contra a aridez hostil da seca do ano que passou. As valetas da estrada velha entre as Caldas e Lisboa ficaram cheias de água nessa tarde em que te vi pela primeira vez. E os meus olhos cansados ficaram com uma neblina de alegria. Graças a ti oh! Ana Carolina e à tua alegria cor-de-rosa dentro de uma alcofa de ternura.

Porque o teu rosto envolto em rosa foi uma presença efectiva no espelho do meu velho Citroen, cinzento e cansado. E cheirava a maçãs no pequeno habitáculo entre a pressão da chuva e o negro do asfalto da estrada velha das Caldas até ao Cercal.

José do Carmo Francisco

Aborto, uma polémica de sempre

De Ana Cristina Leonardo recebemos este informado ensaio que, com prazer, pomos à vossa disposição.

Portugal reinicia uma discussão onde parece continuar a haver demasiado «ruído». Ou como alguns temas nos recordam os limites da razão humana.

«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.

Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida.


Ana Cristina Leonardo

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Talvez

Estava nas mesas de voto em 98. Comecei a ser chamado em meados dos anos 80 e deixei de receber a carta assim que as convocações passaram a ser pagas. Mas nesse Verão ainda não se recompensavam míseras ganâncias, ainda era o tempo dos que ofereciam o seu tempo, dedicação e responsabilidade à democracia. Por isso, foram poucos os que apareceram. Tão poucos que foi necessário juntar diferentes mesas de voto em salas comuns, por falta de gente até para cumprir os serviços mínimos. E tão poucos os que foram votar que o Colégio S. João de Brito parecia assombrado, os longos e escuros corredores silenciosos. No bar atendiam-nos ao chegar. Nunca lá houve domingo de votos mais desolador.

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Esta pergunta, e não outra

Peço mil desculpas – e mais uma – ao Público, mas este texto de Rui Tavares, de hoje, tem de ser lido pelo maior número possível de pessoas. E eu já paguei para o ler. Aqui vai.

Uma pergunta directa para uma resposta honesta

A pergunta a que vamos responder no referendo do próximo dia 11 é compreensível para qualquer pessoa que saiba ler e isso é algo que nenhum contorcionismo político ou gramatical poderá mudar. “Concorda com a despenalização…” A despenalização é, evidentemente, a palavra-chave desta pergunta. É talvez surpreendente, mas o referendo do próximo dia 11 não é acerca de quem gosta mais de bebés, tal como não é acerca de quem mais respeita o sofrimento das mulheres. A pergunta do referendo também não é “dê, por obséquio, o seu palpite acerca de quando é que a alma entra no corpo dos seres humanos”, matéria que sempre intrigou os teólogos. Não é acerca de quem gosta de fazer abortos e quem gosta de dar crianças para orfanatos. Por isso e acima de tudo, devo confessar que sofro de cada vez que ouço na televisão jornalistas falarem dos dois campos em debate como o “sim ao aborto” e o “não ao aborto”.

Rui Tavares
«Público» de 3 de Fevereiro de 2007

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O sorriso de Maria José

Na carruagem azul do Metropolitano de Lisboa, na Linha Verde, num fim de manhã cinzento, descubro um inesperado e doce sorriso. É Maria José que vem de um café com a sua irmã Hermínia na Baixa-Chiado e regressa a Arroios com o almoço em perspectiva. As mulheres são as mães dos milagres. Outra coisa não posso eu chamar a este encontro feliz que transformou a soturna carruagem do Metropolitano numa verde e alegre camioneta a caminho de Arganil mas com destino final em São Romão. De súbito era como se estivéssemos no meio de uma camioneta com cabazes de verga no tejadilho. Com pão e queijos, com fruta e vinho, com bolos de mel e azeite, com chouriços e morcelas de arroz. Da voz e do sorriso de Maria José vinha uma alegria do campo no meio de um transporte da cidade. Uma alegria pura e genuína tão pura e tão genuína como os sabores dos cabazes de verga no tejadilho da camioneta que eu imagino só de olhar para o sorriso de Maria José. Continua a ser a mulher-menina sempre pronta a desfazer o tempo, a ignorar a cronologia, a rejeitar as emboscadas do bilhete de identidade. No sorriso de Maria José o tempo não passa e é sempre lugar de alegria. As mulheres são as mães dos milagres. Por isso Maria José transforma o tempo e o espaço de quem a encontra no fim da manhã. Ao lado ninguém percebia, mas eu não me vou esquecer. O sorriso de Maria José veio obliterar – inesperado verbo para um encontro – o fim da minha manhã cinzenta no Metropolitano de Lisboa. O meu bilhete foi obliterado e muito bem obliterado pelo inesperado e doce sorriso de Maria José, na carruagem que lembra o velho autocarro verde com cabazes de verga no tejadilho.

