Recomendo vivamente a crónica do devoto João César das Neves hoje no DN. Decidirão se hão-de rir, suspirar ou, na ausência de uma mangueira, ir tomar duche. O postulado é o seguinte: nesta como noutras crises, há que conhecer os que apelidamos de “maus” ou inimigos. Veremos que são pessoas como nós. Dito assim, isto é bonito. «A maior parte acusa os políticos, os corredores do poder, salas de ministérios, gabinetes do Parlamento. Lá estão os manipuladores emproados que roubam o povo e destroem a liberdade.» Errado, para César das Neves, mas só agora. No entanto, ficamos rapidamente a saber que César das Neves tem também em mente as acusações aos especuladores financeiros, aos gestores bancários, à China, ao clube de Bilderberg, enfim, aos mais óbvios inocentes no meio do retrocesso económico e social a que assistimos no mundo ocidental. Mas trata-se, para César, de teorias da conspiração. Tais entidades não existem enquanto tal.
Ora é pena que haja quem assim descreia, porque, de facto, (digo eu) os interesses de uns ou outros não são necessariamente os interesses do grosso dos cidadãos comuns nem dos povos dos diferentes países, pelo que será, sim, a todos os títulos útil conhecer as razões, os objetivos, os instrumentos ou as armas de que cada grupo se mune para prosseguir os seus intentos ou políticas, nos quais se incluem a ganância pura, o prazer do jogo, o desafio das regras, o abuso ou a manutenção de poder ou simplesmente o aproveitamento de oportunidades. O colunista é, porém, mais cristão do que isso e também mais cego – neste mundo, para ele, não há colisões de interesses. Há apenas pessoas. Pede então César que se olhe para o nosso ódio de estimação, qualquer que ele seja. Nas suas palavras: «Apesar da propaganda cinematográfica, na vida real esses seres míticos (monstros, zombies, extraterrestres ou psicopatas (mas, dr. Neves, estes existem) não existem. Só cá estamos nós. No local de todos os males há apenas gente. Pessoas que tiveram pai e mãe, que amam, sofrem, têm sonhos, desilusões, medos e alegrias. Todo o mal do mundo é feito por gente.» Ah, se há um ano o espírito cristão não tivesse excluído o primeiro-ministro de então! Bom, mas há mal, ele, pecador, se confessa.
«Este é o ponto central do exercício: ver o inimigo como uma pessoa. Vê-lo como próximo. Alguém como eu, que olha as coisas de forma diferente da minha. Às vezes, é preciso dizer, sou eu mesmo. De facto, ao definir a causa suprema do mal, muitos incluem aí gente como nós. Árabes e chineses acusam os ocidentais e vice-versa, como patrões e sindicatos, alunos e professores, clientes e lojistas se vêem mutuamente como culpados. Ora no banco dos réus as acusações parecem bem diferentes.
Mas se são gente, como podem fazer as coisas horríveis de que os acusamos? Como podem ser tão sedentos de dinheiro e poder? Tão obcecados pelo lucro e glória? Tão insensíveis ao mal alheio, miséria, injustiça? Como podem ser como são? Há várias respostas para a questão, todas educativas.
A explicação simples é que, afinal, não sejam como eu os vejo, e a minha acusação seja falsa. O mundo é muito mais complexo que as minhas teorias. As certezas que obtive por extrapolação linear, e que acabam na acusação taxativa, estão bastante longe da verdade. Ver o ponto de vista do inimigo ajuda a perceber isso. Nesse caso eu terei de abandonar o que me é mais querido, o meu ódio de estimação.
O ódio é sempre mau conselheiro. Mesmo quando tem razão. Por muito simplista que a minha teoria seja, ela tem sempre um grão de verdade. Conhecemos casos de pessoas sedentas, obcecadas, insensíveis. Afinal os seres humanos podem ser horríveis. Eu sei, porque o sou há muitos anos. Os homens são capazes do melhor e do pior. Como eu.»
Pese embora o espírito reprovador e bondoso que perpassa nestas linhas no que respeita à irracionalidade dos ódios centrados em determinadas pessoas, que afinal são humanas como nós, a tese, no que concerne aos interesses de grupos de humanos bem precisos e organizados na sociedade, é totalmente ingénua, disparatada e sobretudo repudiável por convidar à resignação (tão cristã) e ao imobilismo. Quem assim pensa quer que concluamos que, no fundo, toda a gente é boa, toda a gente ama (Hitler, Estaline ou Idi Amin Dada amavam seguramente) e que a vida é mesmo assim, temos que nos conformar. Lembramo-nos, decerto, de quem nos contava essa história, convocando Morfeu.
João César da Neves, fique com a água benta. Vou dar um mergulho.