Voltei as costas ao bulício da parte velha da cidade, aos sacos que já cheiram a compras de Natal, à pressa das pessoas nas escadas rolantes dos armazéns e às iluminações da quadra que já estão nas ruas. Uma pequena viagem de Metropolitano é o suficiente para chegar ao Mar da Palha. Com a ponte Vasco da Gama à direita, o Peter lá está à esquerda à minha espera. Um iate, um cais e um copo de gin – eis o lema que, desde sempre, fixei. Não tenho iate, cheguei aqui muito prosaicamente de Metropolitano, mas tenho à minha frente um cais e um copo de gin. Junte-se um livro e uma tosta mista feita com aquele pão tão especial, e temos programa para uma tarde bem passada no Peter do Parque das Nações. Como já estamos no fim do Outono, o dia começa a cair muito cedo. O cinzento vence o azul. Acendem-se as primeiras luzes do lado de lá. Sei muito bem que tenho à esquerda Alcochete e logo a seguir Samouco, Montijo, Barreiro e Seixal, mas o meu espírito diz-me que ali em frente tenho na verdade a Ilha do Pico. As luzes do lado de lá podem ser da Madalena. Estou sozinho na mesa de quatro, mas tenho à minha volta uma solidão povoada. Estão aqui comigo, mesmo sem ninguém os ver, a Eduardina, o Urbano Bettencourt, a Zezinha Lacerda, o Carlos Lobão, o Sidónio Bettencourt, o Emanuel Jorge Botelho, o Álamo Oliveira, o J.H. Santos Barros, o Emanuel Félix. E todos. E todas as vozes. E todos os livros. E todos os filmes a começar por «Gente feliz com lágrimas» de João de Melo e Zeca Medeiros. Sem um iate, mas com um cais e um copo de gin eu posso convocar a paisagem e o povoamento dos Açores aqui no Parque das Nações. E ser feliz. Mesmo se for apenas nestes momentos de alegria breve numa tarde cor de cinza.
José do Carmo Francisco