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Prazeres da língua – 3 (com a devida vénia ao canal, o Odisseia)

Hoje será às 17, repetindo às 22 horas. No sábado, às 11. No santo domingo, já não se toca nele. E depois voltará a ficar escondido. Falamos de um documentário científico acerca do clítoris. Ou do clitóris, como se grafa no livro A História Íntima do Orgasmo, de Jonathan Margolis, em tradução de Fernando Dias Antunes. Constata-se haver aqui uma questão de vulva, perdão, de vulto: onde fazer a acentuação?; onde e como pressionar? Há milénios que as mulheres se queixam do mesmo problema aos homens, sugerindo até uma falta de tónica na sílaba. Felizmente, sempre aparecem uns linguistas mais corajosos ou atrevidos, mais generosos ou requintados, no fundo, mais aplicados, os quais puxam pela língua natural e a levam a percorrer os meandros desses terrenos tão feericamente estruturados.

A história do clítoris é uma fonte inesgotável de prazer (creio que esta asserção é absolutamente incontestável; e se por mais nenhum feito na minha insignificante vida, gostaria de passar a ser conhecido como aquele que elaborou, no campo das ciências humanas, um raciocínio que rivaliza em perfeição com os cálculos matemáticos; mas adiante). Ninguém ignora que Colombo descobriu a América e inventou os índios. E que tal se vos dissesse que Colombo descobriu o clítoris? Diriam que estava a gozar?

O clítoris concorre para o título de entidade mais enigmática no universo conhecido. Biologicamente, aparenta não servir para nada de útil. Então, após 3500 milhões de anos de evolução, que raio está cá a fazer? Também não faço ideia, mas não me queixo. De uma coisinha, assim pequenina na aparência e muito sensível, tenho eu a certeza: quão melhor se conheça o clítoris, melhor se penetra no mistério de tudo.

Professores, explicadores e curiosos, mãos à obra.

Num cinema, perto de mim

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7 de Janeiro de 2007. Domingo. Na Gulbenkian o povo quer Amadeo, aparecem bichas sinuosas. O povo também quer cinema, cinema belo.

Chávenas e copos e pratos ao longo do balcão e na bancada interior do bar. Duas empregadas aturdidas com os incessantes pedidos. Atropelos selvagens dos consumidores de alta cultura na conquista de um cafezinho, aquela fatia de bolo de maça. São seis e meia da tarde, vai começar Au Hasard Balthazar. Bresson.

Shubert interrompido por um zurro. Estamos ainda no genérico. No final, um burro deixa-nos calados. Com os olhos muito abertos. Nós. Muito.

As três e meia da tarde antecipam-se às seis e meia dessa mesma tarde, e isto dura desde o tempo em que há registos do tempo. Neste domingo, na Gulbenkian, não houve excepção à regra do jogo. Quem foi descobrir-se no The River, de Jean Renoir, teve de atravessar os cordões souza-cardosianos. Teve de entrar numa sala que ficou cheia de velhos com espírito jovem e de jovens com gosto de velhos. Teve de rir por ter nascido uma menina. No final do filme, teve de ouvir aplausos.

Quantas vezes se ouvem aplausos num cinema? Não sei. Sei que foi belo. É.

Socorro!

Em má hora me atrevi a desafiar a ira do Norte e agora estou a ser gramaticalmente sovado pelo meu primo JPC, sem apelo e com agravo. E é de corpinho macerado que me vejo obrigado a conceder que só deve obedecer à gramática quem já não consegue aguentar o que sente.

Um bom e infeliz Natal

22 de Dezembro, Lisboa, 18 horas e tal, agência de comunicação, pessoas sofisticadas, entre os vinte e os quarenta anos. Quem vai saindo despede-se com um “Bom Natal!”. A emoção é forçada, resulta em falsete, nalguns casos raia a jeremiada. Outros, os extrovertidos, vencem rendendo-se: soltam a voz, soltam o canastrão, soltam a franga: cantam. [horror!] E todos desejam o mesmo. A todos. Um bom Natal.

