História de um beijo

Naquele tempo não era nada disso que se vâ agora, que isso é tudo um putchedo, o que elas querem é gandaiar, elas é qu’andam atrás dos rapazes, qu’um home inté fica menente com tanta franquidão das raparigas, e as mães c’ma cegas, não vêem ou fingem que não vêem, não falta agora quem viva ameigado, que intigamente um caso desses era ralíssimo, e era uma escandaleira medonha, mas são coisas dos tempos, dizim, mas os tempos não mandam na gente, e isso que cada ovelha paga p’lo seu pé, e não tenho nada que me meter na vida dos outros.
A gente não podia nim sequer tocar na nouva, o senhor padre dezia que antes de receber as ordes não podia dezer missa, assim que nim sequer na véspra do casamento um home podia fazer cousas co’a nouva, era assim mesmo. E só dei um beijo de verdades na minha depois de me casar, mas eu vou-le contar o que aconteceu.
Minha sogra e meu sogro, mais ela qu’a ele, que era uma subica, tinha o rei na barriga, e inté a avó dela, uma pinarreta toda espevitada, tava sempre d’olhos arregalados não le fosse eu comer um bocado da neta. A gente começou a namorar de longe, quando calhava, por ameces, se ela aparcia à jinela, eu fazia uns ferrumecos, a gente ia-se entendendo, mas tanto ateimei que lá quando Deus quis e foi servido deram autorizo do namoro, mas sempre com muntch’ó vigiar, a gente não se podia chegar um ao outro, e mesmo à jinela, se calhava um instintinho sem ninguém tar a ver, ela não me deixava tocar nim c’um dedo, que mamã tá aí, que vavó pode ver, um fogue que las abrase, qu’ambas e duas não faziam outra cousa senão vigiar a rapariga.
Inté um dia, namorando na cozinha, a gente se qu’ria dezer alguma cousa más cá prà gente era por intomas, pra elas não entenderem – a raia da velha não tava, havera de tar falazando c’o as vizinhas –, minha sogra sempre d’olho bem aberto enquanto ia fazendo a ceia, vai botar uma acha no lar, e sempre c’os olhos inviezados, não viu o que tava fazendo tocou co’a mão num tição, deu um berro c‘ma uma alma quando pela o cu no inferrne a primeira vez, foi muncth’ó rebim fecthe.
Segue-se qu’um dia, despous do trabalho, ciei, lavei os pés, calcei as galochas e fui passar por casa dela. Não era dia de namoro, mas era só aquela inlusão de ver se la via, que é qu’o senhor quer, era assim mesmo, cousas da novura. Era já à boquinha da noute, e veje-la na jinela. A casa dela era mesmo incostada à travesa, assim que fou mal desemboquei dei com aquela querida à mão de samiar. Vou devagarinho, ela tava olhando pra baxo, chegue-le ao pé, e presanto-lhe um bejo na cara, de fugidela, que nim sequer deu pra tomar gosto ninum, tá-se mesmo a ver. Mas nisto a corina deu um grito medonho. Ó meu rico senhor, era a raia da minha cunhada, que tava à espera de ver passar o nouvo, a mardita. Eu dei uma corremaça por aquela rua abaxo qu’inté me caiu uma galocha do pé.
Pous intances fou assim mesmo, é verdade, qu’o único bejo qu’eu dei na minha mulher antes de casar não fou nela, fou na irmã!

Abertura Judicial

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Ontem reuniram-se, na mesma sala, cinco dos seis principais responsáveis pela Justiça em Portugal. Foi celebrada a abertura do Ano Judicial com discursos. Que passou para o cidadão dessas elocuções? Que fica dessas ideias? Nada, arrisco impaciente. E, no entanto, não há dimensão política mais importante do que a da Justiça. É mais importante do que a Saúde, a Economia ou a Segurança, porque condição e garante de todas elas. Um Estado que tenha falhas na Justiça não cria riqueza nem educa. E se não educa, nunca criará riqueza. A impunidade do poderoso promove a corrupção do medíocre, desvia os recursos monetários e desvitaliza os recursos intelectuais. A Justiça é um permanente fluxo de racionalidade, ligada a montante à ética e a jusante à moral — se o caudal baixa, a terra seca, o deserto avança. E os seus agentes e tutela, que acabam por ser todos os órgãos de soberania, partidos e eleitores, sabem-no e sofrem-no. Porquê este adiamento do investimento num sistema que se arrasta pejado de disfuncionalidades? Para quê? O para quê até que não é difícil desvelar: aos agentes económicos e financeiros mais poderosos não interessa uma Justiça eficaz, nem lá perto. E estes compram os políticos. Resta o porquê, o qual fica a olhar para os eleitores e para os cidadãos. É curioso ainda não ter surgido um movimento político que se proponha colocar a Justiça no centro do projecto, talvez por se continuar vítima do dualismo esquerda-direita. À esquerda, ou à direita, nunca se procurará a justiça na Justiça, pois cada uma dessa posições é parcial. Só num paradigma vertical, numa nova monarquia cujo rei seja a coragem e a rainha a inteligência, se poderá começar a pensar a questão da Justiça a partir da cidadania.

Entretanto, o ano judicial conheceu uma verdadeira abertura 24 horas antes do protocolo. Na segunda-feira, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa pronunciou o despacho onde arquivava a queixa-crime da RTP contra Eduardo Cintra Torres. O juiz contextualiza a referência à censura de uma forma que vem contribuir para a sanidade do debate público, independentemente de se considerar certa ou errada, do ponto de vista argumentativo ou ético, a atitude do Cintra Torres.

Eis o que deve ser a Justiça: abertura à liberdade. E eis o que deve ser a liberdade: confiança na Justiça.

Antes de mais nada, um desabafo:

Sou agora o mais Perfeito e Acabado Corno. Traída não uma, não duas, não dez, não vinte, mas uma carrada de vezes. Sinto raiva, confesso.

Não delas…
Quero lá saber de que cor tinham a pele, de que comprimento os cabelos ou de que massas feitas as tetas. Quero lá saber o que gritavam e onde punham a boca. Quero lá saber o que pensavam, os problemas que têm e as doenças que vão ter.
Mas dele… desse pedaço de bronco… Tenho raiva, tenho. Dedico-lhe um insulto a cada parágrafo de pensamento, e desejo-lhe mortes, dores e que sinta por si mesmo o nojo que eu sinto por ele.

Suponho que o homem que agora sei que ele é, me roubou o homem que eu pensava que tinha. E o homem que agora sei que ele é, é a minha Outra.

Isabel no Aspirina B

Eles queriam gajas, mais gajas, para acabar com a ribaldaria que aqui reinava. Desde que soube que esta palavra, ribaldaria, se escreve com «i», estava mortinha por usá-la. Sorte a minha, tive logo a oportunidade de o fazer duas vezes. Convenhamos que ribaldaria, com fonema agudo, fica uma ribaldaria muito mais feminina e composta.
É tempo de remodelações e este blog não anda em desgoverno. Sendo eu uma enviada do Engenheiro José para a promoção da equidade e boicote à misoginia, venho anunciar uma das novas contratações que tornarão este espaço ainda maior.
Foi difícil convencê-la, pois trata-se da Isabel (R., na Soca), que é muito, muito boa e tem mais que fazer do que gastar-se em blogs. Mas ela, finalmente, concedeu-nos essa graça. Isabel, desculpa este texto manhoso de apresentação, mas a verdadeira, e boa, deixo-a para ti. Aliás, és tão boa, que és também pontual e até te antecipaste ao meu texto de apresentação. