Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Goza com a tua língua

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Lisboa é grande. Mas duvido que haja, nela, mais do que um Helder Guégués. Pois bem, esse mesmo, que talvez você conheça (Lisboa é grande, mas os círculos são pequenos), tem um blogue em que, com paciente regularidade, comenta questões (sobretudo «erros» e «falhas») do nosso idioma. Chama-se Letratura e está aqui. É um prazer, um gozo, uma lição.

Pilhei o título do post de um cartaz galego, erotizante de linguístico. Pilhei a assombrosa foto no blogue de Helder Guégués. «Tudo vos será perdoado».

Há rebuliço na cave

Na caixa de comentários do post PRETO NO BRANCO, há discussão da grossa entre Nuno Ramos de Almeida e o autor do mesmo, Valupi, sobre a actuação do Bloco de Esquerda.

Está o Parlamento em férias, a agora isto!

Como se tal não bastasse, no post LIMPAR A FULIGEM, andam em grande folia Jorge Carvalheira e a nossa querida Dona Ermelinda, «senhora» que aqui vem sobressaltar-nos em outros avatares, masculinos esses.

Quem disse que este blogue era manso, pá?

BLOGOMILHO

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Galiza, Festival de Ortigueira, 2005 (foto Vieiros)

Na Galiza, a blogosfera (e quem cunhou o termo? José Mário Silva? Paulo Querido? quem, quem?) chama-se «bloguesfera». Mas também, e mais garridamente, «blogomillo».

O blogomilho galego (há-de ter-se aqui uma ideia dele) acaba de ver-se reconhecido com um prémio nacional na concreta pessoa de MARTIN PAWLEY, autor de Días Estranhos.

aqui no Aspirina se noticiou um encontro, muito proximamente, de blogueiros galegos e portugueses. Agora citem-se palavras de Pawley, entrevistado no Portal VIEIROS (Caminhos).

Como valora a evolución do blogomillo neste tempo?
«É espectacular. Se alguén nos conta hai tres anos, cando eramos vinte sendo xenerosos os que tiñamos blogs en galego, que hoxe a cifra andaría perto de dúas mil, non o creríamos. O cambio máis importante é que agora non lle tes que explicar aos amigos que é un blog antes de dicirlle que ti tes [tu tens] un.»

E sobre o comportamento blogueiro:

«A xente ás veces confía nunhas estrañas regras de “cordialidade na rede” que non comparto según as cales non hai que afastarse xamais dun comportamento case monxil [monástico] para non ofender a ninguén. Eu levo discutido no blog, e moitísimo, e sobre materias ás veces delicadas, con persoas que hoxe teño por amigos. En Internet, como na vida, dúas persoas poden levarse a matar un día, e ao seguinte son amigos da alma.»

Alentejanidades

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O Valupi lembra-me a minha ascendência berbere. O Filipe Moura lembra-me que sou alentejano. A minha irmã, Maria Antónia Venâncio, que é lisboeta, lembra-me – com esta sua foto – que, se mais razões faltassem para o orgulho meridional, as flores do campo já serviam.

Ao longe, espreita a serra de Alcaria Ruiva. Mais 10 quilómetros, e estamos em Mértola. O centro do mundo, claro.

O Abrupto, a ameaça e a ficção

Às vezes, a gente lê o que quer ler. Sucede sempre aos outros, claro. Mas uma vez tinha que ser a minha. Conduzido por uma informação com certo picante, impedi-me de fazer o óbvio: ir verificar se de facto JPP tinha refeito o texto. Não tinha. Supu-lo cedendo a uma pressão. A ameaça era real, está documentada. Só não sei se foi exercida. Se o foi, saiu frustrada.

Tenho a pedir desculpa ao autor do Abrupto por imaginá-lo cedendo a correcções políticas. E aos leitores deste blogue por não ter feito o trabalho de casa. Quis fazer História. Mas fi-la romanceada. Se não foi simplesmente ficção o que fiz.