José do Carmo Francisco

Revelação literária de 2007 & Grande Português

Duas semanas com o computador avariado contribuíram para variadas experiências alternativas ao gasto habitual, uma delas a leitura de livro que me deu a conhecer aquele que é já o meu Prémio Revelação Literária para o corrente ano, venha quem vier a seguir. Ao mesmo tempo, a figura entra directamente para a tabela dos meus portugueses favoritos. Estou vencido da vida, a dele, mas não estou só. Para Ramalho Ortigão, este autor foi o português mais brilhantemente completo do seu tempo.

O meu português favorito é o Fernando Pessoa. E é também o Camões. E o Agostinho da Silva. E o padre António Vieira. E o Alexandre O’Neill. E o Ary dos Santos. Casos estes em que Portugal foi essência, não acidente. Agora acrescento Francisco Manuel de Melo Breyner, Conde de Ficalho. O que li foram dois contos, inclusos no livro CONTOS DE OITOCENTOS, Fronteira do Caos Editores, 2006. Trata-se de uma antologia que reúne peças de Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, Maria Amália Vaz de Carvalho, entre outros. O elenco lê-se mais por curiosidade histórica e sociológica do que por proveito literário, contribuindo para o choque da descoberta que me estava reservada a partir da página 161.

O primeiro conto, Mais Uma: Cenas de Província, é o levantamento meticuloso do processo através do qual uma rapariga se decide prostituir por influência da mãe e da miséria. O segundo conto, A Caçada do Malhadeiro, é uma apologia da vingança de morte quando a honra está em causa. Em ambos, a mesma visão naturalista; seja pelo rigor das descrições fenoménicas, seja pela composição cénica, seja pela credibilidade dialógica, seja pelo preciosismo psicológico, seja pela ausência de Deus e dos deuses (ou seja, a ausência da moral e do castigo).

O domínio da técnica narrativa parece-me exemplar. O léxico está ao serviço de um impressionismo contido, mas tão intensamente gravado que se torna tangível, fotográfico, exacto. Somos levados para dentro de cenas em movimento. Somos levados para dentro das pessoas e dos seus movimentos. De tudo se gosta, tudo é natural, está aí. O rico que tenta comprar um corpo jovem está apenas a cumprir o seu papel, a ser coerente com o seu poder; e até oferece contrapartidas benéficas, legitimadas pela comunidade. E o pai que massacra 8 soldados franceses, com a ajuda do filho adolescente, é bom e amoroso, terno; santo. É que um homem deve morrer como um porco, se o for.

Nunca me tinha acontecido: ao acabar a leitura do segundo conto, voltei de imediato a ler o primeiro. E ainda não parei de recomeçar. É assim como ir passear ao Jardim Botânico e ter muita pena de sair.

Notas para a recordação do meu mestre Assis Pacheco

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Foi em Abril de 1980 que o conheci. Infiro isto da data que anotei no exemplar de Cuidar dos Vivos que ele me arranjou. Era a belíssima edição da Vértice, de 1963, que ele foi desencantar ainda algures. De alfarrabistas sabia ele. Ainda aí se lê: «Natal 1963 / Of. a prima / Maria Fernanda». Ignoro de todo em todo quem você seja, mas obrigado, prima ou primo desta Maria Fernanda, por ter-se desfeito do livrinho.

Encontrava-o sempre de fugida, trabalhando ele na redacção de O Jornal, ali à Avenida da Liberdade. Batia furiosamente as teclas (com um só dedo, efectivamente – não é lenda urbana), mas falando comigo, enquanto avançava no «Bookcionário». Não me lembro de tê-lo visto em outro sítio em Lisboa, de almoçarmos juntos, de sequer tomarmos um café. Digo em Lisboa, já que em 1985 teremos jantado em Roterdão, aquando da Poetry International, em que estiveram mais poetas lusos: Pedro Tamen, Melo e Castro, Armando Silva Carvalho, Casimiro de Brito, para só cuidar dos vivos.

