Sobre a investigação judicial em curso não vale a pena dizer muito mais do que, no respeito pelos princípios elementares do Estado de direito, Lula é inocente até trânsito em julgado. Mas em política o que parece é. E, por estes dias, a conduta lulista não é muito diferente da dos coronéis corruptos que se eternizavam no poder para fugir à justiça. Em Portugal, por exemplo, onde vivemos tempos difíceis com um ex-primeiro-ministro indiciado por corrupção e outros crimes deploráveis para um servidor público, foram muito criticados em certos círculos o silêncio e a atitude distante de António Costa em relação à situação judicial do seu antigo chefe de partido, que fez sempre passar a narrativa de que está a ser vítima de um processo puramente político. Na verdade, e independentemente das motivações do agora chefe de governo, a consequência do distanciamento de Costa face ao processo contribuiu para a saúde do regime e prova que aprendeu com os erros cometidos no início do caso Casa Pia, enquanto líder parlamentar do PS. O que estas duas condutas revelam é, desde logo, a diferença entre uma democracia madura e consolidada e outra à beira do colapso, para gáudio dos saudosistas da ditadura militar.
Nuno Saraiva
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A nossa classe jornalística é muito pior do que a nossa classe política. Algo que não se discute em lado algum porque, lá está, os jornalistas não serão os melhores observadores do fenómeno. Excepções à parte, aquilo que ainda pode ser considerado “imprensa de referência” consiste numa agremiação de comadres que têm um dos trabalhos mais fáceis no mundo: escrevinhar ou palrar as suas opiniões acerca dos malandros dos políticos. Para além disso, e para isso se propagar, cuidam do alinhamento ideológico, partidário ou governativo (conforme as conjunturas e contextos) que os seus patrões estabelecem (explícita ou implicitamente) para os órgãos de comunicação em causa. E não é um acaso o facto de não haver qualquer meio onde se detecte um favorecimento do PS, sendo o contrário quase ubíquo. O DN é uma caixa de Petri deste regime que influencia decisivamente a opinião pública, a vivência cívica e os resultados eleitorais. Daí o interesse em analisarmos a tipologia mais assumidamente política da classe jornalística enquanto instituição, os “editoriais”.
Este exercício do Saraiva é um manual de falácias prontas a servir aos borregos. Cada uma das frases no bloco citado ou é oca ou consiste numa descarada deturpação. Em sintonia, formam a clássica canção do bandido. Vejamos.
"Sobre a investigação judicial em curso não vale a pena dizer muito mais do que, no respeito pelos princípios elementares do Estado de direito, Lula é inocente até trânsito em julgado."
Isto é um sofisma embrulhado numa tautologia. A tautologia consiste na equivalência entre os princípios do Estado de direito e a condição de inocente até trânsito em julgado. Acaso o autor acha que os seus leitores ignoram essa correlação? Pensará que está a dar uma novidade à populaça? Não, ele está é a querer justificar o seu silêncio sobre a “investigação judicial em curso”. Ou seja, Saraiva foge a ter de emitir opinião sobre partes da investigação. Quais partes? A frase seguinte dá a resposta.
"Mas em política o que parece é."
Uma frase oca, um bordão asinino, cuja utilidade é tão-só falaciosa. Serve-lhe para definir o que seja a “política” e, assim, poder falar das partes da “investigação judicial em curso” que lhe interessam neste momento. Pelos vistos, a Justiça brasileira no seu todo, e o actuação dos magistrados brasileiros neste caso, não pertencem à esfera da política ou não podem ser também avaliados politicamente seja quanto a actos, omissões ou consequências desses actos e omissões. Para o Saraiva, “política” é aquilo que os “políticos” fazem que dê para aparecer num editorial da sua autoria ou que seja pasto para explorações à canzana pelos tablóides e simpatizantes do estilo desde que possam atingir alvos da sua predilecção. A expressão “em política o que parece é” valida todas as campanhas negras, as quais, precisamente, chafurdam nessa lógica onde se espalham suspeitas, difamações e calúnias de forma a que os visados sejam vistos pela comunidade tal como são retratados pelos seus inimigos. As frases seguintes cumprem este plano.
"E, por estes dias, a conduta lulista não é muito diferente da dos coronéis corruptos que se eternizavam no poder para fugir à justiça."
Saraiva sabe que existiram “coronéis corruptos”, talvez por ter estudado o assunto, e que entre eles e Lula não há grandes diferenças. Como é que chegou a essa conclusão? Como é que ele se permite comparar um regime ditatorial fundado no medo e em assassinatos políticos com a possibilidade que a actual Constituição brasileira oferece a Lula de obter uma qualquer alteração no processo judicial onde é visado? Para censurar a sua opção adentro de uma democracia e do tal Estado de direito invocado é preciso ir buscar os coronéis? Que nome vamos dar a uma escola de jornalismo que segue estes critérios?
"Em Portugal, por exemplo, onde vivemos tempos difíceis com um ex-primeiro-ministro indiciado por corrupção e outros crimes deploráveis para um servidor público, foram muito criticados em certos círculos o silêncio e a atitude distante de António Costa em relação à situação judicial do seu antigo chefe de partido, que fez sempre passar a narrativa de que está a ser vítima de um processo puramente político."
Dos coronéis de pistola a cavalo no sertão saltamos para Sócrates e Costa. Mais uma vez, pagava para saber a quem se refere quando fala em “certos círculos” que terão criticado Costa pela forma como lidou com a prisão de Sócrates. Certos círculos? Vale tanto como dizer certos triângulos, certos rectângulos, certos trapézios. De quem fala? Esta forma de sugerir que está na posse de um conhecimento especial, ou quiçá de estar em diálogo cifrado com alguém capaz de o descodificar, também é algo que se aprende nas escolas de jornalismo ou vem com a tarimba? A ideia é a de usar uma expressão à prova de verificação para poder espalhar a mensagem. A mensagem é: Costa conseguiu evitar ser apanhado pelo corrupto Sócrates que anda para aí a fingir-se de vítima.
"Na verdade, e independentemente das motivações do agora chefe de governo, a consequência do distanciamento de Costa face ao processo contribuiu para a saúde do regime e prova que aprendeu com os erros cometidos no início do caso Casa Pia, enquanto líder parlamentar do PS."
A saúde do regime a que se refere o Saraiva deve ser aquela que, num ano eleitoral, mete o ex-primeiro-ministro e ex-secretário-geral do partido da oposição na prisão sem que se saiba porquê passado um ano e meio e lançando no espaço público uma selvagem campanha de violação de direitos, crimes a envolverem agentes de Justiça e a mais grave degradação do Estado de direito de que há memória em democracia. Como se trata de Sócrates, familiares e amigos, está tudo bem. Ele que não se tivesse metido na política e que não tivesse amigos ricos, é muito bem feito.
"O que estas duas condutas revelam é, desde logo, a diferença entre uma democracia madura e consolidada e outra à beira do colapso, para gáudio dos saudosistas da ditadura militar."
Sem dúvida, ó Saraiva. Entre o Brasil e Portugal há algumas diferenças de monta, vai sem discussão. Apenas não sei se concordo com a tua noção de maturidade e consolidação no que diga respeito a democracias.