Senador = sanador

Adriano Moreira publicou um artigo – O sentido da responsabilidade – onde convoca Hayek para recordar uma lição ancestral de civilização: o saber individual é limitado, por isso precisamos uns dos outros para defender os nossos – e nisto, ou por isto, está a realização plena da liberdade. A surpresa e relevância do seu escrito ficou atestada pelo seu colega de coluna Viriato Soromenho-Marques – Pensar faz doer a cabeça – que o cita e desenvolve.

Adriano Moreira já não faz parte da elite política há décadas. A direita nacional não se dá bem com a inteligência e a erudição, prefere figuras da estirpe de Passos e Portas, Relvas e Nuno Melo, Luís Montenegro e Nuno Magalhães. Esta é a direita do Zé Manel e da Moura Guedes, do Pacheco Pereira e da Helena Matos, do Sol e do Correio da Manhã. A direita das calúnias e das conspirações. A direita do Cavaco, o mais acabado representante desta decadência. Adriano, transportando o século XX que viveu na plenitude das suas capacidades intelectuais e políticas, conhecedor directo do século XIX através do convívio com as suas últimas gerações, é neste século XXI um lídimo exemplo do escol português.

Quem mais se lembraria de ir buscar Hayek para defender o Estado Social? Só um mestre. Só um senador da República cuja missão é a de educar ignorantes e sábios na suprema arte da política: decidir para o bem comum.

Instalem uma chaminé no Ministério das Finanças

Pelos vistos, não há fim à vista para a sétima avaliação da troika. O impasse que seria resolvido durante o fim-de-semana está, afinal, para durar. E o secretismo é tanto que sabemos mais acerca do que se vai passando no Conclave do que nestas reuniões entre troika e Governo. Mas resta saber quem é que está a emperrar as negociações. Há uns dias, a comunicação social garantia que o atraso se devia à inflexibilidade da troika na questão do corte de 4 mil milhões. Que a troika exigia que os cortes avançassem em 2014, enquanto o Governo defendia que se prolongassem até 2015. É muito estranho que não haja uma fugazita para os jornais a dar conta do esforço do Governo para nos aliviar os sacrifícios. Se calhar, é porque a história do impasse está muito mal contada. Sabemos que o ministro das Finanças nunca se mostrou disponível para adiar os cortes, pelo contrário, como se viu, na semana passada à saída da reunião do Ecofin, quando o questionaram sobre o assunto. Portanto, a existir conflito teria de ser entre Gaspar e Portas, que segundo algumas notícias estaria empenhado em prolongar os cortes até 2015. Mas, mais uma vez, parece-me que a história está mal contada. É que, em princípio, 2015 é ano de eleições Legislativas e duvido muito que Portas, o político experiente, se tenha esquecido disso e esteja a lutar para que durante esse ano o Governo tenha de fazer cortes brutais, incluindo despedir milhares de funcionários públicos.

Teremos de esperar pelo fumo, que para nós será sempre negro, para vermos de que lado tem estado a inflexibilidade.

Perguntas simples

Caso Francisco Assis tivesse sido a escolha dos militantes socialistas para ser o líder da oposição, estes governantes que violaram sistemática e furiosamente o contrato eleitoral – apenas para errarem nas contas, falharem os objectivos e agravarem insanamente os problemas que já tínhamos – ainda estariam em funções?

Good food for good thought

“Stedman Jones traces the rise of neoliberalism to the decision of left-leaning governments to adopt monetarist policies. His description of this decision is perhaps the most distinctive aspect of his account. To understand how his argument challenges what we think we know of neoliberalism, we need to take a step back, and take a closer look.

Discussions of neoliberalism, on both the left and the right, suffer from what Paul Krugman and others have called “zombie” ideas. These are economic concepts that have been long discredited, but continue to shamble on. On the right, a central zombie idea is that reduced state regulation of markets leads to sustainable economic growth. If you believe this, then the rise of neoliberalism is a no-brainer. Neoliberalism is simply the economic philosophy that works. But why should anyone believe this? The idea that unleashing free markets then leads to good economic times should never have survived the Great Depression, and should surely be killed for good by the Great Recession and its aftermath.

