O Homem da Câmara de Filmar_ Dziga Vertov
Este filme mostra, entre muitas outras coisas, miúdas a jogar basquetebol, câmaras de filmar montadas em motociclos, senhoras obesas em ginásios, um chinês a fazer truques de magia para um grupo de crianças loirinhas, alguns sem-abrigo a dormir na rua, uma bicicleta para exercícios em casa, telefones de modelos variados, espectadores numa sala de cinema assistindo a efeitos especiais no ecrã, filmagens do quotidiano urbano a partir de um automóvel descapotável, um parto, montras cobertas de publicidade e topless em praias. Terá sido filmado algures na América, no ano passado? Quase. Foi filmado na Rússia comunista, em 1928.
Há muitos momentos na vida de um cinéfilo em que se tem a sorte de encontrar filmes deslumbrantes, mas quase nenhuns em que se recupera o espanto infantil de descobrir o cinema. Quando esse achado nos faz recuar 75 anos e nos leva para a sociedade onde Estaline tiranizava, esse mundo que nos é tão distante e ignorado da União Soviética no final da década de 20, a lição é dupla: não só o cinema tem caminhos que permanecem por explorar, como também cada um de nós sabe sempre menos do que pode vir a saber, é sempre um ser aquém daquele que pode vir a ser.
Dziga Vertov não é um nome de baptismo, é um pseudónimo. Foi escolhido por Denis Arkadievitch Kaufman para transmitir uma mensagem a quem ainda tivesse dúvidas sobre o que ele queria fazer com o cinema: pôr-nos a cabeça à roda (“dziga vertov” pode-se traduzir como “pião”). Dito e filmado, a sua obra constitui-se ainda hoje como uma proposta estética radical e singular; porque Vertov, nascido em 1896 no que é hoje território polaco, não queria animar as estórias que se liam nos livros, queria inventar a história que só uma câmara pode escrever.
Quando se aborda um objecto como “O Homem da Câmara de Filmar” há matéria para uma vida de estudos. As primeiras três décadas do século XX são um período furioso de transformações políticas, científicas, sociais e artísticas. Um ciclone criativo varre o Ocidente, ponto de fervura do que tinha começado a entrar em ebulição ao longo de todo o século XIX, e cujas primeiras achas foram lançadas no Renascimento, quando a responsabilidade de explicar o real passou em pleno para as mãos da Humanidade. Comparada com esses períodos, a nossa época vive num estado de dormência, uma letargia confortável e anestesiante. Há no presente sementes a crescer do que será o futuro, claro, apenas acontece ainda não estarem desenvolvidas o suficiente para se tornarem plantas ao Sol, para colhermos os frutos. Estamos num pousio, é tempo de adubar. É tempo de reavaliar.
No “Homem da Câmara de Filmar” o desconchavo começa pelo género atribuído, “documentário”. Será um documentário por não apresentar actores nem se propor representar uma ficção, antes acompanhando o compasso de uma suposta cidade ao longo de um suposto dia. Contudo, o que se dá à luz é um exercício de colagem que ultrapassa qualquer intenção meramente descritiva. Quem quiser conhecer os pressupostos teóricos na criação da obra, faça favor, investigue as fontes onde Vertov bebeu. Irá parar aos frenesins do movimento futurista, fascínio da velocidade e dos ritmos da máquina; irá passear-se pelo construtivismo, alergia à arte burguesa considerada fútil, oposta aos interesses do povo; irá sentir o entusiasmo da Revolução Socialista, promessa de uma sociedade igualitária, imune à exploração do homem pelo homem. E depois, que se continue a investigação para dentro do próprio cinema. Que se compreenda a teorização da montagem elaborada por Eisenstein, onde se descreve uma semiótica da relação entre imagens que autonomiza o cinema como expressão artística; que se entenda o fascínio político pelo poder do cinema, o qual levou Lenine a considerá-lo uma arma ao serviço do Regime; que se perceba a crença de ser o cinema, à época, ainda uma novidade tecnológica revolucionária, capaz de mudar o mundo precisamente por conseguir mostrar o mundo como ele é, revelar a “verdade”. Acabada essa aturada pesquisa, estamos finalmente prontos para deitar fora todas as nossas notas, as informações, pois são inúteis. O filme foge a qualquer condicionalismo contextual, excede a própria justificação do autor. É uma celebração genial da fotografia, a tentativa desmesurada de filmar a essência da visão. É de um louco.
