Todos os artigos de jcf

Vinte Linhas 745

José Águas não é Rui Águas e, já agora, também não é Raul Águas

Quando em Novembro de 2006 fui despedido do Jornal «Sporting» onde colaborei desde Agosto de 1988 e onde fui redactor efectivo desde Janeiro de 1997, alguém (Artur Agostinho) que sabia muito de jornalismo e entretanto faleceu, me explicou duas coisas importantes: Primeiro – foram despedidos vários jornalistas, um grupo, todos com mais de 50 anos de idade, não fui só eu. Segundo – as redacções dos jornais estão a ficar cada vez mais sem memória. Não por acaso um jornalista meu amigo foi convidado a voltar de novo à sua redacção para colaborar mesmo depois de reformado: é que há jovens jornalistas que não sabem muitas coisas sobre o Eusébio e uma delas é que o famoso jogador alinhou no Beira Mar e no União de Tomar. Eles não sabem.

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Vermeer na sua casa de Groote Markt em 1655

(a José Manuel Capelo)

A morte de meu pai, mais conhecido em Delft do que eu /leva-me a transformar o rés-do-chão em taberna.

Catharina toma-me conta das crianças enquanto pinto / e vou passando por este desgosto recente, inesperado / uma sombra mais neste horizonte escuro da cidade / tal como o pintei no meu quadro UMA RUA DE DELFT: / uma casa, um acesso a um pátio, três mulheres e / um céu carregado de cinzento escuro e de nuvens.

Não faço paisagens nem retratos de encomenda / apenas paisagens interiores e retratos sentimentais / com excepção da minha cidade que pintei uma vez.

Interessa-me muito mais a temperatura sentimental / duma casa – a mulher que lê a carta do marido / na guerra, a rapariga que adormeceu à mesa a bordar / uma toalha, a criada que prepara o leite na cozinha / o olhar da mulher preso no olhar do soldado, tudo enfim.

Tudo ou apenas aquilo que pude recolher e para mim é tudo…

Vinte Linhas 744

O tal medicamento é tão maluco como o outro

«Pois eu aqui na aldeia continuo a ler o Aspirina B mas não tenho pachorra para deitar comentários. Agora ler, leio sempre. Acho bem que você não responda mais ao maluco mas este agora, o profeno de qualquer coisa, não lhe fica atrás e é tão maluco como o outro.

Aquela de lhe tentarem chamar benfiquista é mesmo uma alucinação. Ainda me lembro de trabalhar no Pinto de Magalhães, vivia na Calçada de Carriche e muitas vezes nos encontrámos na Alameda das Linhas de Torres, vinha você no autocarro 36 do Rossio para os jogos do seu Sporting no velho peão do Estádio José Alvalade. A sua paixão pelo Sporting, sei bem amigo Zé, é coisa de criança pois já em miúdo em Santa Catarina lia o Jornal do seu Clube na casa dos amigos do seu avô – Josué e Teresa – que eram assinantes. Portanto o tal profeno de qualquer coisa tentar dizer que você é da Benedita é, no mínimo, um delírio.

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Um livro por semana 279

«Poesia reunida 1956-2011» de Liberto Cruz

São dez livros reeditados mais três poemas inéditos de Liberto Cruz (n. 1935) num volume compacto de 556 páginas com novo prefácio de Eugénio Lisboa e anteriores prefácios de Haroldo de Campos, João Fernandes, Fernando J.B. Martinho e do mesmo Eugénio Lisboa.

Numa nota breve focamos apenas dois aspectos. Primeiro: o autor esteve na guerra de Angola entre 1962 e 1964. Os poemas são contra a retórica do Poder. Seja na fala de um primeiro- cabo enfermeiro: «Em Portugal andam a pedir dinheiro para ambulâncias em Angola./ Então eles não sabem que aqui não há estradas?» Seja uma fala do poeta/militar: «Uma coisa é fazer a guerra como quem vive / E outra é fazer a guerra como quem morre». Segundo: ao assinar o livro «Gramática Histórica» em 1971 como Álvaro Neto, Liberto Cruz integrou-se na Poesia Experimental Portuguesa pois os poemas deste livro são inseparáveis da sua visualidade. E também da irreverência como em «Plebeísmos vulgares»: «Um gajo sem cunhas pediu uma Bolsa. Nicles, claro! Dizem que ficou com uma grande cachola. Que artolas