Meanwhile, a new generation of leftist economists has discovered that their progressive brethren suffer from a zombie idea of their own. Mike Beggs, for example, has recently argued that the Marxist economics many on the left continue to find attractive has a fatal flaw. Marx believed in the labor theory of value, the idea that a commodity’s value is equal to the labor that goes into it. Generations of Marxist thinkers have built on this foundation to form a picture of the way the world’s economy works. Thinkers like David Harvey have used this theory to create a sophisticated explanation of neoliberalism as the natural response of capital to changing conditions. If you subscribe to Harvey’s Marxist theory, then the rise of neoliberalism is, again, a no-brainer. But as Beggs points out, the concept underlying theories like Harvey’s was decisively disproved over a century ago, and no one has ever come up with a persuasive defense.”

When neoliberalism exploded

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Oferta do nosso amigo José Raposo (via postal)

Alternativas a montante

euro escavacado

Há um mal-estar na Europa. É o Reino Unido que gradualmente se desliga e quem não se importe de ir empurrando, é a França que já ameaça mandar às urtigas a austeridade “à la façon germanique”, é Jean-Claude Juncker, ex-presidente do eurogrupo, a falar no perigo de guerra, são os italianos em caos político e a ameaçar com um referendo, os gregos na indigência, os portugueses a tentar disfarçar o indisfarçável, a Espanha agitada; é um distinto conselheiro económico alemão a dizer que quem não aguenta tem sempre a opção de sair do euro, é outro alemão a dar uma entrevista ao Público para dizer que não há alternativa às políticas atuais, acenando, por sua vez, com o Armagedão que aguardaria os países que abandonassem o euro (prova de que também na Alemanha há medo); há ainda a nova guerra de palavras entre Paul Krugman, que não está sozinho na América, e os comissários europeus obcecados e cegos com a austeridade. Enfim, as tensões vão-se intensificando à medida que se sentem as consequências dos eufemisticamente chamados “ajustamentos” e aumentam as desigualdades e a miséria numa parte significativa da Europa. A estrutura vai ter de ceder em algum lado e há formas muito pouco bonitas de tal acontecer.

A Alemanha tem uma política própria no meio desta crise, tão própria que se diria não partilhar uma moeda única. Aliás, controlando o BCE e as instituições europeias, é a política que mais a beneficia, ou vá lá, que menos a prejudica que se impõe aos restantes países. Estamos, por isso, agrilhoados. A atribuição de culpas desde o início a todos e a tudo o que mexia a sul do paralelo 48 N, mas nunca à arquitetura do euro, às discrepâncias entre as economias que fundaram o clube (um erro) e à inexistência de mecanismos de proteção da moeda contra crises e especuladores, levou a este beco sem saída em que o prosseguimento das atuais políticas, além de insustentável, só agrava os problemas e o simples parar para pensar é considerado uma cedência ao facilitismo, ou perigo de “moral hazard”, e vendido como um regresso ao despesismo “que nos trouxe até aqui”. Como se fosse o caso. Que, olhando para o globo e em particular para a América e para o continente europeu, afirmações como esta, mais quem as profere, não sejam de imediato pontapeadas para o lago mais próximo e ridicularizadas, eis uma coisa que não entendo.

Mas eis que na Alemanha também já há quem perceba os riscos e a inutilidade do esforço de salvar o que não tem salvação possível e proponha a saída do país do euro, ou a constituição de um novo clube, desta feita mais restrito. Estará na forja um novo partido – Alternativa para a Alemanha – que avançará provavelmente para as próximas eleições. Para já, o seu programa tem um único ponto, o que, não sendo muito, também não é pouco. A revista “Der Spiegel” fala sobre isso.

«Anti-euro political parties in Europe in recent years have so far tended to be either well to the right of center or, as evidenced by the recent vote in Italy, anything but staid. But in Germany, change may be afoot. A new party is forming this spring, intent on abandoning European efforts to prop up the common currency. And its founders are a collection of some of the country’s top economists and academics.
Named Alternative für Deutschland (Alternative for Germany), the group has a clear goal: “the dissolution of the euro in favor of national currencies or smaller currency unions.” The party also demands an end to aid payments and the dismantling of the European Stability Mechanism bailout fund
.» (Ler mais)

As preocupações destes senhores, na sua maioria de direita, são também a erosão da democracia (nem sabem como estão certos), a falta de representatividade e de legitimidade das decisões, a visão de curto prazo das medidas tomadas a nível europeu, que visam apenas resolver os problemas da banca, e enfim, claro, as dificuldades crescentes em fazer passar no Parlamento alemão os sucessivos resgates e contribuições para os fundos e mecanismos europeus. Aparentemente tudo coisas sensatas. O único entrave a um possível sucesso deste grupo é o facto de a economia alemã não se estar a dar nada mal com o mal dos outros. Nada mesmo.