Filme mudo, a preto e branco, com partitura musical. Montagem arrebatada, avassaladora, alucinante. Uma cidade composta de outras cidades e lugares. Pessoas a serem pessoas e outras a fingir que são pessoas que não fingem ser pessoas. Planos elegantemente compostos. Movimentos de câmara selvagens. Instantâneos da banalidade. Sobreposições irreais. Máquinas obsessivas. Humanos em êxtase humano. Imagens paralisadas, despidas da ilusão, transpostas para a verdade da mentira. O artifício amassado com o desvelamento. A sombra como génese da luz. E a máquina de filmar a filmar a máquina de filmar a filmar a máquina de filmar.
O que vê o Homem?
Nota: texto publicado originalmente na revista Alice do Clube de Criativos de Portugal e assinado por um Guru qualquer.
a nota final parece-me q.b. relevante. Se este texto não é da sua autoria, deveria colocá-lo entre aspas. Para que não haja confusões.
Opto pela confusão. Mais, o legítimo autor que venha cá queixar-se para ver o que é bom.
a opção é sua. Mas tem nome o autor? Não leve a mal este meu apontamento, ok?
Tem nome sim, “Guru”. Não acha que é um nome ridículo e de um pretensiosismo mesmo a pedir uma coisa destas?…
ok, estamos esclarecidos. Assim tem outro encanto.
reparei agora que nunca assinei os meus comentários. sorry pelo anonimato.
Ainda bem que veio essa assinatura, Nongoloza. Bom material e bons textos, os vossos.
Olha, Valupi, se esse guru que escreveu o artigo no Alice andasse por aqui a escrevinhar no blogue, teria sem duvida uma aliada e camarada na Maggie do PC, mesmo que ela, inocente como é, coitada, não se apercebesse disso muito bem porque trabalha num departamento diferente, mais ligado às massas trabalhadoras e à acção directa Teria Vertog sido, de facto, a excelente guita de “nos pôr a cabeça à roda” no campo das inovações cinemáticas, ou algo mais ou diferente? Quando se pesa o vasto tema de objectos captados pelo olho omnividente (you are being watched!) da câmara mencionados no início do artigo, é realmente de se ficar de boca aberta!. Exactamente o que o meu ex-patrão capitalista fazia quando comprou a sua primeira maquineta de filmar (só havia três como a dele, no Porto) sem nunca ter ouvido falar do “pião” do cinema bolchevista. Puro cinema-verité de pintar à pistola (filma essa gata a mijar, jaquim, que há arte nisso!). Kino-Pravda, para os sabedores entre a malta hipócrita que vai em fitas de cineclubes. Graças a esse pião (melhor seria mona porque pica e gira dos dois lado e já agora homenageie-se o homem, caramba!) fomos poupados à miséria de temos que esperar mais trezentos anos para um melro qualquer com menos sangue judeu nas veias e cérebro denso nos viesse presentear com essa tremenda descoberta.
Vem, podes vir quantas vezes quizeres falar-nos de cinema para desenjoar os menus de sábado. Gosto disso como do resto. O que lamento é nunca ralares-te com o trabalho precioso de nos mostrares a fita sem cortes nem censura, de só tacteares o terreno firme da dentada anti-stalinista da praxe, de não focares com mais nitidez os retratos dos artistas que tu e a Alice nos convidam a admirar. De Bertoldos e Vertogs está a malta farta. Qualquer artista como o artista das vertigens Vertog que militou, voluntàriamente e de medalha ao peito apesar da sua estranha percepção da arte, como instrumento de propaganda dum sistema politico de imposição de ideias pela força, não merece a minha simpatia, por mais voltas esquisitas que dê às lentes, à parafernália teatral, ou ao pincel. E, vejam só, o homem também era filósofo! O drama, dizia ele, “é o ópio do povo”. O Marx teria gostado desse brincalhão que nunca produziu nada que fosse realmente proibido pelo regime de Staline. Até teve a liberdade e a paz de morrer corroido pela doença e provavelmente nunca (?) se apercebeu da existência de gulagos e doutras barbaridades. Very wise and artistic indeed! Say cheeeeeese…..
Companheiro G.F., desde que te deu para a heteronímia selvagem, crias-me dificuldades de nomenclatura. É que discutir com um tio pode resultar em problemas familiares.
Bom, sei bem que trazes na sacola memórias várias do meio cinematográfico, e não por ouvir dizer. Tu andaste por lá, nos bastidores do sonho. Se falo disto é para melhor introduzir a questão: que importa a circunstância da época perante uma obra de arte?