A segunda conversa com o Fernando seria muito proveitosa. Tinha-lhe eu dado a ler umas coisitas minhas. «Parece o Mário-Henrique Leiria», disse. Hoje sei que isso desmerecia grandemente do autor do Gin Tonic, mas o importante foi saber, ali, da sua existência. Eu já por então vivia fora, e longe. Escapara-me essa obra cimeira da nossa ficção, cujo autor, de resto, falecera havia pouco. [Contei esta história em 1995, no JL, já o Fernando tinha morrido. Está em Maquinações e Bons Sentimentos, onde reuni crónicas da altura]. Corri a comprar os dois volumes de Leiria, e passei uma tarde inesquecível à beira-rio, em Belém.

Aprendi com o Fernando alguma escrita. Como aprendi com Cardoso Pires. Falo dos cronistas. Quem os conhecer a ambos sabe a que me refiro. Eles escreveram algum do mais belo português que o século XX produziu. Um português impecável, clássico à prova de todas as gramáticas, mas descontraído, fluido, nervurento, cheio de relevos e malícia.

Nunca falámos disso, o Fernando e eu, como nunca falámos de outras coisas importantes. Mas estou em que ele o sabia. Que lê-lo me era um gozo e uma escola. Foi por mão dele que se publicou no JL, em Julho de 1981, o meu primeiro do que iam ser muitas dezenas de artigos. Era uma longa crítica, educada mas feroz, ao livro Língua Portuguesa de João de Araújo Correia. Ainda hoje não me envergonha, vá lá. Tempos depois, haveria de mandar-me ter com o Mega Ferreira, umas portas abaixo. Redigira eu um textozinho faceto sobre a festança pessoana de 85, que se divisava. O Mega, que eu via por primeira vez de perto, percorreu o texto em três segundos e meio (cálculo por alto), dizendo «Publica-se». É daquelas sortes. E eu ia bem recomendado.

Tinha o Fernando sempre plaquetes, artesanais mas cuidadosíssimas, que oferecia aos amigos. Assim tenho (cito sem ordem nenhuma) Variações em Sousa, A profissão dominante, Nausicaah! e A bela do bairro. Tudo isto está hoje reunido, editado primeiro na Hiena, depois na Asa, agora na Assírio. É uma poesia fundamental. Como foi a de O’Neill, como foi a de Sena.

O Fernando Assis Pacheco faria hoje 70 anos? É capaz de ser verdade.

Actualização

Como o meu referido artigo a pretexto de M.-H. Leiria é de 13 de Setembro de 1995, e o FAP faleceu em Novembro, ele tê-lo-á lido, confio.

A Olivetti de FAP – e mais outras coisas de ver e ler – está no blogue do Francisco José Viegas.

E deitam culpas ao Camões

Fernando Assis Pacheco escreveu (veja-se um soneto de 1981, «Por uma cona assim eu perco o tino», ou um poema às «segóvias» da guerra de África) algumas peças de mimosa pornografia. Um poeta assim inspira. Tal como ele próprio se inspirara em Bocage. Tal como, a este, o inspirara Camões.

O sagazmente camoniano José Luiz Tavares tinha coisas assim na aljava, pois tinha. Publicada uma ali abaixo, encheu-se ele de brios e fez-nos chegar as abas do tríptico. Aqui vão. O pretexto é o aniversário, amanhã, de Assis Pacheco? O difícil era arranjar-se algum melhor.

2.

Minha senhora quero enfiar minha maça
em sua nassa assim acavalitados té sana
iríamos com licença da senhora sua mana
hosanas cantaríamos alegria del’ e nossa

nosso feito seria invejado até na nasa
(poisar assim suave sem nenhuma mossa)
em televisão daria audiência grossa
mesmo se à luz desta pobre chama rasa

noite lassa não haveria que minha
maça é bom vigia té grota escura palmilha
ó cadelinha que em lume fazes este molosso

outros te dirão que no coração fosso
lhes fazes eu dou-te só o ardor que posso
como forçado condenado ao poço

3.

