Toda a gente diz que o “meio intelectual”, onde se excomungam à força os virtuosos da reclassificação e desclassificação, apreciação e depreciação, é o mais encantatório de todos. Os profissionais do exagero vão buscar ao poder supremo do Verbo a capacidade sempre renovada de transfigurar o amigo e desfigurar o adversário. Os alucinados que se embriagam com generalizações ligam ainda menos que os outros aos factos, números, objectos, procedimentos, na sua neutra e muito pouco concludente materialidade. Nós, os encantadores do ramerrame quotidiano, na nossa função de mitómanos públicos, somos os delegados das pessoas morais e ficções úteis – Deus, a Pátria, a Revolução, o Rei, o Ocidente, os Direitos do Homem, a Esquerda, a Direita, etc. As lutas pelo domínio, nesta câmara fechada e sonorizada, manifestam-se através de guerras semânticas, com lista de anátemas e devoluções ao remetente, sem outra validação possível além dos decibéis e da superficialidade. Por isso se pode fazer um grande título de jornal a propósito de uma discussão acerca de nada. E com razão: os debaters, em condições de irresponsabilidade óptimas (ruído contra ruído na falta de experiência crucial) podem contar com o nosso prazer feiticeiro de tomar as palavras pelas coisas. É o que mais se ouve em todos os fóruns: a positividade adormece e a polémica desperta. E, no entanto, é impossível atribuir qualquer monopólio aos “agitadores de serviço”, o génio do vazio é o bem da espécie.
Régis Debray, O Fogo Sagrado, (trad. port.) AMBAR, 2005, p. 325