Seguro, o Castelão

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Seguro vai para o XIX Congresso Nacional, a decorrer em finais de Abril, com o homérico propósito de oferecer aos portugueses “uma nova forma de fazer política”. Ora, Seguro anda a prometer dessa fruta desde Julho de 2011, pelo menos, quando se candidatou à liderança do PS. Tal repetição tanto pode querer dizer que ainda não teve vagar ou pachorra para apresentar a coisa, como pode querer dizer que a coisa consiste nisto de ir à sorrelfa adiando a “nova forma de fazer política” para o congresso seguinte. De novo, novíssimo, em Seguro apenas temos visto uma forma de fazer política onde se desprezam camaradas com responsabilidades governativas e partidárias passadas, onde se promove uma cumplicidade calada e sorridente com a odienta perseguição da direita ao ex-secretário-geral do PS e a quem esteve ao seu lado e onde se alimenta um culto de personalidade do António José que tem tanto de canhestro como de parolo. Tal é radicalmente novo na história dos socialistas, tragicamente.

Este tempo de antena mostra o rei da transparência no seu fulgor. Cinco sextos da duração é ocupada pela sua penosa figura a tentar tocar os portugueses com o poder do seu verbo. Como se apresenta falho de conteúdos, aposta tudo na ancestral técnica do “carneiro mal morto”; a qual consiste na emissão de uns compungidos balidos para mostrar na TV o que é um grande estadista a sofrer com o seu povo, juntamente com um curioso efeito especial em que aparece a olhar para um ponto de fuga três ou quatro metros atrás do nosso ombro esquerdo.

Também brilhante foi a ideia de pegar nas cinco propostas do PS para sair da crise, aquele programa que supostamente seria o que de mais importante havia para comunicar ao País, e colocá-lo reduzido aos títulos numa barra lateral. E isto enquanto ao lado Seguro continuava a produzir magníficas frases cheias da sua magnífica pessoa. Não sei quem foi o inteligente que apresentou este truque onde o espectador dispôs de menos de 30 segundos para assimilar a salvadora solução socialista para sairmos do atoleiro onde estamos afundados, nem sei quantos espectadores conseguiram abandonar o encanto hipnótico da oratória segurista para se concentrarem nas legendas. Sei que um partido que trata assim as suas propostas e os seus eleitores não merece um segundo da nossa atenção.

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O bode expiatório

Reproduzo aqui, com a devida vénia, um excelente texto de Correia de Campos, ex-ministro da Saúde, hoje publicado no Público:

«Todas as sociedades tiveram o seu bode expiatório. O dia da expiação era um ritual para purificação da nação de Israel. Para a cerimónia, eram levados dois bodes, um deles era sacrificado e o outro, o bode expiatório, era tocado na cabeça, pelo sacerdote, que confessava os pecados dos israelitas e o enviava para o deserto, onde todos os pecados eram aniquilados. Para a direita nacional e sobretudo para a comunicação social que o temia, por imprevisível, Sócrates é o bode expiatório ideal. Está ausente, não pode falar sem provocar mais ruído que o já criado, dedica-se a coisas aparentemente esotéricas como a filosofia política, os seus apoiantes reduzidos a um quadrado defensivo. Ainda por cima, o partido que dirigiu com mão forte durante meia dúzia de anos esteve longe de se dispor a defendê-lo, com isso deixando-se também cair num fojo. Os sinais recentes de reunião podem aqui ajudar ao exorcismo clarificador. Até que tal suceda, os clarins da direita infrene espreitam a mais ténue imagem, escutam o mais vago rumor de movimento do visado. Certamente não deixariam passar em claro que o seu antigo e temido adversário de estimação emergisse da clandestinidade. O que quer que fosse o que fizesse, o emprego que aceitasse ou a que aspirasse, tudo seria objecto de inquisitória perseguição sob a forma de suposta investigação jornalística. Acontece que Sócrates aceitou funções de representação internacional de um laboratório suíço intervindo na área do sangue e seus derivados, com a reserva de o trabalho ser fora do país. Toda a sanha se projectou sobre o desempenho dessa empresa, entre nós, no tempo de Sócrates. Descobriu-se, pasme-se, que a empresa era um dos poucos fornecedores activos nos concursos centralizados que a Saúde então organizava. A passagem de centralizado a disperso, proposta pelos serviços competentes, parece racional. Mas tendo sido executada no seu tempo, todas as razões são boas para gerar suspeição e insídia. Tal como aconteceria se o processo fosse o oposto: a passagem de concursos descentralizados a centralizados, talvez até com agravada desconfiança. Faça Sócrates o que fizer, será sempre ele a turvar a água que o lobo pretende beber. Ele ou alguém por ele. A sua única sorte é não ter sido ele tomado como o outro bode, o que sofreu sacrifício imediato. Assim, como refere a antiga cultura, ele foi apenas tocado na cabeça e mandado para o deserto