Como nota final registemos um soneto do livro «Caderno de encargos» de 1994:«Passamos todos depressa / Pela vida galopante / E é mesmo por um triz / Que de repente a deixamos. / Alguns fazem maratona: / São corredores de fundo. / Outros na velocidade / Encontram a sua via. / Outros há andando lentos / Em silêncio sem alarde / Como se a vida ganhasse / Quem só é para morrer. / E sem sermos campeões / Chegamos todos à meta.» Mais conhecido como especialista nas obras de Blaise Cendrars, Sade, Júlio Dinis, António José da Silva, Ruben A. e Cardoso Pires, neste livro se revela a total dimensão do Poeta.

(Editora: Palimage, Capa: António Viana/Rita Neves, Foto: Raul Cruz, Prefácio Eugénio Lisboa)

Vinte Linhas 743

Uma nova leitura de «Os pescadores» de Raul Brandão

É sempre uma festa reler Raul Brandão (1867-1930). Por exemplo «Os pescadores» que dedicou à memória de seu avô, morto no mar. O título acaba por ser enganador pois Raul Brandão em «Os pescadores» de 1922 também fala dos homens da terra no Alentejo: «Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário, que goza em Lisboa e que lhe deixa, de quando em quando, uma folha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo a atroz realidade. Fica só o ódio, sob a abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio: com o ódio enche o deserto e enche a própria vida…»

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Vinte Linhas 742

Adelino, tal e qual, entre o sol e o pó

A 210 quilómetros da grande cidade, o sorriso de Adelino convida a um copo na sua adega, com azeitonas e meio casqueiro na mão. Lava os copos na água fria de um garrafão empalhado («Esta é do furo!») e bebemos à nossa saúde e dos netos. Saudamos o passado e o futuro porque o presente são os filhos que estão a trabalhar. Empurra as galinhas com um gesto largo mas elas não desistem. O vinho é morangueiro mas é muito bom.

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Um livro por semana 278

«O Mundo que eu vi» de Genuíno Madruga

Oriundo de uma família de emigrantes, Genuíno Madruga (n. 1950) não seguiu o exemplo dos irmãos e da irmã («A minha América foi a pesca») e aos 13 anos vendeu o seu primeiro peixe (um congro) por 30 escudos. No Peter Café Sport (Horta) Genuíno Madruga conheceu, entre muitos aventureiros do mar, Marcel Bardiaux, cujos livros foram fundamentais para a sua passagem pelo Cabo Horn e pela sua entrada na reservadíssima confraria dos Capitães do Cabo Horn (Chile).

Depois de referir a frase de Bardiaux («Que cemitério de barcos!») sobre os canais da Patagónia, vejamos as memórias da página 91 do livro: «Naveguei sempre que possível pelos mesmos sítios por onde Bardiaux navegou. Por um lado procurei ver e comparar, quais as diferenças ocorridas após cinquenta e seis anos. As ilhas descritas ainda lá estavam, quando ao cascos de navios, nada. Em dois ou três locais, vi restos de navios encalhados, certamente bem mais recentes.»

Este volume de 210 páginas, regista em texto e imagem a segunda viagem de Genuíno Madruga dobrando o cabo Horn do Atlântico para o Pacífico. Iniciada em 25-8-2007 e terminada em 6-6-2009, já antes o grande navegador português tinha efectuado outra viagem de circum-navegação começada em 28-10-2000 e concluída em 18-5-2002. No seu veleiro «Hemingway» deu a segunda volta ao Mundo e só lendo página a página se entende o alcance de um feito como este: mesmo sendo um homem do Mar procura sempre em Terra inteirar-se da vida da comunidades portuguesas por onde passou. Em suma – uma Peregrinação no século XXI.

(Editora: Ver Açor, Prefácio: Carlos César, Testemunho: Fernando Menezes, João Gomes Vieira, João Bosco Mora Amaral, Sidónio Bettencourt, Nota final: Fernando Ranha, Design: Helder Segadães, Fotos: Nuno Sá, Pedro Madruga, Marco Dutra, Margarida Madruga, Beatriz Madruga e André Brandão)

Vinte Linhas 741

Coisas insólitas que acontecem no Aspirina B

O facto de ter atingido o texto «Vinte Linhas 740» veio chamar a atenção para um comentário maluco que foi editado aquando do «Vinte Linhas 500» quando um parvalhão qualquer escreveu o seguinte – «Pronto, já chegaste ao quinhentos, já te podes pôr na alheta». Esta ideia de que eu poderia desistir por causa de um comentário maluco está completamente fora de questão. Eu não desisto por um comentário de um atrasado mental qualquer mas compreendo a ausência de outros comentários aos comentários malucos. E isto porque falo com diversas pessoas que de um modo geral me transmitem uma ideia sobre o Blog Aspirina B – «Leio mas não comento». Almocei nas portas de Santo Antão com um leitor habitual, tomei um café nos Armazéns do Chiado com outro, recebo informações de um outro leitor em Santarém mas há um ponto comum a todos eles: «Vejo mas não perco tempo com comentários». Seja em Ponta Delgada, no Porto, na Ericeira, em Angra do Heroísmo, em Amsterdão, em Londres, em Madrid ou em Paris, os vários leitores e leitoras dispensam comentários para não se misturarem com o lixo humano que por aqui aparece. Mas não deixam de testemunhar esse facto perante mim.

Outro comentário maluco surgiu há pouco tempo no texto «Vinte Linhas 739» sobre o livro «Trabalhos e paixões de Fernando Assis Pacheco» em que alguém, de modo louco, confundiu FAP (Fernando Assis Pacheco) com FAP (Força Aérea Portuguesa). O que eu escrevi foi que tendo FAP nascido em 1937 não poderia ter feito a tropa com HH nascido em 1930. HH é obviamente o poeta Herberto Helder. Mas a vida continua e amanhã é outro dia – esta gente não conta para nada, nada decide nem nada influencia. Ainda bem.

Vinte Linhas 740

Memória para um lagar perdido (foto de Carmen Carvalho)

Depois de 1957 já se pedia em Santa Catarina uma gambiarra emprestada mas até essa data era tudo feito no lagar à luz dos candeeiros de petróleo. A adega era então o esplendor dos objectos: funis, dornas, celhas, cascos, pipas, barris, tinas, esmagadores, prensas, cordas – todo um mundo de objectos e alfaias agrícolas. No Verão meu avô era tanoeiro (além de carpinteiro no Inverno) e ia em Setembro com o senhor Josué (seu patrão) vender a obra à Feira de Rio Maior numa camioneta Dodge alugada de um ano para o outro. O padrinho da minha avó era tão perfeito no fabrico do vinho branco que vinham padres de longe (Salir de Matos, Carvalhal, Vimeiro, Turquel) buscar garrafões de cinco litros para as missas. Eles vinham de bicicleta, eram os anos cinquenta e muitos padres ainda não tinham automóvel.

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Canção para uma noite em Évora (1938) – a Carlos Querido

Meu avô José Almeida na noite

Esperava em vão a carruagem

Que nesse dia partira do Barreiro

Com o cofre para pagar aos homens.

Em Évora apenas os sons da feira

Quebravam a angústia da espera

Dos carpinteiros da Companhia

Construtores dos telhados da linha.

Poucos anos antes no Valado de Frades

Um empregado de seu pai levava

Uma égua mansa pela arreata

Ao soldado chegado de Leiria.

Hoje é diferente. Já pai de filhos

Não acredita nas palavras do chefe

Nem no apontador deste grupo

Atónito na estação da CP em Évora.

Com o bocal da trompete na mão

Aborda um jovem e pede o cornetim

Ali entre a surpresa e a ousadia

No meio do pó do baile rasgado.

Tocou a «Moreninha» e o «Teodoro»

As músicas da moda, anos trinta

Ante o aplauso geral do baile

Logo havia abafado e figos secos.

Cinquenta anos depois contava a sorrir

Há uma fotografia dele com a bisneta

No sol de Março da nossa terra

Sem saber da morte dos comboios.