O Abrupto cede à correcção política?

Através de um «newsgroup» de galegos e portugueses, sou alertado de que o autor do Abrupto ofendeu a unidade da língua portuguesa. Se o meu revoltado co-foreiro reportou bem, José Pacheco Pereira terá anotado no seu blogue: «À minha volta fala-se brasileiro, língua dos empregados de restaurante em Portugal, produto da globalização».

Vou verificar. É um facto: JPP actualizou o post das 11.54 de ontem. Concretamente, terá eliminado essa passagem e algumas outras, tão inócuas como ela.

No nosso fórum (que, evidentemente, não identifico) lia-se: «No blog de Pacheco Pereira, ao que parece o mais lido de Portugal, é feita uma referência ao português do Brasil, que mais uma vez demonstra a falta de consciência de unidade da língua, vinda da parte de alguém que é claramente um membro da nossa elite e que, por esse motivo, devia ter mais consciência e deve ser mais responsabilidade em relação àquilo que diz. […] Este é mais um exemplo da diferença de atitude das elites castelhanófonas, francófonas e anglófonas, que têm consciência e promovem a unidade das suas línguas enquanto as nossas elites não têm essas consciência e não promovem o conceito de unidade das variedades de português. É caso para repetir pela milionésima vez: com elites assim o nosso país não precisa de inimigos. Contudo o importante é agir, e o sentido desta minha mensagem é o de incitar a que escrevamos para o endereço de email do autor do blog sobre esta questão, chamando-lhe a atenção para que no futuro não repita o erro num blog que, ao que parece, é tão influente» [negrita meu].

A pressão terá, pois, tido efeito. Fico perplexo, e na realidade decepcionado. Claro que o brasileiro nos é uma riqueza e um orgulho, e não posso imaginar que JPP o sinta diferentemente. Mas tudo indica que, cedendo ao clamor da correcção política, ele repudiou uma afirmação lúdica e totalmente inofensiva.

Signor Presidente del Consiglio

Para os meus alunos – eles rondam os 20 anos – o telemóvel existiu sempre. Como para mim o telefone. É isso: o mundo já veio feito assim. E é essa gratificante falta de perspectiva histórica, no dia-a-dia, o que permite imaginar-nos eternos. O que é, de resto, a melhor disposição para vivermos. Imagine-se o que era uma consciência contínua da nossa temporalidade. Não dávamos um passo. Íamo-nos arrastando. Sim, fazer-nos esquecer a morte é uma das espertezas da vida.

Tudo isto por causa das eleições italianas de ontem. Não se vê logo a relação? Exacto. Mas eu explico. O chefe do governo de Itália chama-se «Presidente do Conselho»… de ministros, claro. Também Mussolini tinha o cargo de «Presidente del Consiglio dei Ministri», e ignoro se a designação é anterior ao Regime Fascista.

Nós dizemos «primeiro-ministro». Mas dizemo-lo desde há trinta e pouco anos. Porque, antes, também o nosso chefe de governo se chamava «Presidente do Conselho». Só isso. Nunca se ouviu chamar a Salazar ou a Caetano «Presidente do Conselho de Ministros», mesmo em discurso indirecto, mesmo numa notícia de jornal. Isto era uma das finuras da nossa ditadura. O senhor não era o chefe de um grupo de pessoas, mas um chefe sem mais, um «Presidente». Havia portanto dois presidentes no país. E, na percepção pública, um deles era mais «presidente», e esse não era o da República. Era o outro, o eterno.

Nessa nossa atemporal percepção – eu tinha a idade dos meus alunos hoje – Salazar havia existido sempre. Por isso, o fim do Verão de 1968 foi um tempo tão delicioso. Falava-se do «sucessor», trocavam-se boatos. E isto na rua, lugar inaudito. Era o princípio do fim? Ninguém o sabia. Mas sabia-se que era o fim de qualquer coisa, de alguém. Do Presidente Eterno. Que só o tinha sido dos seus ministros.

«E o que fizemos nós da educação?»

Destaco para aqui o comentário de Jorge Carvalheira ao post «É proibido ensinar. Aprender é vergonha». Trata-se de um texto notável do autor dos magníficos contos O Mensário do Corvo (Quasi, 2002).

Excelentíssimos senhores, alto aí e pára o baile, que tudo o que é demais parece mal! Sobretudo parece mal gastar tanto latim a repetir o que já foi dito mil vezes em vão. Só pode ser um exercício de desobriga de consciência. Está de acordo com a quadra, mas não deixa de ser uma vilania.

Deixem-se por isso de gestos de virgens ofendidas, como se fosse cair o carmo e a trindade, como se a tragédia da educação nacional fosse algo de surpreendente, de inesperado e único. É que a pátria inteira é feita de gestos tais há muitos anos, mas os senhores não querem saber disso, porque todos nós assobiamos para o ar e não queremos ver isso, porque é demasiado mau de ver, e porque nos fizeram assim.

Os senhores são cidadãos dum país que já tinha dignidade e alma, num tempo em que suecos, helvétivos, finlândios e dinamarcos ainda não tinham saltado a cancela do curral da barbárie. No tempo do rei Dinis os portugueses arroteavam terras, afiavam as lanças, construíam castelos e não se queixavam de ser pobres.

Os senhores pertencem a um povo que um dia foi levado para a Índia “ao cheiro desta canela”, ao serviço de interesses que nunca foram os dele, mas que por lá ficou até hoje.

Os senhores viram este povo gastar 500 anos a fazer filhos às pretas debaixo do embondeiro exactamente como os cafres, a merecer o estatuto de cafre da Europa, exactamente como se cafre fosse. Isto enquanto a Europa ia à escola e à oficina, e experimentava, e inventava, e progredia.

Os senhores viram este povo, ao longo de séculos, ser conduzido por elites crapulosas que sempre o cavalgaram com desprezo, e como alimento da barriga só lhe serviram mitos de fumo e nevoeiro. Os senhores viram o que foi feito de tanta riqueza que chegou nas caravelas, e puderam ver já que o mesmo destino tiveram os fundos que vieram da Europa, sem proveito nenhum para o país. Os senhores viram este povo, no séc. XIX, no tristíssimo papel do urso de feira, governado por estrangeiros, comido vivo por ingleses e outros filhos da puta civilizados, tentando apenas e sempre sobreviver à miséria.

Os senhores viram este povo a pagar as facturas da Índia em La Lys, viram-no a pagar as facturas do império na guerra das colónias, viram-no a fugir da fome, a salto, para a Europa, aos milhões, com a alma atulhada de mitos heróicos e putrefactos. Os senhores viram este povo a meter à força na cabeça que o ponto mais alto da pátria era o pico do Ramelau, na parte leste da ilha de Timor.

Os senhores viram este povo um dia fazer em desespero as atrasadas contas com a história e tomar o freio nos dentes. Tão bem tomado ele foi, e tão grande era a culpa histórica, que a clique dos poderosos, dos inteligentes, dos cosmopolitas, fugiu toda para o Brasil e ainda hoje não anda muito à vontade por aí. Tão bem tomado ele foi que o Moreira Baptista se borrou pelas calças abaixo no quartel do Carmo. Os senhores viram este povo voltar a casa, depois de 500 anos de forrobodó, e encontrar a casa em ruínas e a horta por cavar. E viram como, em oportuna manobra de recurso, este povo foi levado a integrar-se na Europa, que era afinal a sua terra, mas onde não teria lugar sem sofrer uma aturada catequese.

Depois disso o que fizeram os senhores, o que fizemos nós todos, o que fez este povo de si mesmo, da vida, da liberdade que tinha? O que fizemos da pouca indústria, o que fizemos das pescas, o que fizemos da agricultura, o que fizemos da justiça, o que fizemos da saúde, o que fizemos do dinheiro alemão, o que fizemos nós da educação?

Pois fizemos o que somos capazes de fazer. Pusemos tudo num pandemónio, levámos a banca à glória, porque desde a Índia (de Ceuta?) havíamos trocado uma boa capa por um mau capelo.

Somos óptimos, individualmente, e a trabalhar sob um capataz alemão. Colectivamente, não sabemos governar-nos, não temos capacidade para gerar uma elite que nos dirija. Somos desorganizados, corruptos, irresponsáveis, infantis, cafres, cafres, cafres. Os espanhóis viram-se livres da gangrena imperial, que também os aniquilou, há 100 anos. Nós apenas ontem. É o tempo que nos falta, para atingir a modernidade.

E o que fizemos nós da educação? Entregámo-la ao “génio” do PPD durante mais de 20 anos consecutivos. Demos-lhe o Deus Pinheiro, e a Manuela Leite, e um tal Couto dos Santos, e outros tantos. Demos-lhe a Weltanschauung do Cavaco, e demos-lhe o Roberto Carneiro, que talvez soubesse o que fazia e por isso mesmo se demitiu. Só nos faltou dar-lhe o saber do Dias Loureiro, porque esse fazia falta na polícia. E a subtileza de catrapilo do Jorge Coelho, atarefado a construir o túnel por baixo da Serra da Estrela.

Agora, 1200 criancinhas por ano vão aos fagotes à professora na sala de aula. E nós queixamo-nos de quê?

JORGE CARVALHEIRA

Blogues, jornais… e livros

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«O monopólio da “verdade” e da palavra, detido em teoria no passado pelo poder político, pela imprensa tradicional e pelas editoras, já se entendeu que só se impunha ou parecia impor-se por não haver possibilidade de lhe opor uma concorrência séria. Mas hoje há gente a escrever nos blogues com competência e lucidez iguais ou superiores às dos jornalistas», escreve João Camilo no seu blogue Blue Everest, no post «Blogues e jornais: crédito?».

Se desejar ler mais João Camilo (desde há muito, professor universitário na Califórnia), passe pela livraria e peça Retrato Breve de JB, editado pela Fenda. É a reedição de um livro revelador, saído em 1974, triturado pela revolução. Ainda vamos a tempo. Do livro. E da revolução.

É proibido ensinar. Aprender é vergonha.

Há muito tempo que andava à procura de quem o disesse melhor do que eu alguma vez o conseguiria. E encontrei. No Expresso de sábado passado, Guilherme Valente, o editor da Gradiva, citava o francês Laurent Lafforgue, expulso do Haut Conseil de l’Éducation, por ter afirmado coisas como isto:

«Depois de ter começado a interessar-me seriamente pelo estado da educação no nosso país (…), cheguei à conclusão de que o nosso sistema de ensino público está em vias de destruição total. Esta destruição é o resultado de todas as políticas e de todas as reformas conduzidas por todos os governos a partir dos anos 60. Essas políticas foram desejadas, aprovadas conduzidas e impostas portodas as instâncias dirigentes da Educação Nacional, particularmente pelos famosos especialistas da Educação Nacional, os corpos de inspectores (recrutados entre os docentes mais dóceis e submissos aos dogmas oficiais), as direcções das administrações centrais, as direcções e corpos de formadores das IUFM dominados pelos famosos didactas e outros especialistas das ditas ‘ciências da educação’, pela maioria dos especialistas das comissões de programas, em suma, pelo conjunto da nomenclatura da Educação Nacional. Essas políticas foram inspiradas a todo o sistema por uma ideologia que consiste em não conferir valor ao saber e que quer fazer prioritariamente desempenhar à escola não a instrução e a transmissão do conhecimento, mas outros papéis, na crença imposta em teorias pedagógicas delirantes, no desprezo pelas aprendizagens fundamentais, na rejeição do ensino organizado, explícito e progressivo, no desprezo pelos conhecimentos de base ligados à imposta aprendizagem de conteúdos nebulosos e desproporcionados, na doutrina do aluno ‘no centro do sistema’ e que deve ‘construir ele próprio os seus saberes’. Esta ideologia dominou igualmente as instâncias dirigentes dos sindicatos maioritários (…). Toda esta gente não tem hoje outro objectivo que não seja o de alijar a sua responsabilidade e mascarar por todos os meios a realidade do desastre. Confesso não saber se têm agido de boa-fé, ou se, pelo contrário, não terão organizado deliberadamente a destruição da escola. Também não sei quais de entre eles – uma minoria certamente – não participaram nesta loucura colectiva, nem quais, tendo participado, têm hoje consciência das consequências dramáticas dos erros acumulados desde há dezenas de anos e estarão hoje dispostos a partir numa outra direcção. ‘A priori’, tenho a mais extrema desconfiança relativamente a todos os membros da nomenclatura da Educação Nacional».