26 e 27 de Dezembro, perto do Tejo, 10 horas e tal, 11 horas e tal, meio-dia coiso e tal, agência sofisticada, pessoas que trabalham em comunicação, alguns nos quarenta, muitos nos trinta, vários nos vinte. Quem chega, e quem cruza, cumprimenta com a pergunta “Então o Natal, foi bom?”. A emoção é um fardo, um esgar. As palavras queimam os lábios, saem de jacto e trespassam o ouvinte. Ninguém presta atenção à resposta. As respostas talvez nem tenham som, mesmo aquelas que foram vocalizadas. Responder o quê? É mais fácil dissertar sobre o sentido antepenúltimo da existência.

Apenas por causa desta farsa natalícia, faço uma concessão à felicidade. Porque o problema nasce de se ter trocado uma fórmula testada durante séculos — o “Feliz Natal” — por um exotismo recente que está a ser origem de tragédia sociológica. Naquele tempo, de feliz memória, não lembraria a ninguém perguntar se o Natal tinha sido feliz. A felicidade tem essa tão aliviante qualidade: arrasta um pudor, ou um fastio, que anula a curiosidade, impõe sacro respeito. E desejar “Feliz Natal” gera fenómenos miméticos, psicossomatismos saudáveis por movimento associativo. O pessoal, nesses segundos elocutórios, ofusca-se numa hiperbólica e disforme encenação da felicidade — que é consolo, júbilo. Mas quando se dá como bitola o adjectivo “bom”, tudo fica reduzido a uma escala, obriga à mensuração. Porque o “bom” é maralha, anda metido com o “melhor”, o “mediano”, o “sofrível”, o “excelente”, o “fantástico”, o “medíocre” e até o bera do “mau”. Fica difícil, não nos façam escolher.

Louvada seja a felicidade, uma só vez ao ano. Para o resto do calendário, estão a valer as palavras de Flaubert, carta a Louise Colet em 1846, que permanecem definitivas:

Etre bête, égoïste, et avoir une bonne santé, voilà les trois conditions voulues pour être heureux ; mais si la première nous manque, tout est perdu.

Gigas

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A presença de Freitas do Amaral na RTP comoveu-me. Falo de presença, e não de entrevista, porque seria indiferente ter tido outro jornalista ou outro elenco de questões. Freitas é igual a si próprio, o que o levou para o percurso heterodoxo que incomoda tanta gente. E que o incomoda a ele. E que me comoveu.

Da direita à esquerda, da autarquia ao Governo, o tipo de político mais frequente é um misto de manha, pesporrência e más companhias. O “sistema” está disponível para observação e estudo atento nas juventudes partidárias, as quais servem para fazer a triagem dos eticamente “adaptáveis” ou “versáteis”: permitem ensaiar futuros papéis sem risco de causar prejuízo eleitoral e levam os neófitos a iniciarem-se nos benefícios da carreira política; havendo abundância de opções laborais, confortavelmente remuneradas, para entreter os rapazes-boys. Mas ainda mais embriagante do que a materializada segurança financeira e social é, ui!, a inefável sensação de impunidade. O Estado e seus recursos, a Lei e a Ordem, aparecem sarapintados a duas ou três cores (não mais, não mais…) nas pupilas dos políticos de profissão, permitindo localizar com rigor as zonas de protecção e influência. E os almoços e jantares, as festas e eventos, os aniversários e casamentos, vão selando outras negociações com as cores concorrentes. Todos ganham, desde que sejam discretos, porque todos procuram exactamente o mesmo: um sistema alternativo — e muito mais eficaz e eficiente, porque muito mais controlado e restrito — de redistribuição da riqueza.

Ora, Freitas, num passo do seu testemunho, disse que é do a-b-c da política começar os preparativos para a reeleição logo a partir do momento em que se é eleito. E disse-o com a impaciência alegre de quem explica a uma criança como usar os talheres à mesa. Este nada no meio do discurso, que nada suscitou na jornalista, é na sua cândida formulação um curso inteiro de ciência política. Se o político deve, em boa prática disciplinar ou artística, tentar garantir a reeleição, dai decorre que essa avidez é inevitavelmente o seu maior objectivo político e o primeiro do seu programa. Porém, como o político reconhece a desvantagem de assumir publicamente esta regra tácita da sua actividade, não a vai comunicar ao eleitorado, nem a admite em caso algum se calhar ser interrogado. Tem, então, de mentir; isto é, mente ainda mais alucinadamente.

