Uma Presidência escavacada

Mentiroso ou burro. Cavaco Silva entra, inevitavelmente, numa destas duas categorias após a declaração do dia 29 de Setembro de 2009, recebida com unânime perplexidade e tristeza. Uma declaração que começou logo por ofender os portugueses ao ser destinada à comunicação social, e acabou por nos deixar assustados com as dúvidas, umas antigas e outras novas, que ficaram a envolver o carácter e capacidades mentais do Presidente da República.


A favor de um Cavaco mentiroso está o grosso das evidências. A principal vem de José Manuel Fernandes. Ele garante que as notícias de Agosto tiveram a chancela do Presidente. Esta posição é explicitada por todos aqueles que repetem o óbvio: Fernando Lima não se peida sem pedir autorização ao amo a quem serve há 23 anos. De facto, mais facilmente se imaginam os rios a correr para a nascente do que se concebe o Público a lançar uma bomba daquelas, carimbada como informação oficiosa, contra a vontade de Belém. E logo o jornal que o Zé Manel transformou em órgão de combate político da Presidência é que iria entalar os amigos? Todavia, se ainda for preciso convencer as pedras da calçada, aí está a reacção de Cavaco à inaudita crise de Agosto. Começa por ficar em silêncio, vendo o país político a arder. Cada dia em silêncio era um rombo em Sócrates e no PS. O silêncio alimentava a polémica e reforçava as suspeitas, enchia os arsenais do PSD. Depois falou, simulando um impossível distanciamento e uma inverosímil neutralidade. Aproveitou a ocasião para passar mensagens contra o Governo, apontando os temas onde se deveria atacar – e, na prática, validou as suspeitas ao não exibir um único sinal de protesto contra o eventual abuso, ou deturpação, do Público ao dar aquelas notícias e daquele modo. Finalmente, a declaração que faz em resposta à publicação do email pelo DN, onde anuncia estar preocupado com questões de segurança e diz não ser ingénuo, foi já um destrambelhamento que não tinha regresso. Nesta lógica, Cavaco mente. Mente e conspira. Falta ao seu juramento.

Mas há outra possibilidade. Cavaco pode ser o nosso Bush. Um burro algarvio. Alguém que teve a sorte das circunstâncias. Alguém manipulável por via do seu provincianismo, narcisismo ou megalomania. Alguém que acreditou nos aduladores. Que passou a depender deles. Que outra explicação pode haver para a escolha de Dias Loureiro para o Conselho de Estado? Quais os predicados que o homem da SLN ia exactamente colocar ao serviço dos mais altos interesses nacionais? E que dizer da confiança depositada em Dias Loureiro depois de António Marta o ter denunciado como mentiroso? E como explicar a sua jogada financeira no BPN, numa altura em que o escândalo já era matéria jornalística há muito tempo? Cavaco, o excelso professor de economia e finanças e modelo ideal de estadista, não desconfiava de nada acerca das práticas do seu ex-colega no Banco de Portugal e ex-secretário de Estado? Já agora, também de nada desconfiou quando Oliveira Costa abriu o coração a perdões fiscais de arrebimbomalho? Há um episódio caricato que ajuda à consolidação desta tese: o gato por lebre que afunda a bolsa em 1987. Era mesmo isso que ele queria obter ou não tinha a noção do que iria causar tal declaração? E quanto ao que se passou com Fernando Nogueira, quando queimou o seu delfim em plena campanha, não estará na burrice o melhor diagnóstico? Apesar de ser assustador ter como Comandante Supremo das Forças Armadas tão débil inteligência, a qual nem sabia nos idos de Setembro de 2009 que a Internet tem alguns problemas de segurança associados, talvez seja um desfecho preferível à alternativa: a pulhice em grau dantesco.

O cavaquismo foi um período de extrema dissolução moral. A sociedade acolheu entusiasmada, e em grande escala, a burla organizada. Os fundos europeus compraram duas maiorias absolutas, fundaram o Cavaquistão. Repetiu-se o destino do ouro do Brasil, dos bens das colónias desbaratados numa aristocracia boçal que não soube criar riqueza, apenas esbanjá-la. Noutros países terá sido igual, ou pior, face a similares entradas de dinheiro. Mas os estudos de corrupção comparada podem esperar. Porque temos um problema urgente para resolver: uma parte da elite política nacional continua a repetir esse modelo cavaquista. Só que ninguém previu que eles, as figuras gradas, chegassem ao ponto de conspurcar o prestígio do Chefe de Estado.