[ Leia-se, no Expresso, o artigo todo de Guilherme Valente. Nunca as mãos lhe doam. ]

Também em Portugal é bom tom não ensinar («Somos todos alunos», não é?) e é melhor tom não aprender (exige disciplina, essa coisa chatíssima). De todas as desgraças que a correcção política nos trouxe, esta é a mais desgraçada: porque priva as crianças do direito a desenvolverem-se. E o que sobra… é essa prática contentinha do professor que nada exige e nada ensina, porque poderia ser acusado de querer ensinar. Sobram essas pedagogias «delirantes», esses «conteúdos nebulosos», essa «loucura colectiva» dos senhores pedagogos e seus chefes, para quem tudo está sempre muito bem, porque até a sugestão do mais parvo dos néscios é… aproveitável. Isto é uma mentalidade de Esquerda? Receio que sim, e desta Esquerda me envergonho.

Somos poucos os que não temos vergonha de ensinar. Mas, quem sabe, atingiremos alguns que não tenham medo de aprender. Eles são a reserva do futuro.

Perdidos no paraíso

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Que eu iria encontrar na Irlanda um país de alguma fartura, já o sabia. Que havia nele estranhas bolsas de pobreza, já estava avisado. Mesmo assim este burguês à son insu estranhou.

O contraste era visível, tanto em Cork como em Dublim. Não há, decerto, aquele luxo espampanante e paspalho dos casacos de peles de Estocolmo ou de Dusseldorfe. Para tanto, os irlandeses são gente com outro tino. Mas o que havia já contrastava que chegasse com a pobreza em fato de treino: a perplexidade nos rostos, a falta de perspectivas por trás do olhar.

Explica o geógrafo galego Xoán Paredes que não é por falta de emprego nem de dinheiro. Emprego há-o, e dinheiro há-o até a mais. O que existe é um Estado ultra-protector, católico a mais não poder, e amigo dos pobrezinhos, que ele sustenta sem integrá-los. Uma «dependência crónica», no dizer de Paredes, eis o resultado. À falta de mais interesses, o dinheirinho vai para a bebida. E assim os vemos em bandos pelas ruas, esses moços de 18, 20 anos, nos olhos uma noção do tempo já esboroada. Lost in Paradise. Como se dirá isto em irlandês?

Vão longe os tempos em que – modestamente – um insuspeito sugeria se engordassem os bebés irlandeses e se os servisse à mesa dos ‘bifes’. Para os miúdos perdidos nas ruas de Dublim, tanto se lhes daria. E sempre teriam tido uma bela vida.

Valentes críticos

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É a pergunta que um crítico mais teme. Formulou-a ontem, aqui, o estimado comentador Alex Brito. Escreveu ele: «Ó Fernando! Que princípios presidem a esse maniqueísmo que definem um bom cronista, ou um mau ficcionista? Não lhe parece abusivo e pouco sério tratar assim um escritor?»

Repare-se: não é só dizer-se de alguém que é, por exemplo, «um mau ficcionista». É dizer-se também, por exemplo, que é «um bom cronista». Se bem entendo, estes juízos, para o mal e para o bem, são sempre para o mal. Não se fazem, pronto. E com isto está, de uma penada, resolvido todo o problema da crítica. Ela simplesmente não se faz.

Às vezes, pendo para dar razão ao comentador. Por uma vertente que, suponho, não lhe ocorreu. Digamos assim: algumas críticas negativas que tive de fazer, eu trocava-as bem por uma oportunidade prévia de conversa com o autor. Ou seja, em vez de ter de dizer-lhe, tarde e a más horas, e tão publicamente, que produziu um flop, eu avisá-lo-ia a tempo da ocorrência, e o livro não aparecia, ou aparecia outro. Feito isto em mais larga escala, poupavam-se aqueles monólogos cheios de energia negativa que, de vez em quando, surgem nos suplementos literários. Ou, e sem querer funalizar muito, João Pedro George podia ter impedido Margarida Rebelo Pinto de existir.

Mas o mundo não está assim tão bem feito. Continuarei, pois, a aceitar esta tarefa ingrata, que só um fulano valente (isto é, desprezador dos perigos, isto é, mansamente doido) pode executar: essa de dizer que isto é «bom» e aquilo é «mau». Princípios? Critérios? Poucos, fracos e volúveis. É mais um destino, Alex Brito. É uma branda forma de loucura. Mal paga, ainda por cima, pelo tempo que se nos vai nela. Não, não tão branda como isso.

Da saborosa arte de ser português

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Nunca falha. Ontem, de novo me sucedeu. Mas nunca aprendo. E, pior, nunca me conformo. Que se passou? Produzi aqui um elogio, coisa de nada, a certa figura pública. E imediatamente se destaparam os poços do azedume. Tudo indica que só a afirmação da mais irremediável inanidade do visado teria mantido o ambiente sereno, conversável.

Como sempre, nunca chegamos – eu nunca chego – a saber a razão. Ou ela pertence a uma ciência infusa que me foi negada, ou é parte já democratizada da opinião pública. Não dispondo de uma nem de outra, não tenho meios de relativizar, de compreender sequer, mais essa nacional catástrofe. Se não é o fim do mundo, estamos perto. Concretizemos.

Disse eu que Miguel Sousa Tavares escreveu umas coisas com piada. Tive o cuidado de passar por cima dos romances, indo directo ao cronista e ao contista. Baldado esforço. É que, segundo a quase totalidade dos comentadores, nada se aproveita no senhor. Eu perceberia se isto fosse o Pipi. Mas não é. É um blogue lido por gente da classe média alta (que também lia o Pipi, mas não dominava na paisagem) e até fez uns estudos.

Não sei que fama tem o autor por aí. Nunca falei sobre ele com ninguém, nunca lhe falei a ele, e apenas o vi de passagem, se meia hora de TV se chama ver. E, contudo, eu sei que ele é (quando quer, mas ele quer muitas vezes) um dos fulanos que melhor dominam este amado idioma. E que escreve umas coisas com tino, e com piada, que às vezes me irritam, mas respeitam o meu discernimento. Isto me basta. Disto já estou grato. Mas sou um caso raro, estranhíssimo, se calhar suspeito.

Vou deixar de elogiar os meus contemporâneos. Não chateio e andaremos sempre todos em paz, estupidamente em paz. E felizes, sim pá. Estúpidos de felizes.

Bombas publicitárias

Segundo o Público de hoje (ver Cultura), Margarida Rebelo Pinto e o seu editor, a Oficina do Livro, tentarão judicialmente impedir a publicação de Couves & Alforrecas, o livro (editado pela Objecto Cardíaco) em que João Pedro George estuda a escrita da autora.

Não bastando já o bem que João Pedro George vem fazendo aos nossos estudos literários (a Estilística foi sendo abandonada por uma faculdade de letras crescentemente anémica e medrosa da literatura), ainda por cima se tenta, com recurso a tribunais, impedir que o seu trabalho atinja um maior público.

Nada (a não ser isto) contra a Oficina do Livro. Ela vem pondo cá fora excelentes coisas, como o Miguel Sousa Tavares (sobretudo o contista e cronista). Mas que uma bela bomba publicitária se arrisca a privar-nos de um belo estudo literário, não sobre dúvida.

[Com um obrigado à Margarida P.]

Sempre inconveniente, Mr Camilo

Escrevia, há dias, João Camilo no seu Blue Everest (clique algures aí à sua direita):

Blogues e jornais

– Qual é a diferença entre um blogue e um jornal como o Público, por exemplo?
– Os jornais são blogues impressos em papel e que se compram nos quiosques.

– Mas há blogues que querem entrar em competição directa com os jornais. A mesma atitude, a mesma ambição, a mesma sapiência.
– São os blogues de pessoas com mentalidade de jornalista.

– Gente com ambição política ou ambição de guiar e elucidar as massas ignorantes?
– Qualquer coisa assim. Esses eu não os leio, não tenho paciência nem tempo.

– Imaginam-se marginais, mas lutam pelo tipo de poder e de influência que têm os jornais.
– Qualquer coisa assim. Prolongam e repetem o sistema. Não tem interesse. Podem ser úteis, mas eu prefiro coisas mais verdadeiras.

Nisto, há sempre a Esperança

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Esvaziar a caixa do «Lixo Electrónico» é um dos meus prazeres matutinos. Ofereço-me, cada dia, esse gesto simples, mas que reordena o mundo. Hoje, todavia, um dos ‘assuntos’ fazia-me olhinhos. Dizia «Escrita Criativa». Salvei-o da reciclagem. É isso. Se há sonho que me atormenta, é o de vogar criativamente pela escrita. Mas tratava-se de um curso em Lisboa, e vejo-me longe. Fiquei-me pelo fantasiar, o óbolo dos pobres.

Vi anunciado um curso de «escrita criativa» propriamente dita, destinado a «Escritores de gaveta que queiram mostrar e enriquecer os seus textos», a «Escritores no activo (incluindo também publicitários, jornalistas, argumentistas) que pretendam desenvolver técnicas de escrita literária», a «Escritores preguiçosos que precisem dum empurrãozinho». Enfim, quem de nós se sentirá excluído?

E vi que há outro curso, de «criação literária», em que o instrutor (neste caso instrutora) «utilizará um método próprio e original, visando o encorajamento dos candidatos à produção de prosa literária, com ou sem fins editoriais, através de conversas e conselhos que os ajudarão a desobstruir os sensores da consciência e a desinibirem-se, incentivando a extroversão por via da palavra escrita e libertando a imaginação». Ah, a desobstrução dos sensores (e a obstrução dos censores) da consciência! E o incentivar da extroversão! É um programa deslumbrante, além de eminentemente humano.

Houve, em fins dos anos 90, um «curso de escrita criativa», coordenado por João Louro, que desembocou no volume Jogging para Escribas, editado na Fenda. Aí se revelaram dois portentosos artistas: Margarida Fonseca Santos e Paulo Hasse Paixão.

A Margarida (diz-me o site da BN) publicou vários livros para crianças e orienta, por sua vez, ateliers de escrita criativa. Se houver chatices com o link, vá ao Google. Ela tem uma ‘página oficial’.

O Paulo (diz a mesma fonte) nada publicou, pelo menos em livro, pelo menos sob esse nome. Mas anda activo aqui pela esfera.

Batam, portanto, à porta da sociedade em epígrafe, aí para os lados da Esperança. Pois, da esperança.

[Nada disto é publicidade. Bom, é, mas ninguém ma encomendou.]