Eis que vi Freitas do Amaral como nunca o tinha visto antes. Um homem a carregar peso dilacerante às costas, as quais se mostravam fracas para tal fardo, tanto física como moralmente. Porque nele coexistiam, em paridade, a estátua idealista e o cimento realista, o projecto de serviço e o plano de poder, a ilusão criativa e a desilusão pragmática, a identidade e a tentação. Como tal, foi supinamente educativo colher a ambivalência com que falou de Cavaco Silva. E o mais extraordinário, dentro desse extraordinário registo, consistiu nisso da genuína gratidão se saber, em concomitância, maquiavelicamente traída. Falta um coevo Shakespeare para esta tragédia.

Comove-me a transparência deste homem, que é coragem. Comove-me a sua grandeza, que é verdade. Comovo-me pelo falhanço da sua ambição, com o acerto da sua vida.

Que futuro para o pretérito perfeito?

Agora que todos, incluindo bravos ateus e petrificados marxistas, estão submergidos pelo melífluo tsunami consumista do Natal, e ainda menor é a disposição para blogues e seu cortejo de irrelevâncias, parece-me o tempo próprio para partilhar uma raiva cada vez mais quotidiana; e talvez bizarra para a catatónica maioria dos meus patrícios. Trata-se do take over hostil que o presente do indicativo vem fazendo ao pretérito perfeito do mesmo. Posso estar douradamente enganado, sugerindo que o foco da epidemia se situa algures na região do Porto e é corrupção amplificada pelos dirigentes futebolísticos invictos, mas em muito a praga ultrapassa essa fauna e já invade outrora imaculados santuários. A gota de fel foi ter constatado, ontem, que o vírus chegou à TSF, tendo o locutor (jornalista?…) largado um falamos quando o sentido temporal da acção obrigava a um falámos. Uma vez que está em causa a TSF do Fernando Alves, implacável capataz do rigor gramatical da sua equipa (ou assim era, em época não tão distante), é caso para ficarmos apavorados. Fenómenos há assim na oralidade, em que o desvio, de tão frequente, perverte a própria capacidade de discernir a norma. Língua viva, óptimo, mas excesso de vida é letal — ou será que andamos a querer destruir o que andámos oito séculos a criar?

Tragédia na SIC Comédia

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Constou ir acabar. Chegaram a passar a notícia em rodapé. E se calhar vai mesmo. Ou já não. Mas se acabar vou perder o Leno e o Conan. Dois exuberantes exemplos da vitalidade da democracia norte-americana. Dois cómicos que fazem crítica política subversiva, porque aparentam estar só a servir inócua diversão a mando do grande capital e demais imperialismos nefandos. Mas neles a fiscalização da incompetência dos políticos e vacuidade das figuras públicas não é escabrosa, imbecilizante ou medricas. E a estes dois ainda se deve juntar, por maioria de razão, Jon Stewart (SIC Radical), o qual se atira ao gasganete do Poder.

Portugal não tem ninguém que faça humor com tal inteligência, coragem e propósito cívico. Portugal não sabe rir, nem consegue chorar.

Bento&Bento

Um foi ao terreno do mais odioso adversário e ganhou. O outro recebeu o mais dilecto rival e perdeu. De um disse-se que, afinal, até sabia o que fazia. Do outro disse-se que, afinal, não sabe o que faz. Ambos treinam as suas equipas desde 2005. Ambos são a volúvel sombra dos resultados.

Blogues que marcam

O recente post do Luis faz-me antecipar uma reflexão que, no meu ritmo de tartaruga dos Galápagos, tinha previsto introduzir lá para 2016. Refiro-me à ambiguidade intrínseca, e irresolúvel, dos blogues enquanto objectos mediáticos entalados entre o angelismo de se sonharem órgãos de imprensa e a bestialidade de se saberem voluntarismo e aleatoriedade.

Uma parte do que o Luis escreve é expressão da sua pessoa e respectiva weltanschauung; logo, é matéria que apenas diz respeito a quem se identifica com os parâmetros ideológicos assinalados. Mas o restante, aquilo que manifesta uma concepção do que deve ser um blogue, suscita-me a crítica. De facto, e servindo-me do exemplo, ninguém no Aspirina tinha assinalado o 1º (e último?…) aniversário. Há boas razões para tal, a começar pelo facto de todos os seus membros fundadores, de uma forma ou de outra, terem debandado. Uns saíram, outros ausentaram-se, outros afastaram-se. Contudo, haveria ainda uma melhor razão, boicotada bondosa e involuntariamente pelo Luis: não haver nada para celebrar. E não me refiro particularmente ao Aspirina, que não precisa dos meus encómios. Não há nada para celebrar na quase totalidade dos blogues, eis a realidade. Que eu conheça, só o Abrupto mereceria aniversários e foguetes, tão distinto e profícuo é o produto que oferece à populaça. Mas o resto?!… Não há mérito nenhum em emitir opiniões ou em fazer uns malabarismos literários — ainda por cima usualmente banais, quando não pífios. O mundo não carece de mais opiniões ordinárias, desconfio.

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Interpolar

O EQUADOR continua a influenciar o clima blogosférico, contribuindo para estes dias de S. Martinho estival em que muita castanha está a ser distribuída. O nosso amigo Jagudi aproveitou a distracção para injectar um composto de alta inteligência numa caixa de comentários, o qual recolheu célere o selo de garantia do Fernando. Generosidade tamanha não é para desperdiçar.

Qualquer um reconhecerá em MST o cronista exemplar das fealdades paisagísticas a que uma corja de patos-bravos, e os portugueses em geral, vêm sujeitando o país todos os dias. Ou o que nos ajuda a distinguir a América da liberdade original e dos direitos fundadores, da perigosa América actual, conduzida por fanáticos medíocres. Ou o autor de reportagens e relatos de viagem como os que nos deixou em SUL. MST tem a ousadia, a lucidez e o desassombro que ao jornalista competem. O que ele não tem é o sentido estético do ficcionista. E não manifesta saber, em EQUADOR, que o trajecto da ficção narrativa é multifacetado, mas segue um caminho tão estreito como o fio duma navalha. Onde o artista se estatela ao mais ligeiro escorregar do pé.
Tendo presente quanto há de pessoal e subjectivo na apreciação duma obra, dir-se-á que EQUADOR não passa do sofrível. Tem uma história a contar e muito para dizer, já isso não é pouco, se anda este mundo pejado de figuritas imberbes a dar-se por escritores. Mas é um trabalho desequilibrado e prolixo, a espraiar-se em secundárias peripécias longuíssimas, que apenas lhe roubam vigor e o empobrecem. O todo ganharia com outra economia.
Há nele situações mal cosidas, em que o pesponto se vê. Mas o grande senão é o modo de contar, que nada de novo nos propõe. Não se conta hoje uma história com as técnicas narrativas, o tipo de linguagem, os mesmos exercícios e recursos dos finais do séc. XIX. Ainda por cima sem a artilharia requintada que nesse tempo alguns sabiam usar. A técnica primaríssima e descuidada de que MST faz uso, se é apropriada e eficaz num trabalho jornalístico, resulta de todo inadequada, e gasta, e anacrónica em literatura. Por isso o seu efeito estético é nulo, já que também o jogo sonoro da frase, a harmonia e o ritmo do discurso utilizado são ausências. Ora nada disto a literatura pode dispensar, por infindável que seja a discussão sobre o que ela é.
Lá onde MST brilha é quando se conserva no seu campo. É quando analisa, quando aponta, quando denuncia, quando levanta o véu da nudez dum império a fingir. O seu EQUADOR vendeu muito, com mais proveitos para o editor que para a literatura. E os leitores.

Jagudi

Belas, inteligentes e anónimas

Boa lembrança a do Gibel. A SOCA tem um ano preenchido com blogoliteratura de gineceu. Nesse efémero feminino, encontramos a mesma dinâmica que em qualquer outro blogue, singular ou colectivo, com começos apaixonados e curvas descendentes de participação. O que se produziu neste ano de vida, porém, é material de inquestionável interesse antropológico, sociológico e psicológico — porque servido por um nível médio de qualidade de escrita que consegue notável compromisso entre o conteúdo e a forma. Não sendo um blogue com qualquer pretensão estilística, nem ideológica, habita num reino lúdico onde há cupidos e bestas furiosas em feminil harmonia. Encantador, pois.

Chamo a atenção para algo que transcende o projecto, e que é filão para editores que ambicionem vender o que publiquem (aspecto que deveria ser óbvio, mas que num País sem cultura capitalista se torna esconso). Trata-se da colaboradora Fox Trotter, recentemente desvelada como sofrendo de múltipla personalidade. Ela relata as suas experiências sexuais de um ponto de vista que os homens desconhecem por fatal limitação cognitiva, assim contribuindo para se continuar a desacreditar Freud e outros amantes de charutos. Com mais material reunido, era best-seller garantido. Cá vai um exemplo, com erro ortográfico charmoso e tudo a que temos direito:

Amorzinho, vai-te foder

Acordaste a minha líbido, que tanto demorei a silenciar. Eu, que nos dias em que fodia, fodia todos os dias. Não queria o grelo aos saltos e as mamas duras, a língua a tocar na aresta dos dentes em antecipação. Nem o torpor insensato nas depressões internas das coxas, enquanto sentia escorrer a vontade pelo eixo de simetria. Consegui deixar de me foder com os dedos porque estava farta de me vir sozinha.
Chegas, fascinas-me com palavras. A minha tesão com a tua voz. O teu cheiro, pele, as duas mãos. Rendes-me nua, viras-me de costas, do avesso, prendes-me o corpo à distância do teu. Prendes-me o corpo, presas as mãos (para que não te possa tocar). Dás-me finalmente a língua e penso que te vou ter. E então vais-te, levas-me o sono e deixas, em troca, uma cona a arder.

Papa de sarrabulho

Quase nada foi dito sobre o discurso do Papa Bento XVI na Universidade de Regensburg. A totalidade das minhas leituras revela articulistas a tocar as problemáticas pela rama ou a saltar para fora do texto com velocidades superiores à da luz. E ninguém os poderá censurar, posto que a alocução é intempestiva, dirige-se a intelectos que não sejam só deste tempo; isto é, convoca inteligências de compreensão lenta.

Nos planos da dinâmica paranóica dos meios de comunicação e das ocultas estratégias políticas, o assunto está esgotado, regressando no próximo round. Esticou-se a “reacção islâmica” até parecer o que não foi, saboreou-se o embaraço do Vaticano, cresceu a impaciência das elites culturais perante o fanatismo religioso e ensaiaram-se umas chicuelinas onde se toureou a Razão e nela se espetaram uns ferros com fé. Não foi pouco, mas pouco se aproveita.

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O melhor blogue do mundo

Não apanhei o período da paixão pelos blogues, os anos de 2002 a 2004. Estava de ressaca, anteriores experiências comunitárias na Internet tinham-me já revelado o essencial e o acidental nisto de se comunicar com anónimos através de um teclado. E, talvez por ter começado num outro formato, pouco me fascinou, me fascina, nos blogues.

As leis da selecção natural também se aplicam na blogosfera. Stultorum numerus est infinitus, e nada como a Internet para o comprovarmos. Passado o ciclo da novidade — e exceptuando aqueles que, por variada causa, são militantes do meio ou se sentem obrigados a dar notícia de terceiros — ficamo-nos por um conjunto muito limitado de autores. Olhemos para a listagem de blogues referenciados aqui no Aspirina, por exemplo. A maior parte deles está activa, alguns mantendo um ritmo intenso. Quantos visito regularmente? Dois. Um deles é o melhor blogue do mundo.

O que Pacheco Pereira faz é admirável, sob qualquer ponto de vista. Primeiro, oferece conteúdos intelectualmente superiores num discurso acessível para o leitor médio (tal como faz na imprensa, onde alia o rigor da reflexão à simplicidade da argumentação), expondo a sua erudição e amplitude de interesses sem proselitismo. Depois, usa o meio para servir a comunidade, o que acontece com a publicação de e-cartas, fotos, textos de autor (a surpreendente parceria com Agustina), referências à blogosfera e, muito importante, com a reflexão e crítica da blogosfera enquanto objecto sociológico e ecossistema. Por último, mas cada vez mais longe do fim, a sua produção é constante; assim cumprindo a promessa, inclusa na etimologia, de os blogues serem diários e diários.

Com tudo, talvez o traço que mais me impressiona no Abrupto, e na pessoa que o faz, seja a ausência de cinismo. Há melancolia, sim, inevitável consorte da lucidez, e até essa apenas implícita, mas não há expressão do cinismo. O cinismo é imbecil, e o Abrupto é um dos mais poderosos antídotos contra a estupidificação nacional; logo, água choca para um lado, azeite puríssimo para o outro.