A declaração de Cavaco emana de um estado perturbado de quem já perdeu a consciência dos mínimos do respeito próprio. O que disse, e o modo como o disse, não tem ponta por onde se lhe pegue – embora traga uma oportunidade lateral: registar quem o defende, até quem não fique indignado perante a exuberante decadência. Com esses, todo o cuidado é pouco.

A Presidência está escavacada. Secularizou-se. Podemos passar a tratar o inquilino do Palácio mais como caseiro e menos como príncipe. Ou seja, nem tudo é mau na maldade.

13 thoughts on “Uma Presidência escavacada”

  1. 1. Acho que não há “dilema”, nem “trilema”,

    se lhe juntares “irresponsabilidade”…

    Unhappily, sendo raro, há quem acumule tais qualitativos, praticando-os em seus quotidianos…

    Há-de haver algo que perturbe tais comportamentos deste nosso Senhor, digo eu…

    2. Será o BPN?

    afinal é o facto cronologico que marca o disparo concreto, sistemático, de Sexa contra governo,

    e não só, cfr. LFMeneses,

    já após desencadear da crise financeira mundial

    quando era aconselhavel imperio do bom senso, da analise cuidadosa da conjuntura economico-politicas, dum sentido de responsabilidade civica e pariotica…

    3. por isso eu acho é uma atitude deliberada e desesperada contra qualquer coisa se “receava”

    onde tudo municiava aqueles ataques

    que alias seria util fazer a respectiva cronologia, intensidade, contextos, etc…

    4. Para terminar, não posso deixar de exprimir a minha tristeza, como cidadão, por esta conduta que nos envergonha a todos

    abraço

  2. uma vez mais, brilhante diagnóstico. Sim, também me interrogo se o Cavaco não foi manipulado, e é estruturalmente manipulável, e terá sido por isso até que a direita o elegeu. A história que o Jcf contou aqui do plasma mostra que ele roça a paranóia, ora quem é assim é manipulável com facilidade

    provavelmente terá sido uma jogada dois em um: dar tudo por tudo para ganhar com a ferrugenta, e queimar o presidente pelo caminho.

    Quem é que sonha muito com a sala dourada, quem é? É muito risonho, faz-se de muito simpático, e seria terrível: faz lembrar o joker de olhos azuis.

  3. ESte discurso tolo está para o presidente como os incidentes da Ponte estiveram para o 1º ministro. Em ambos os casos Dias Loureiro está presente…

  4. A melhor análise publicada ou comentada sobre estes gravíssimos acontecimentos. Parabéns.

    Queria, no entanto, salientar um aspecto, para mim decisivo e menosprezado: a comunicação do EMGFA desmentindo as supostas “limpezas” aos gabinetes da Presidência pelas secretas militares.
    Foi o golpe final na estratégia e Belém, quando já se encontravam encurralados. A Integridade de Carácter e a Honra são valores das Forças Armadas. Não se deixaram consporcar…..

  5. Uma dúvida me assalta, será que Fernando Lima nao se peida sem autorização de Cavaco, ou será que é Fernando Lima que diz a Cavaco quando é que este deve ir cagar?
    Quem mandava em quem? Bush ou Rumsfeld?
    Quem manda? Cavaco ou Lima?

  6. Os burros algarvios não gostarão desta colagem a Cavaco. Acho até que o presidente denota um perigoso défice de alfarroba na alimentação, que lhe aumenta o risco de aterosclerose cerebral. Qualquer burro algarvio (já há poucos, infelizmente) se pela por alfarroba.

  7. Mentiroso ou burro? Qualquer uma das hipóteses lhe assenta bem, mas há uma terceira possibilidade: acumula.

  8. um grande artigo, parabens, coma sempre um prazer lê-lo. Está craro que iste homem fica travado por esta questão.

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