Baldaia’s effect

Nada contra as ideias e preferências políticas do Paulo Baldaia. Deuses me livrem. Nada contra o facto de largar no DN regulares exercícios de banalidade que não devem ser nada fáceis de manter assim tão banais. Há gostos para tudo. E nada contra o facto de ser o actual director da TSF. Sem dúvida, a melhor rádio de informação em Portugal desde que surgiu e até hoje. Mas por que caralho o homem aparece a debitar sentenças em programas de opinião na estação que dirige? Oiçamos o que partilhou connosco a respeito do reformado de Belém:

Fórum TSF

Resumo baldaiano:

– A prestação do Presidente da República é positiva porque… porque… parece que ele algures no passado, num ou dois casos, fez aquilo que se espera seja feito por um Presidente da República.

– Isto de Cavaco estar em silêncio durante semanas ou meses, nada dizendo acerca do agravamento da crise económica e social, é o que deve acontecer porque o Presidente da República não é um comentador que tem sempre de andar a falar sobre tudo e mais alguma coisa. E prontos.

– O discurso da tomada de posse, em 2011, foi especial porque ele esteve a apresentar as suas ideias para os próximos 5 anos (sic e sick), pelo que não se deve comparar com o que fez e disse daí em diante.

– A História mostrará que o Presidente da República tem estado activo, e, para além disso, não sei se já o tinha dito, o senhor não tem de estar sempre a falar, não vá desgastar a sua palavra ou apanhar uma faringite.

– Deixem de tentar que o Presidente da República seja o comentador-mor da República, especialmente quando estão cá os senhores da Troika. Caraças, então andam por aí os senhores da Troika a ter de reunir com os indígenas, a dormir em camas estranhas, a tomar decisões que afectam 10 milhões de mamíferos, e ainda querem que o Presidente da República fale aos portugueses, e logo desses assuntos sobre os quais devemos estar todos caladinhos e obedientes?

Baldaia sustenta todo o seu argumentário numa falsa dicotomia: ter aparecido Cavaco a falar sobre a situação nacional desde o discurso do Ano Novo, uma só vez que fosse, implicaria que ele se havia tornado num vulgar comentador, que ele andava a falar sobre tudo e mais alguma coisa, que o poder da sua palavra tinha desaparecido numa torrente verborrágica. Esta falácia é tão inane que – quero crer! – só o receio de um conflito interno terá impedido o Manuel Acácio de expor e confrontar a desonestidade intelectual do seu director.

Mas a questão de fundo remete para o panorama da comunicação social no que à criação de opinião diz respeito. Que efeito tem este domínio do laranjal sobre o espaço público, indo, por exemplo, desde a civilizada deturpação do Baldaia, passando pelo espectáculo de feira do Marcelo, as patologias do Crespo, as máquinas caluniosas ambulantes como o Pacheco Pereira e a Helena Matos, e chegando ao esgoto a céu aberto que é o Correio da Manhã? É que esta constante produção de influência tem alvos e objectivos bem definidos, consistindo numa força que está ao serviço da conquista e manutenção do poder por via da baixa política, dos assassinatos de carácter e das conspirações.

Dois participantes do Fórum TSF ilustram na perfeição o que se pretende obter, invocando o Paulo Baldaia como autoridade de referência. No primeiro caso, defende-se um regime onde o Presidente da República deixa de responder aos cidadãos, passando a comportar-se como um monarca absolutista que resolve os assuntos à maneira dele no secretismo do seu palácio. No segundo caso, manifesta-se doentiamente o ódio irracional que derrubou um Governo e afundou o País.

“O Presidente que os outros não conseguiram ser”

“Ruptura completa provocada por um senhor que agora vive à grande e à francesa em França”

Outros vícios além da política

Não há como negar que somos literalmente inundados por filmes americanos e ingleses, muito deles forçosamente bons. Mas tenho por hábito ver filmes de nacionalidades variadas, produzidos nos mais diversos pontos do globo, sendo rara a vez que me arrependo. Uma coisa que agora (re)começa a saber bem é ir ver filmes franceses. O cinema francês parece ter-se revigorado e estar em boa forma, como já tem sido assinalado, mesmo que o caminho da reconquista do público tenha passado por comédias simples. O filme “Alceste à bicyclette” não deixa de ser uma comédia, porém não totalmente ligeira. É em grande medida uma lição de bem representar. O argumento, escrito por Philippe Le Guay e por um dos dois atores principais do filme, Fabrice Luchini (que não há muito tempo vi no interessante “Dans la maison”), é uma livre e bem engendrada transposição para um contexto atual de «O Misantropo» de Molière. Gira basicamente em torno de dois atores – Serge Tanneur (o próprio Luchini) e Gauthier Valence (Lambert Wilson – uau! (quanto ao sobretudo branco, ainda estou a processar a informação visual)) – outrora colegas, mas há seis anos afastados devido, nomeadamente, ao retiro voluntário de Serge das lides artísticas, desiludido com o mundo dos atores e as relações pessoais.
Gauthier, que se tornou entretanto uma celebridade nacional graças ao seu papel de médico numa série televisiva de grande audiência, e com vontade de fazer algo mais sério, descobre o outro a viver na ilha de Ré (a meio da costa oeste da França – ocasião para promoção turística, nada a objetar), meio eremita e algo azedo, e lança-lhe o desafio de representarem em conjunto a famosa peça de Molière. Um interpretaria Alceste e o outro o mais otimista Philinte. Aqui, em torno da questão de saber se Serge aceita ou não e depois qual dos dois interpretará quem, começa um conflito de egos, por entre ensaios dos respetivos papéis, e que durará todo o filme a propósito de tudo e de nada, ora pondo em causa a amizade entre os dois homens ora facilmente a restabelecendo, mas com desfecho em aberto. Não vou desenvolver a história para não vos privar do prazer da descoberta, mas cabe-me aqui elogiar os excelentes momentos de representação, em vários registos, dos dois atores – ambos igualmente capazes de encher o ecrã, um mais pelo poderoso lado exterior do personagem, o outro pelo seu interior amargurado e contidamente rancoroso (um verdadeiro Alceste) – que protagonizam momentos, quem diria, genuinamente hilariantes em alternância com outros mais dramáticos e profundos, tudo isto numa ilha do Atlântico e entre passeios de bicicleta (uma delas sem travões) pelos sapais. Acresce o caráter plausível de toda a trama. Não sei se já estreou em Portugal, mas aqui fica uma chamada de atenção para a sétima arte francesa, que não está derrotada.

Outro vício que estou a desenvolver com imenso prazer é o das boas séries televisivas. Os vários episódios da série americana “Homeland” (primeira temporada) põem-te em estado de exaltação e dependência durante vários dias (comprei o pacote). A 3 euros o episódio, não se pode dizer que não haja aqui “value for money”. Já desespero pela segunda temporada, ainda não à venda, pois as tentativas de a ver em sites marados da Internet têm-se revelado infrutíferas. A série policial dinamarquesa “The Killing” é outro desassossego, senhores.

Enfim, com a triste conjuntura política, nada como mergulhar nestas histórias bem contadas e erguer de vez em quando o periscópio para ver se ainda falta muito. OK, ainda há tempo para observar o cortejo de palhaços que desfila pelas notícias.

Supremo Mentiroso da Nação

2013

Num tempo dominado pelo culto do efémero e do protagonismo mediático seria
porventura tentador utilizar a chefia do Estado como palco de atuação de grande efeito,
buscando o engrandecimento pessoal através de intervenções mais ou menos populistas,
que conquistassem simpatias do momento mas das quais nada resultaria, a não ser um
grave prejuízo para o superior interesse nacional.

Em conjunturas de crise, como a que vivemos, seria fácil tirar partido de uma
magistratura que não possui responsabilidades executivas diretas para, através de
declarações inflamadas na praça pública, satisfazer os instintos de certa comunicação
social, de alguns analistas políticos e de muitos daqueles que pretendem contestar as
instituições. Seria fácil, por exemplo, alimentar sentimentos adversos à classe política
ou até à ação do Governo.

Esse não é, no entanto, o meu entendimento sobre o que deve ser a ação responsável de um Presidente da República, muito menos em tempos de grave crise. Os Portugueses sabem como sou, conhecem a minha aversão a excessos de protagonismo pessoal e o meu apego ao superior interesse do País. A minha missão consiste em contribuir, de forma ativa mas ponderada, para que Portugal vença os desafios do presente sem perder de vista os rumos do futuro. Foi esse o mandato para que fui eleito – e dele não me afastarei nem um milímetro.

Prefácio aos Roteiros VII

2011

Ao Governo e ao Senhor Primeiro-Ministro reitero o compromisso de cooperação que há cinco anos assumi perante os Portugueses. Pela minha parte, pode contar o Governo com uma magistratura activa e firmemente empenhada na salvaguarda dos superiores interesses nacionais.

Enquanto Presidente da República cumprirei escrupulosamente os compromissos que assumi perante os Portugueses no meu manifesto eleitoral. No quadro de todos os poderes que me são conferidos pela Constituição, serei rigorosamente imparcial no tratamento das diversas forças políticas, mantendo neutralidade e equidistância relativamente ao Governo e à oposição.

Irei cooperar com os demais órgãos de soberania para que Portugal ultrapasse as dificuldades do presente e actuarei como elemento moderador das tensões da vida política e como factor de equilíbrio do nosso sistema democrático.

*

Como sempre tenho afirmado, só um diagnóstico correcto e um discurso de verdade sobre a natureza e a dimensão dos problemas económicos e sociais que Portugal enfrenta permitirão uma resposta adequada, quer pelos poderes públicos quer pelos agentes económicos e sociais e pelos cidadãos em geral.

Não podemos correr o risco de prosseguir políticas públicas baseadas no instinto ou em mero voluntarismo.

Sem crescimento económico, os custos sociais da consolidação orçamental serão insuportáveis.

A expectativa legítima dos Portugueses é a de que todas as políticas públicas e decisões de investimento tenham em conta o seu impacto no mercado laboral, privilegiando iniciativas que criem emprego ou que permitam a defesa dos postos de trabalho.

A nossa sociedade não pode continuar adormecida perante os desafios que o futuro lhe coloca. É necessário que um sobressalto cívico faça despertar os Portugueses para a necessidade de uma sociedade civil forte, dinâmica e, sobretudo, mais autónoma perante os poderes públicos.

Em vários sectores da vida nacional, com destaque para o mundo das empresas, emergiram nos últimos anos sinais de uma cultura altamente nociva, assente na criação de laços pouco transparentes de dependência com os poderes públicos, fruto, em parte, das formas de influência e de domínio que o crescimento desmesurado do peso do Estado propicia.

É uma cultura que tem de acabar. Deve ser clara a separação entre a esfera pública das decisões colectivas e a esfera privada dos interesses particulares.

É altura dos Portugueses despertarem da letargia em que têm vivido e perceberem claramente que só uma grande mobilização da sociedade civil permitirá garantir um rumo de futuro para a legítima ambição de nos aproximarmos do nível de desenvolvimento dos países mais avançados da União Europeia.

Necessitamos de recentrar a nossa agenda de prioridades, colocando de novo as pessoas no fulcro das preocupações colectivas. Muitos dos nossos agentes políticos não conhecem o país real, só conhecem um país virtual e mediático. Precisamos de uma política humana, orientada para as pessoas concretas, para famílias inteiras que enfrentam privações absolutamente inadmissíveis num país europeu do século XXI. Precisamos de um combate firme às desigualdades e à pobreza que corroem a nossa unidade como povo. Há limites para os sacrifícios que se podem exigir ao comum dos cidadãos.

A pessoa humana tem de estar no centro da acção política. Os Portugueses não são uma estatística abstracta. Os Portugueses são pessoas que querem trabalhar, que aspiram a uma vida melhor para si e para os seus filhos. Numa República social e inclusiva, há que dar voz aos que não têm voz.