amor é foda? eu fui deste celeste
quimbo soba de porrete e cassetete
intendente deste escuro palacete
por isso não me chameis de cafajeste

esgaçar cricas é arte nobre
é fogo que arde e se vê
mesmo se em porno canal de tevê
ou nesta pobre rima pobre

eu não diria suave milagre
esse deslizar da piça até à cona
mas louvo seu acre odor vinagre
néctar para a língua sabichona

ó minha escarranchada puta bela dona
conta-me essa da ovelha e do padre

JOSÉ LUIZ TAVARES

O valor das ideias (dos outros)

Já repararam no novo anúncio televisivo do banco Santander Totta? Aquele em que os clientes satisfeitos vão aparecendo em planos que emergem uns dos outros (num engenhoso mis en abîme que sugere uma matrioshka fractal)? É giro, não é?
Agora vejam, ou recordem, este videoclip dos White Stripes:

Pois.
E o mais engraçado é o slogan escolhido para esta campanha tão original: «O Valor das Ideias.»
Assim mesmo: o valor das ideias (que pelos vistos nem sequer são nossas).
Deixem-me rir.

Complemento directo

Nem só o Fernando Venâncio recorda o aniversário de Assis Pacheco, que se tornaria amanhã septuagenário (não tivesse “tropeçado sem querer” em 1995). A Casa Fernando Pessoa, em conjunto com a família do escritor-jornalista-poeta-boémio, vai organizar um mês inteiro de actividades “assis-pachequianas”. A programação detalhada pode ser lida aqui.

70 grandes anos

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Fernando Assis Pacheco faria amanhã, 1 de Fevereiro, 70 anos. Para recordá-lo em adequada forma, José Luiz Tavares escreveu (e ofereceu-nos) este soneto muito assis-pachequiano.

Posso mesmo dizer-te que gramei esta
foda? Repetir em linguado (ou filete)
os viris uivos que mais que ardor deleite
foram? Caberia em dicionário a lesta

batida em que jamais a seta erra a fresta?
Mas um torpor me vara a língua em que me
alonguei até ao fosso. Fora outra a fome,
serias só cândida fruta na nascente floresta

de espinhaços. Cem foles, porém, não são
metáfora digna pró árduo sugar do piço
descrever. Se acontecia faltar-lhe o viço

arengava-o num trejeito meretriz — lição
de bem foder me deu esta pura niña
pelos couvais onde a poterna se aninha.

JOSÉ LUIZ TAVARES

P.S. Recomendamos à niña em apreço uma proveitosa leitura de Respiração Assistida (edição de Assírio & Alvim).
fv

«Acalmem-se»

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Hoje, no Público, um excelente comentário de Rui Ramos, historiador. Transcreve-se o final.

Quanto a Salazar e Cunhal, que dizem de nós? Divididos por muitas coisas, estiveram unidos por uma grande coisa: a recusa de que Portugal alguma vez pudesse ter um regime igual aos da Europa ocidental. Os seus votos traduzem qualquer incompatibilidade da nação profunda com a actual democracia europeísta? Não é preciso ir tão longe. A votação de Cunhal é provavelmente um esforço do partido que todos os anos faz a Festa do Avante!. Obviamente, nem o PSD nem o PS julgaram urgente colocar Sá Carneiro ou Soares na corrida. O PS e o PSD esperam ganhar eleições. Os militantes e simpatizantes do PCP já só podem ganhar concursos. Deixá-los. E Salazar? O defunto regime terá certamente as suas viúvas e órfãos. Mas suspeito do carácter genuíno deste salazarismo de concurso. A RTP, num lapso de zelo antifascista, omitira Salazar. Foi o que bastou para muita gente votar nele. A democracia vive também deste espírito de contradição e pirraça. De resto, Portugal é um dos poucos países da Europa onde a extrema-direita não conta. Conta na Itália, na Áustria, e nesses faróis da civilização que são os países nórdicos. O vencedor dos Grandes Holandeses foi Pim Fortuyn. Nem assim a Holanda é ainda uma ditadura. Enfim, caso Salazar ou Cunhal ganhem, tentem poupar-se às epilepsias de antifascismo, ou aos alarmes anticomunistas. Nenhum regime acabou por causa de um concurso. Acalmem-se. Nem Salazar nem Cunhal voltam para a semana. Tal como D. Sebastião nunca voltou.

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório