Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Dói-lhe a liberdade

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Berlusconi foi entrevistado por uma jornalista. Uma das poucas que ainda sobrevive nas televisões italianas. Não por acaso, a antiga presidente da televisão pública trabalha no canal menos visto da RAI, que foi esquecido pelo Cavalieri. Lucia Annunziata fez o que fazem, por todo o mundo democrático, os jornalistas. Fez perguntas difíceis, insistiu nelas quando o primeiro-ministro não respondeu e não deixou os insultos sem resposta. Habituado a longos e delirantes monólogos com os seus empregados das televisões privadas e dos dois principais canais estatais, Berlusconi levantou-se ao fim de 17 minutos. A decência e a coragem incomoda os cobardes. Annunziata afirmou, com ele já de pé: «não está habituado a ser entrevistado por jornalistas». Não por acaso, Annunziata não contou, como seria normal, com o apoio do Presidente da RAI. De alguns que, de vez em vez, se lembram que a liberdade de imprensa é a base de qualquer democracia, espero há anos por uma palavrinha sobre Itália, que fica aqui mesmo, na Europa. Mas bem posso esperar sentado.

Comentário (muito) marginal no dia da morte de Milosevic

Do meu ponto de vista, a reflexão mais interessante que pode ser feita a propósito do processo de Milosevic é aquela que questiona essa criatura nova que é a justiça penal internacional, os seus pressupostos e as suas ambições. Por um lado, os mais idealistas dirão que o fim da impunidade dos Estados é um inegável progresso da civilização. Por outro, os mais cínicos recordarão que a justiça internacional será sempre uma justiça de vencedores. A despeito desta cacofonia, tão previsível como confirmada, o tema não pode ser abandonado, até porque está no centro de qualquer reflexão normativa sobre as relações internacionais: como diz Macintyre, prevenir uma prática de dois pesos e duas medidas é o problema maior que a ética tem por resolver. Dir-me-ão que isso nunca será possível, enquanto houver vencedor e vencido, friend and foe, uma classe e a sua oposta. Não importa; a justiça, é sabido, é (apenas) um horizonte. Pela minha parte, tenho que na Haia deviam ter estado também Tudjman e Izebegovic, ou que então se calhar era melhor que não tivesse havido Haia nenhuma. Longe de mim ter qualquer tipo de simpatia pela personagem (a causa do nacionalismo de base étnica é insusceptível de fazer vibrar qualquer corda sensível que haja em mim); mas quando oiço, por exemplo, a Euronews – esse espantoso exemplo de correcção política – a fazer o obituário de Milosevic, não me posso impedir de pensar que a história não pode ser assim tão simples, que a história está ainda por fazer.

Dois comentários

1 – António Pedro Vasconcelos disse na televisão que a Federação Portuguesa de Futebol não tinha nada que mudar o equipamento da selecção nacional e que deveria haver um sobressalto cívico (ele falou de um abaixo-assinado) contra essa prepotência federativa. Em princípio, eu acho que ele tem razão. Para além de me parecer que isto do futebol é demasiado importante para estar entregue apenas à gente do futebol (há uma importante dimensão de representação nacional em causa, para todos os efeitos o Cristiano Ronaldo é mais conhecido que o Prof. Cavaco Silva), choca-me como a APV o despotismo e a insensibilidade com que meia-dúzia de burocratas dispõem do património nacional. Isto em princípio; na prática, não acredito na viabilidade do proposto abaixo-assinado, não creio, para grande pena minha, que a maioria dos meus compatriotas partilhe os meus pontos de vista e julgo que, nisto dos símbolos nacionais, em boa medida “quem pode, pode” e “o que tem de ser tem muita força”. APV defende o retorno ao equipamento vermelho e verde, que é (para além da bandeira da 2ª circular: SLB-SCP) o das cores nacionais; mas se calhar não se lembra que a bandeira republicana também foi escolhida por uma comissão de “sábios”, que o recém-implantado regime recusou a hipótese de um referendo sobre a substituição da bandeira azul e branca e que, consequentemente, também foi por um diktat administrativo que o país passou a ser representado pela bandeira do Columbano. E eu cá estou para os equipamentos um pouco como para as bandeiras: desde que Portugal seja campeão, no limite até podem alinhar todos de pijama…

2 – Ainda a televisão: parece que na tomada de posse do novo Presidente, os deputados do PCP e do BE não aplaudiram o discurso de Cavaco Silva e Ricardo Costa, na SIC, disse que isso tinha sido de mau gosto. Parece-me completamente errado. O PCP e o BE são adversários políticos do novo Presidente, disseram coisas horríveis dele durante a campanha eleitoral e não consta que tenham mudado de ideias entretanto. O discurso de Cavaco tinha um conteúdo político com o qual eles não concordavam e, por isso, não aplaudiram. Não lhe faltaram ao respeito, simplesmente marcaram a sua distância. Cavaco Silva não é um Bragança, que paire acima da vida política: é um actor da política, a política é adversarial e os conflitos devem ser – no respeito da cortesia, evidentemente – assumidos. Ricardo Costa, das duas uma: ou é um produto tardio da escola portuguesa da política videirinha, do respeitinho provinciano e do temor reverencial (julgo que não) ou então confunde neste caso a substância e a forma, sacrifica a política ao protocolo e dissolve o conflito democrático no unanimismo patriótico: acho que devia reflectir melhor no que disse.

Motherfucker, moi?

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Bem podem andar por aí os desordeiros do costume a berrar que o Human Rights Violations Report apresentado ontem pelo Departamento de Estado americano deixa de fora um prevaricador de peso: os próprios EUA. Mas não. Nada disso; hoje em dia, os bravos yankees até são capazes de alguma autocrítica. Se procurarem o capítulo dedicado a Cuba, verão logo que o relatório descreve com minúcia a forma como os direitos humanos são trucidados em Guantánamo on a daily basis:
• denial of fair trial, particularly to political prisoners
• severe limitations on freedom of speech and press
• beatings and abuse of detainees and prisoners, including human rights activists, carried out with impunity
• extremely harsh and life-threatening prison conditions
• interference with privacy, including pervasive monitoring of private communications
• denial of peaceful assembly and association
• restrictions on freedom of movement.

Na ficha do Afeganistão também não se deve dar com qualquer menção a Bagram… E por aí fora, de continente em continente. Assim vai o auto-proclamado farol da liberdade e da decência no mundo.

Tradução simultânea

Ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão-ão, ão ão-ão, ão-ão-ão-ão ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão ão-ão-ão. Ão-ão-ão. ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão-ão ão-ão-ão-ão-ão. Ão-ão-ão ão-ão ão-ão-ão-ão-ão. Ão-ão-ão. ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão-ão ão-ão-ão-ão-ão. Ão-ão-ão ão-ão ão-ão-ão-ão-ão. Ão-ão-ão ão-ão ão-ão. Ão-ão-ão ão-ão ão-ão-ão-ão-ão, ão-ão ão ão-ão-ão.

[O verdadeiro discurso de agradecimento de Philip Seymour Hoffman, sem a voz off meticulosamente sincronizada que os produtores dos Óscares sobrepuseram, à má fila, durante o espectáculo transmitido esta madrugada para todo o mundo.]

Além da Serenella Andrade, o que há de estranho na extracção da lotaria?

Resposta: a patusca invenção das “dezenas de milhar”, apensa a uma das redomas do sorteio. Apesar de a ninguém lembrar dizer “dúzias de ovo” ou “centenas de ano”, a coisa anda por todo o lado: em acórdãos de tribunais, documentos de universidades, discursos presidenciais, entradas da Wikipedia, etc. E neste “etc.” até cabem blogues por norma bem-falantes. Ele há epidemias bem esquisitas.

Idiotia e liberdade

Um idiota que andou durante anos a fazer dinheiro dinheiro à conta de obras de “história” em que negava o Holocausto está preso e a aguardar julgamento na Áustria.
Alguns outros idiotas, que resolveram provocar a comunidade islâmica na Dinamarca com umas caricaturas sem grande graça, vendendo mais uns jornais pelo caminho, são heróis da liberdade de expressão.
Aguarda-se agora a aparição de reimpressões das teses de David Irving em resmas de jornais europeus, outras tantas provas de solidariedade desta Europa tão tolerante.

Henrique Raposo e as suas ideias requentadas

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Quando faltam iguarias novas, é só ir ao congelador buscar uma velharia qualquer e apresentá-la de novo aos comensais. O que o Nuno ali em baixo chama “revelação” é apenas uma ressuscitação de um post já publicado pelo próprio Henrique Raposo. E já aqui analisado.
Agora, aí o temos de volta, a pregar a encíclica costumeira: o terrorismo é invenção de leninistas, o Islão radical idem, Che Guevara era um maluco apostado em disseminar “actos de terror dantescos”.
Para disfarçar o sabor rançoso do left-over, ele acrescenta mais dois dos seus “factos”, mais uma vez com a falta de rigor habitual: “facto um: o terror revolucionário é uma invenção moderna; foi introduzido em 1789 e, no século XX, foi a arma de leninistas e fascistas. Facto dois: antes dos anos 70, o terrorismo era sinónimo apenas de ideologias europeias e não do Islão. A cronologia é uma velhaca, não é?” É pois! O bom Henrique esqueceu-se, mui convenientemente, da campanha de terror levada a cabo pelos fundadores de Israel na década de 40 (seriam leninistas ou fascistas?). Fala de al-Banna (na realidade grande admirador dos fascistas italianos e aliado dos nazis), mas omite o facto de este ter fundado a sua Ikhwan al-Muslimun ainda em 1928, tendo o seu braço armado, o al-jihaz al-sirri, surgido pouco depois, com óbvia inspiração nos camicia nera de Mussolini. A cronologia voltou ao ataque e deu cabo dos “factos” do Henrique.
Ele ainda tem tempo e persistência para de novo recomendar um artigo já antes prescrito. A brilhante peça de prosa onde se prova que o iraniano Rafsanjani é herdeiro da Revolução francesa por… ter usado a palavra “terror” num discurso.
A fechar, vem a “conclusão”, não menos alienada: “tal como o leninista, o islamita é senhor de uma doutrina armada”. Não interessa que Lenine tenha escrito condenações do terrorismo. O que interessa mesmo é deixar, selado pelo infalível e científico “tal como”, a certeza que os terroristas muçulmanos são é filhos do comunismo. E, claro está, muitos deles nunca receberam treino e financiamento dos EUA, quando se chamavam “combatentes da liberdade”…

Memento mori

Ao que parece, a Joana do Semiramis morreu. Assim de repente, no domingo passado. Dado o que entre nós se passou, não consigo fazer o número, adequado para a ocasião, do “apesar de tudo, estimava-a como adversária”. Fico-me pela tristeza de imaginar filhos que não mais terão a sua mãe, gente que por certo a amava e não mais a verá.
Nada conheço da sua vida “real”. Não sei se a conseguiu preencher com as grandes coisas que a sua inteligência e cultura permitiriam. Espero que sim.
Horas antes desse domingo, estava eu a escrever aos meus colegas de blogue a queixar-me das horas infindas que gasto por aqui. E a anunciar uma drástica redução da minha presença nestas “páginas”. O motivo é simples: tenho mais que fazer. E não consigo andar nisto sem ser de forma quase obsessiva: ainda hoje, já gastei sei lá quanto tempo a responder a quem tresleu o meu post sobre o caso dos cartoons.
Agora, mais que nunca, sei que há coisas muito mais importantes do que estas batalhas de HTML. E é melhor tratar delas antes que se faça tarde.

Há uma dúzia de anos, a blasfémia morava em Portugal

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Um cartaz de cerveja San Miguel utilizou a imagem do Cristo do Corcovado. Em resposta, o Patriarcado de Lisboa emitiu uma nota, anuindo a “muitas dezenas de telefonemas”, em que esconjurava esta “completa e grosseira falta de respeito por coisas evidentemente sérias”. Tratar-se-ia de “um abuso intolerável, motivo de escândalo e ofensa para numerosos portugueses”. O assunto, como se vê, chegou às primeiras páginas dos jornais. E chegou mesmo, e esta é a parte pouco conhecida da história, às Filipinas, país ferozmente católico e local da sede mundial da cervejeira. O cartaz, entretanto, já tinha falecido de morte natural, mas a direcção da filial lusa não se livrou de um valente raspanete.
Por acaso, fui eu o autor do polémico outdoor. Uns meses depois, em conversa com um padre meu conhecido, ouvi isto: “e se fosse o teu pai, não te sentias ofendido por o ver assim na rua? Então, estás a ver a razão do nosso protesto”.
Na altura, o que me parecia mais importante era o “impacto”, causar sensação nem que fosse através de primeiras páginas assim. Hoje não o repetiria. Não pelo responso tonitruante do Patriarcado; sim pela consciência de que nem tudo vale a pena para dar nas vistas.

Uma guerra entre gémeos

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A guerra já começou mesmo. Mas, por enquanto, não é entre civilizações ou sequer entre religiões. É coisa mais rasteira e feia: um simples confito entre reflexos da mesma ignorância, da mesma mesquinhez fundamental.
De um lado, os imãs que acreditam piamente que a deles é a única visão certa; que quem ousa entender o mundo de forma diferente é apenas um blasfemo a pedir conversão urgente. Do lado de “cá”, lemos comentários como os que o Daniel respigou. Obras de gente igualmente solipsista, para quem o Outro é fonte de todos os males, para quem só “nós” é que somos, evidentemente, civilizados e tão superiores.
Para quem se entretém hoje a acirrar multidões — acrecentando quando necessário caricaturas ainda mais ofensivas às originais — a provocação de um jornal manhoso é bastante para decretar que todo um continente deve agora limpar-se de um novo pecado original. Para os “nossos” comentadores, sempre tão irredutíveis na perfeição das suas certezas, a liberdade de expressão passou de súbito a absoluto sem fronteiras que não deve ser limitado por qualquer susceptibilidade ou valor do tal “outro”.
Uns vêem do lado de lá turbas selvagens que nada respeitam, bárbaros às portas do império da decência e da justiça. Os outros idem. Todos berram o seu ultraje com este caso. Todos apontam o dedo às abjectas criaturas que se empilham do outro lado, incapazes de decência, sentimentos nobres ou de fazer “sonhar” seja quem for. Todos causam asco.

PS: Será que alguém já se lembrou de perguntar àquela opinião com pernas que sabe tudo sobre tudo como se chamava o homem que, de calcanhar, deu uma Taça dos Campeões ao FCP? Com tanto ardor que os assuntos da bola lhe provocam, se calhar o senhor esquecia esta exibição da sua ignorância mesquinha e passava a admitir que os muçulmanos até podem ser gente admirável.

A jihad

Definitivamente, o incidente dos cartoons e as manifestações, tudo organizado pelos sectores mais radicais do Islão (e que não existiram quando os cartoons foram publicados, num jornal egípcio, em Outubro) estão a resultar às mil maravilhas. Tirando em Inglaterra, onde os textos de opinião vão, na sua maioria, no sentido inverso aos que aqui se têm publicado, a Jihad parece ter tomado conta das cabeças dos nossos articulistas. Três citações, apenas de textos de ontem e de hoje aqui do nosso cantinho, e que estão longe de ser o que de mais extraordinário se escreveu nestes dias sobre milhões de pessoas e toda uma civilização:

«Não conhecemos, em todo o mundo árabe, o nome de um cientista, músico, arquitecto, cineasta, explorador, atleta, enfim, alguém que faça sonhar ou avançar a humanidade.» Miguel Sousa Tavares

«[Uma religião] cujos fiéis explodem de alegria espontânea, quando há atentados como os de 11 de Setembro. Ou gostam de brincar com o Holocausto.» Pedro D’Anunciação

«Estamos num confronto cultural e civilizacional… estamos em guerra». José Pacheco Pereira

Quem leia estas pérolas e ainda tenha uma réstia de juízo há de perceber porque não me quero juntar ao coro dos guerreiros, em que é mais aplaudido quem disser a maior barbaridade (como de costume, Miguel Sousa Tavares leva a medalha de ouro). Todo o direito de publicarem os cartoons. Estão publicados, não estão? Agora, se para defender a liberdade de imprensa nos temos todos de transformar em novos cruzados, eu entrego já a minha armadura a qualquer um destes senhores. Em boa hora mantive a saudável distância desta gritaria.

O meu gadget é mais esquisito que o teu

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Era uma vez o iPod. Um leitor de ficheiros Mp3 pequeno, estiloso e com montes de capacidade. Um objecto de desejo, ainda por cima com a maçãzinha mágica: I gotta have one! Depois, começaram a chegar os acessórios, os adereços, os complementos: capas, colunas dedicadas, emissores de FM, etc, etc, etc. E o pequeno iPod lá foi sendo soterrado por quilos de tralha bizantina, cada vez mais longe da simplicidade móvel com que nasceu. Agora, surge o desenlace inevitável: o comando à distância para iPods. Já pode deixar o seu estimado leitor de Mp3 emaranhado numa bateria de cabos, ou preso a uma qualquer consola indispensável. Com este simpático gadget, por sinal do tamanho do próprio iPod, pode escolher a música que quer ouvir, onde quer que esteja.
Mas não era isso o que já fazia antes?