O exercício de funções públicas deve ser prestigiado pelos melhores, o que exige que as nomeações para os cargos dirigentes da Administração sejam pautadas exclusivamente por critérios de mérito e não pela filiação partidária dos nomeados ou pelas suas simpatias políticas.

Os jovens não podem ver o seu futuro adiado devido a opções erradas tomadas no presente. É nosso dever impedir que aos jovens seja deixada uma pesada herança, feita de dívidas, de encargos futuros, de desemprego ou de investimento improdutivo.

É fundamental que a sociedade portuguesa seja despertada para a necessidade de um novo modo de acção política que consiga atrair os jovens e os cidadãos mais qualificados. O afastamento dos jovens em relação à actividade política não significa desinteresse pelos destinos do País; o que acontece, isso sim, é que muitos jovens não se revêem na actual forma de fazer política nem confiam que, a manter-se o actual estado de coisas, Portugal seja um espaço capaz de realizar as suas legítimas ambições. Precisamos de gestos fortes que permitam recuperar a confiança dos jovens nos governantes e nas instituições.

Foi especialmente a pensar nos jovens que decidi recandidatar-me à Presidência da República. A eles dediquei a vitória que os Portugueses me deram. Agora, no momento em que tomo posse como Presidente da República, faço um vibrante apelo aos jovens de Portugal: ajudem o vosso País!

Façam ouvir a vossa voz. Este é o vosso tempo. Mostrem a todos que é possível viver num País mais justo e mais desenvolvido, com uma cultura cívica e política mais sadia, mais limpa, mais digna. Mostrem às outras gerações que não se acomodam nem se resignam.

Discurso de Tomada de Posse do Presidente da República

Bloco não presta, diz Jerónimo

Como o Bloco de Esquerda está à nora com cisões internas e dissidências, os comunistas começaram a rondá-lo como abutres.

Dizem os jornais de ontem que Jerónimo de Sousa desafiou os jovens a aderirem ao PCP, alegando que a inscrição no Bloco não incomoda nada os patrões. Segundo Jerónimo, os bloquistas escorregam que nem ginjas pela goela do patrões:

“O que é que lhes incomoda [um trabalhador] ser do BE? Isso papam eles ao pequeno-almoço. Não se preocupam nada”.

De facto, o PCP é que é a boa escolha. A sério.

Por quatro razões.

Primeira, porque o PCP incomoda. Não será coisa muito difícil, convenhamos. Todos nós temos gente que nos chateia, não é? Mas o PCP não chateia, o PCP incomoda. OK, tem um ponto. Adiante.

Segunda, porque o PCP incomoda os patrões. Bem, isso é francamente positivo. Tirar os patrões da zona de conforto é uma nobre missão que até o Coelho acharia digna de elogio. Se Marx e Lenine ressuscitassem, decerto exclamariam de bom grado, de mãos dadas com Jerónimo: “Proletários de todos os países, incomodai os patrões!”

Terceira, porque o PCP não só incomoda os patrões, como os deixa preocupados, talvez angustiados, se não mesmo deprimidos, o que é manifestamente excelente. A maltósia do Bloco não cria nem uma dúvida existencial aos patrões, não lhes provoca um engulho, uma hesitação. Nada, nadinha. Em contrapartida, o PCP é o partido que preocupa profundamente os patrões. Um patrão profundamente preocupado, angustiado e deprimido é o máximo a que um jovem pode aspirar. Se Marx e Lenine ressuscitassem, decerto exclamariam de bom grado, de mãos dadas com Jerónimo: “Patrões de todos os países, preocupai-vos!”

Quarta, porque o PCP estraga os pequenos-almoços dos patrões. Ora isso já é absolutamente fantástico, magistral e piramidal. Então os patrões queriam tomar o pequeno-almoço descansados, sem se engasgarem, sem angústias existenciais? Estão tramados, está aí o implacável PCP para lhes estragar o arranjinho e lhes provar quão contingente e precária é essa simples alegria matinal de quebrar o jejum. Em 92 anos de luta, o PCP já tornou milhares de pequenos-almoços patronais num autêntico martírio. Até patrões calejados, cínicos e com pelos no coração imploram de joelhos aos comunistas que se afastem da sua mesa enquanto tomam o pequeno-almoço. Se Marx e Lenine ressuscitassem, decerto exclamariam etc., etc.