Lendo as suas “Regras Próprias“, não há como evitar a conclusão: eis o melhor blogue do mundo. Do meu mundo, pois claro.

SOMOS UM ATERRO LITERÁRIO!

É uma sorte podermos ter o Fernando Venâncio no Aspirina. A sua generosidade intelectual é de uma cepa rara, aquela que quer criar comunidade. E talvez por isso (ou por acaso, que tanto faz) tenha aparecido aqui este desopilante exercício do Renato C., a merecer itálico e acenos de cabeça:

O problema da parvalheira literária deste País não tem origem na estrutura crítica, que melhor ou pior acaba, as mais das vezes, por resultar inócua para o compto das vendas da grande maioria das edições.

O disparate reside, antes, no mesmo velho factor social que de tão devassado e moribundo perverte e arruína todos os demais: a Educação.

À força de uma sólida educação, composta por toda a sorte — ou azar — de lixo mediático com que entopem os neurónios às criancinhas inocentes, na verdade elas nunca passam disso mesmo: criancinhas; a inocência esvai-se, ainda assim.

Basta observar os comportamentos nas estradas, nos restaurantes, nas empresas, nos hipermercados, nas repartições, nos jardins, nas praias, em toda a parte. Aliás, até mesmo neste blogue… O português, essa coisa abjecta, polui com as suas atitudes infantis, inescrupulosas, pouco cívicas e nada inteligentes cada nanograma de ar que o rodeia. Cospe para o ar. Dá tiros no próprio pé.

E isto nem sequer está inter-relacionado com o nível socioeconómico das pessoas… Era bom se assim fosse, que sempre tínhamos a recorrente desculpa de sermos um País pobre e-tal-e-coiso. Mas, na verdade, a única diferença é que os economicamente ricos, embora tão pobres como outros quaisquer, detêm mais recursos para branquear os seus comportamentos.

Os piores canais e programas de televisão alcançam as maiores audiências; os piores jornais são os mais lidos — salvo honrosas excepções —, e a generalidade dos jornalistas são maus ou sofríveis ou acabam por evoluir para esse estádio à medida que acumulam experiência; as editoras recorrem ao tradicional “é o que vende” para ficarem de consciência tranquila; qualquer brutitates que saiba contar anedotas em público, ou qualquer crica com um par de cara ou um palmo de mamas, salta em menos de um fósforo para a ribalta das figuras públicas e lá se mantém, se estrategicamente fizer umas plásticas de quando em vez… E quando se dá por eles, zás! — derramaram as suas fartas pústulas num livro com a história da “minha vida”. Minha nossa! — quer dizer.

Se não, reparem que não é um problema confinado aos autores literários portugueses… Se quiserem algumas obras de referência de autores estrangeiros (das quais muitas são livros de vulto e, a seu tempo, best-sellers lá fora), tê-las-ão de ler em Inglês, Francês ou mesmo Espanhol. Contudo, se se dedicarem a esgravatar nos escaparates constatarão que não falta cá nada do lixo internacional. A bosta que se escreve em todo o mundo é traduzida e publicada à velocidade de uma corrida de burros. Porque muitas vezes os direitos para publicar a obra são alvo disso mesmo: de uma corrida de burros.

Há uma maré negra nas edições livreiras portuguesas. É um facto. Mas isso pouco ou nada se deve à acção dos críticos — muitos apenas na forma tentada — literários. Eles são normalmente gente boa que vasculha no lixo e por vezes se deixa contaminar. Apenas isso.

Falta, na listagem do insigne suprapostador, a Margarida Rebelo Pinto, o José Rodrigues dos Santos, o Miguel Sousa Tavares, o Gastão não-sei-quantos e outros que me neurastenizam a molécula (e que decerto me perdoarão pelo facto de me não serem mnemónicos)… Enfim. Mas nem todos são maus. Alguns escrevem bem e eu até os aprecio — o que, se eles soubessem — os encheria de contentamento e orgulho.

Afinal, o que faz falta é uma secção de reciclagem literária nos ecocentros do País. Quando assim for, pode ser que o aterro se dissipe…

Soube-me bem desabafar. Mas já criticava qualquer coisinha tenra…

Até já.

PS — Também acredito no Pai Natal.

Renato C.

A Bola é redonda

Portugal foi uma equipa de virgens e fiduciários, fazendo do acaso o terceiro e único segredo das vitórias, e perdeu contra uma colectividade de reformados. Há consolo nisto, a vetustez ganhar à imaculada predestinação. Consolo e alívio, pois já se tinham esgotado as epifanias do pensamento mágico, esse que no futebol exorbita para lá da suposta fronteira que separa a loucura normal da normalidade da loucura. O que é de mais esfalfa, arrenega, mesmo que se trate de milagres (ou sobretudo, pois os milagres favorecem a procrastinação e desvitalizam a assistência).

Oui, desejava que a França ganhasse para que Zidane colhesse a sua mitologia. O homem merece pela elegância com que serviu a física do chuto na bola. Mas já antes tinha preferido perder com a Inglaterra. Porque os nativos da velha Albion começam e acabam os jogos a cantar, perene sinal de saúde étnica, ficando eu a roer-me de inveja por ter nascido em terra onde já ninguém canta. E antes teria sido melhor a eliminação face à Holanda. É que nos Países Baixos o civismo é alto, com o Mundo a carecer mais desse tipo de flores mediáticas do que das imagens da sardinha assada (apesar da filha-de-putice de não nos terem passado a bola no tal reatamento, barbaridade nunca antes vista entre países com corpos diplomáticos reconhecidos). Assim como teria sido vantajoso, para a segurança internacional, a derrota com o Irão. Os apanhadinhos da bola, como Ahmadinejad, estão a uma finta de substituir a retórica corânica pela intelectualidade de balneário; o que levaria à troca da belicosidade pela inanidade e provocaria um “efeito dominó” capaz de pacificar todo o Próximo e Médio Oriente. Finalmente, achei escandaloso o golo do Pauleta contra Angola. Vi nisso o pé do colonizador, displicentemente esmagando a alegria não de um povo, mas de todas as nações que sofreram a exploração do homem e da mulher brancos. E das duas uma: ou Pauleta devia ter sido coerente, seguindo o critério zelosamente aplicado nos jogos seguintes onde tudo fez para evitar marcar, ou, se só tinha levado um golo para gastar na Alemanha, pois que o guardasse para a meia-final onde fez verdadeira falta. Mas como a coisa se passou, apenas conseguiu acrescentar desperdício à arrogância.

O melhor deste Mundial, contudo e com tudo, foi mérito do jornal A Bola, naquela que é uma cacha de dimensão histórica. Na passada quarta-feira, no dia do jogo com a França, publicou uma coluna onde se apresentava ao leitor desportivo a vida, obra e importância filosófica de Nietzsche. Só isso já seria ocasião para pasmo e abertura de garrafas de espumante nacional, mas o melhor estava no fim. Termina-se a biografia dizendo que os nazis invocaram a obra do sifilítico autor para justificarem a “estupidez do holocausto”. E para mim, de pé, com uma sandes de queijo na mão que mal tinha começado a esculpir, o jornal entornado em cima do balcão de um tasco, desapareceu o enigma que tanto humilhou a minha enfezada inteligência. Foi-me sugado violentamente, chegando a causar vertigem. Enfim, agora, “aquilo”, afinal, e com tudo pesado, tudo ponderado, tudo bem pensado, o que aquilo era, lá no fundo, era mas era uma estupidez. Que estupidez a minha não ter percebido mais cedo.

Shame on you, Mr. Seabra!

Recuperando a tradição dos itálicos, eis um comentário vindo deste post do Luís. A nossa comentadora Maria de Fátima oferece-nos um texto com donaire.

Sucede que o artigo a que este post alude não é, infelizmente, um artigo com cabeça, tronco e membros. Trata-se de uma série de três artigos preguiçosos em que Seabra confunde “espaço público” com blogosfera e, não contente com isso, considera, do alto do seu sabe-se lá o quê, que a fórmula crítica de EPC está esgotada. Assim mesmo, tal e qual, o crítico Seabra que aponta armas à falta de argumentação de alguma crítica, esqueceu-se de consolidar este tenebroso veredicto sobre EPC, deixando na gaveta o suco da barbatana que o levou a semelhante conclusão na fronteira de uma intolerável pureza ou desejos de uma crítica velada. E assim, de delírio em delírio, Seabra chega ao ponto de afinfar em Pulido Valente porque este teve a ousadia de publicar um livro recenseado no jornal onde colabora três vezes por semana. Haja santa paciência e, a este propósito, escuso-me de explicar o que quer que seja, ou antes, que quereria Seabra que Pulido Valente fizesse? Que enquanto colaborador do Público não escrevesse livros, que enquanto escritor não assinasse colunas de opinião, que o Público ignorasse olimpicamente o livro de Pulido Valente, que José Manuel Fernandes se recusasse a escrever sobre o que é, sem sombra para dúvidas, um livro incontornável? Seabra quereria que aos leitores do Público fosse vedada uma nota crítica, uma linha que fosse sobre um livro de um opinion maker que escreve livros e é editado? O que faz correr Seabra, é como quem diz, é assunto de interesse e debate, mas nunca da forma leviana e burocrata com que produz o levantamento do número de vezes em que uns e outros escrevem, opinam, dizem, pensam nos jornais, blogues ou televisões. Seabra tem, para mal dele e nosso, uma alma de contabilista, enfim, para não lhe dar outro nome, que lhe dá uma pinta de Jack Bauer, agente federal com a cabeça à roda com o dia mais longo da vida dele. A Bomba Inteligente que me perdoe, mas, coitada, no meio daquilo tudo é o menos porque é realmente o menos. Quem diz a Bomba, diz George, e quem diz este diz os outros que Seabra procurou em arquivos sem tom nem som, como se os tivesse atirado aos ares e de caras lhe saíssem aqueles nomes e não outros. Um tipo que se nos apresenta como um crítico de força e sem território comprado, um crítico daqueles que tem o rabo torcido e com uma volta na ponta, deveria ter dedicado mais energia e empenho ao assunto. Shame on you, Mr. Seabra!

Maria de Fátima

Advérbio ad lib

Não faltam causas, problemas, projectos, escândalos, louvores, denúncias. O facto de já estar tudo dito, e redito, não impede que esteja sempre, e ainda, tudo por dizer. Aproxima-se o dia em que cada indivíduo terá 10 blogues — com um deles em estado de comatosa actividade, um outro, colectivo, aonde irá muito de vez em quando, e os sobrantes como orgulhoso currículo dos serviços prestados. Este será padrão obrigatório, as coisas vão chegar aí. Mas o que importa é que em cada um dos 10 blogues, se detivermos o tempo para ler com atenção, iremos encontrar grandes verdades expostas por esse indivíduo. E essa é que é a verdade, desse grande indivíduo.

No meu caso, o que me inquieta, o que posso erigir como verdade a ser publicitada, e que até poderá ser decisivo para a providência do mundo (como convém), diz respeito ao jornal Público. Acontece eles não terem um corrector ortográfico nos seus computadores, situação que me aflige e põe em risco a integridade da língua portuguesa. A prova foi entregue pelo articulista David Mariano, no suplemento MIL FOLHAS, o tal que é dedicado aos livros e aos escritores. Pois bem, o Sr. Mariano, recenseando uma biografia de Mengele, não foi de modas: no primeiro parágrafo grafa concerteza. O paginador, para que não ficassem dúvidas, compaginou a palavra na transição da quinta para a sexta linha, obtendo con-certeza. E o revisor, se os tiverem, terá abençoado o revisionismo gramatical. Ah!, calhou o episódio no dia 10 de Junho. Acaso? Não seja ingénuo.

É óbvio que a Redacção do Público não tem posses para adquirir o software em causa, tendo recorrido a este estratagema para fintar a Administração e revelar a ignomínia. Solidários, lançamos uma campanha para a oferta de um corrector ortográfico (actualizado) ao jornal do Sr. Belmiro, com licenças em número suficiente para, pelo menos, cobrir os articulistas do suplemento MIL FOLHAS; de todos os cadernos, o mais epistemologicamente carente de cuidados ortográficos. Vamos chamar-lhe Operação Dou Concerteza, e podem enviar os vossos donativos aqui para o Aspirina (que nós tratamos do resto).

1925

Entre o sem-número de razões para se ler o romance Nome de Guerra, de José de Almada Negreiros, está o título do capítulo XLV:

OS PALERMAS QUE NÃO PERCEBEM NADA DA VIDA SÃO PIORES QUE OS MALANDROS