O indivíduo pode ter sido herói ou velhaco, alguma coisa pelo meio. A obra ficou como objecto que transcende o autor. É disso que eu falo, caríssimo.
E que queres tu dizer com ” o trabalho precioso de nos mostrares a fita sem cortes nem censura”? Explica-me melhor, please, pois pode dar uma conversa saborosa.
Bem Tio Tadeu, o senhor tem um grave problema, e não é ser anti-comunista, é mesmo o da ignorância. Se o Tiozinho se der à saudável arte de exercitar o cérebro vai verificar na vida e obra de Vertov que o senhor não andava de medalha ao peito, até porque foi o próprio stalin que acabou com a carreira de Vertov devido ás suas obras, principalmente o filme “Três cantos a Lénin”, e realmente Vertov foi um dos grandes nomes do cinema e dos que mais contributos deram nesta arte logo nos seus primórdios, infelizmente que mentes fechadas como a sua (a dos Stalinistas)fizeram com que não houvesse mais obras deste e de outros senhores,impedindo-os de trabalhar e criticando mesmo nada sabendo acerca do assunto! Como vê mesmo num anti-comunista como o senho existe um espirito Stalinista. Tanta ignorância…
Leonardo,
Tens razão com essa acusação da ignorância. Tenho andado a tentar abafar isso mas esta merda espalhou-se depressa e agora já não há remédio. Não faz mal, morro eu e nasces tu agarrado à presunção ou suspeita de que o Vertog foi pioneiro dum qualquer movimento utopico ou construtivista que enfeitou uma técnica cinematográfica para entreter saloios.
E é verdade, muito intuitivamente dispenso a ajuda do olho mecânico do Vertog quanto preciso de ver aquilo que anda à minha volta. E até tu podias passar sem ele se tivesses imaginação, independência e não gostasses de marcar passo na procissão dos eruditos que vêem arte ou revolução em qualquer merda, porque tenho a certeza possuis um bonito par de olhos a residirem nessas cavidades cranianas. Em minha defesa, decido a medo que não é arriscado nem injusto nem desmedido pensar que houve muitos milhões de gente simples nos tempos de Verlog que pensaram o que eu, muito desmazeladamente e sem subsídios das forças do anti-comunismo, penso agora. Mas se quizeres que te dê um beijinho pro-comunista nas bochechas, também se arranja: fala-me de música ou pintura com génio e com mensagem, por exemplo, que até talvez te bata palmas. Mas não venhas com as celuloides artísticas que contribuiram zero para a solução dos problemas deste mundo.
Quanto às dificuldades do homem com o stalinismo são mais que evidentes. Ao que parece, nunca foi julgado, encarcerado ou desterrado. Andou a vender peixe fora da US mas nunca cedeu à tentação de não voltar.. No princípio, arranjaram-lhe um tacho em trabalho de montagem e depois a dar à manivela – conhecimentos de gajos no CC do partido, sem dúvida. Serviu o bolchevismo com lealdade e afinco, cobriu as campanhas contra os brancos, e sempre acreditou na vitória final do marxismo e do comunismo com o auxilio das lentes. Depois deu-lhe para a inovação, talvez vergando ao peso da ambição de alguem que precisa dum nome que seja falado no resto do mundo. Humano. Fez vários filmes, alguns dos quais nem sequer foram vistos. A medalhita chegou-lhe mais tarde com os tais Três Cantos a Lenine com alteração de fecho para agradar ao Staline. E arrumou as botas. Isto é, mandaram-no para a secção de notícias do Estado, uma prova de que ainda confiavam no homem, senão não o deixariam trabalhar na fábrica ofical das aldrabices. A grande vantagem de se ter muitos amigos judeus na direcção do partido. Afinal não se pode dizer que Vertog tenha realmente sofrido muito com a perseguição stalinesca. Nesse aspecto até sofreu menos que o Mário Soares que teve de andar a comer camarão grelhado em Cabo Verde.
A concluir, deixo-te a célebre e arrogante marca registada do inspirado Vertog que já deves conhecer: “Eu sou olho. Sou um olho mecânico. Eu, uma máquina, estou a mostrar-te um mundo dum tipo que só eu posso ver”. Olho mecânico ou olho dum robot de pele e osso a querer ensinar-nos a “ver” como ele?
Besides, what is the real intention of a man who wants to show us a world that only HE, or the machine, can see? Fuck that.
Então, Tio, não queres ensinar o sobrinho?