Vinte Linhas 739

FAP – não eram só os doentes, os enfermeiros também não sabiam

A propósito de «Trabalhos e paixões de Fernando Assis Pacheco» de Nuno Costa Santos o poeta Rui Almeida garantiu uma coisa: «este autor, seu vizinho nas páginas da Revista Ler, vai aceitar a chamada de atenção às gralhas». Vamos ao caso. Na página 17 refere-se o ano de 1942 como da entrada da irmã para o Liceu mas se ela nasceu em 1938 tinha apenas 4 anos e não podia ir para o Liceu. Na página 20 diz-se que FAP em Janeiro de 1954 entrou para os infantis mas a um mês de fazer 17 anos o escalão correcto é juniores. Na página 78 surge duas vezes a palavra «imenso»: gostava imenso e ajudava imenso. Na página 94 refere-se Herberto Helder como conhecimento da tropa em Santarém mas já na página 96 diz-se que foi em casa do médico Manuel Louzã que FAP conheceu Herberto Helder. Sendo HH muito mais velho que FAP não podiam fazer a tropa juntos. Aliás HH estava ao tempo em Santarém ao serviço das Bibliotecas da Gulbenkian. Na página 98 surge a palavra «Carioco» quando é bem Caricoco. Na página 100 faltam as aspas depois de «não acerto com o Zeitgeist. Na página 108 refere-se o jornal República (saíram em 1972) quando se sabe que foi em 1971 – altura em que Raul Rego substituiu Carvalhão Duarte. Na página 173 aparecem «morreu» e «faleceu» de seguida, uma repetição. Na página 194 surgem as palavras «familiares, familiar, família» na mesma frase. Por fim na página 209 na lista dos livros publicados deveria estar a colectânea Retratos falados de 2001 – um conjunto de entrevistas. Uma última nota. A primeira vez que falei com FAP emocionou-me o facto de ter na sua carteira um poema meu publicado no Diário Popular em Agosto de 1978. A última vez que falei com FAP no palácio Galveias na emoção percebi que no Hospital ninguém o conhecia – nem doentes nem enfermeiros. Era apenas o sô Fernando.

Um livro por semana 277

«Manifestos contra o medo» de Luís Norberto Lourenço

Juntar em livro um conjunto de artigos de opinião dispersos por jornais, revistas e fanzines, é aquilo a que qualquer autor aspira. Luís Norberto Lourenço (n.1973) junta em 211 páginas uma intervenção cívica desde 1995 até à actualidade, partindo da ideia-chave de um artigo em 2004: «O cidadão não queria saber da política mas a política queria saber dele».

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Vinte Linhas 738

50 anos depois do primeiro livro – o poeta em Alcoutim

Em 1962 o poeta Fernando Grade estreou-se em livro com «Sangria», uma edição da Guimarães Editores. O seu 29º livro de poemas celebra essa «maratona» com um conjunto do qual, na anterior oportunidade, não houve espaço para nomear esta «Canção de campo e desgraça ao sabor do Guadiana». Ainda a tempo, aqui fica um excerto:

«Correm as brisas sangrentas

No que resta de olivais

Cabelos são como lendas

Presos nas águas do cais.

Ó Alcoutim, Alcoutim

Que vês o rio a correr

Como um pénis ternurento

Nas mamas de uma mulher.

San Lucar fica defronte

Tem casas brancas com gatos

A noite não sabe a uvas

E os beijos são desacatos.

Cruzamos ventos com facas

Baile de sombras e medos

O meu amor por mulatas

Sabe a vinho e a bruxedos».

Vinte Linhas 737

Crónica para uma reflexão sobre as crónicas

O pouco e o muito. Hoje festejo nove anos de crónicas na Rádio. A crónica pode ser a narração circunstanciada e também a notícia ou o registo de um acontecimento mas a palavra crónico define o que dura há muito tempo ou actua lentamente. A crónica vale, muitas vezes, como um quase poema. Liga dois mundos separados pelo esquecimento. A vida à nossa volta está sempre a insinuar uma presença, um aviso, uma interpelação. Apertamos a mão a alguém que nunca vamos conhecer porque os seus dias sombrios escondem um drama sem dimensão: a ex-mulher fugiu e escondeu-lhe a filha mas quem o podia ajudar não o faz porque tem um pacto de silêncio com a sua ex-mulher. Vidas, anos, passado, futuro. O pouco e o muito. Na cidade, centenas de anos é pouco. No programa de rádio, nove anos é muito. A cidade constrói casas novas sobre restos de casas antigas de antigas gerações. Nove anos de rádio é muito sacrifício, muito esforço, muito sangue pisado. O efémero da rádio permanece em coisas quase invisíveis: um telefonema, uma saudação, uma palavra a garantir que nem tudo se perdeu. Houve contacto e a mensagem permanece. Resiste ao tempo. O pouco e o muito.

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Um livro por semana 276

«Trabalhos e paixões de Fernando Assis Pacheco» de Nuno Costa Santos

O título desta crónica biográfica de Nuno Costa Santos (n.1974) sobre a vida e a escrita de FAP é uma homenagem ao seu livro de ficção, editado em 1993, «Trabalhos e paixões de Benito Prada». FAP (1937-1995) nasceu em Coimbra mas odiava as praxes («Era um futrica – não era um estudante de capa e batina») embora amasse muito a sua cidade: «O paraíso o que é? Deve ser a paz com certeza. Deve ser o Verão, a bondade, o estômago cheio, a água do mar e com certeza não haver casas nem gente a mandar em ninguém e tudo porreiríssimo da vida a ver passar uma coisa que não existe no paraíso: os comboios». No bar de Letras em Coimbra já FAP era um incansável leitor – «Fernando Pessoa, Steinbeck, Faulkner, Joyce, Virginia Wolf».

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Vinte Linhas 736

Dissertação para a Lisboa de Mário Vinte e Um

Uma cidade é uma memória mas é também uma sucessão de memórias. Há quarenta e cinco anos, por exemplo, ainda havia eléctricos no Rossio. O «28» descia a Rua do Ouro e virava para os lados da Estrela na Rua da Conceição.

O que Mário Vinte e Um convoca neste quadro é uma cidade em festa, a luz dos telhados como espelho do som da gente que nas esplanadas canta e se diverte debaixo dos chapéus de sol. Depois há gente à janela que conversa e desconversa com quem povoa a rua em frente: cantoneiros do lixo, cauteleiros, memórias de pregões, de aguadeiros e de moços de fretes.

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Vinte Linhas 735

Luísa Dacosta ou o sal das lágrimas (com um pastel de Maria Mendes)

Na solidão de uma tarde feia e triste salvou-me o livro de Luísa Dacosta (n. 1927) intitulado «Na água do tempo» (Quimera Editores). O que me fascina na escrita de Luísa Dacosta não é apenas a fusão feliz da Natureza e da Cultura. Neste diário de 1948 a 1987 pode ler-se a ideia de um compositor como Beethoven («Não há regra que não possa ser quebrada por amor do mais belo») ao lado de um registo da presença da chuva: «Chove. Chove. Chove. Acabou-se para sempre a esperança do sol. Tudo tem um ar desesperançado, de braços caídos ao longo do corpo». A escrita desta ilustre transmontana (Vila Real) faz lembrar Maria Lamas, Irene Lisboa, Raul Brandão ou António Nobre porque mesmo a sua prosa é sempre poesia. Vejamos:

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José do Carmo Francisco à queima-roupa

1) O que é poesia para você?

A poesia é para mim a resposta possível ao absurdo da vida, o sentido do que não tem sentido, a resposta precária e nunca definitiva às grandes interrogações. Metade canção, metade filosofia, é assim que eu vejo a poesia.

2) O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

O principiante deve ler tudo o que diz respeito à poesia. Todos começamos por ser «leitores», eu comecei por ler Cesário Verde com dez anos. Só publiquei o meu primeiro poema adulto aos 27 anos em 1978 no «Diário Popular».

3) Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que destas escolhas?

Três poetas são Cesário Verde com «Cristalizações», Carlos de Oliveira com «Sobre o lado esquerdo» e Ruy Belo com «Aquele grande rio Eufrates». Manuel Bandeira e outros poetas igualmente importantes foram surgindo depois de 1978. E ainda não parei nas minhas leituras e nas minhas descobertas.

Poema autógrafo para Teresa em 14-2-2012

Nos olhos mais azuis do quarto piso

Há um mar a anunciar tempestades

No écran onde o silêncio é preciso

E no vidro onde o vento diz saudades.

Fogo de datas, meses, dias, confusão

Envolve-se no branco dum teclado

Qual praia onde assiste a multidão

Ao regresso do que chega inesperado.

Silêncio por favor está escrito em frente

Não perturbem a consulta os doentes

Nestes olhos azuis cabe toda a gente

Na dor só há iguais, nunca diferentes.

Nos olhos mais azuis do quarto piso

Se convoca um rastilho de alegria

O sol no vidro anuncia o paraíso

No círculo desta luz em cada dia.

ATÉ ESSE MOMENTO

Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó

Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas

Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas

Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece

Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas

Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz

Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono

Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo

Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto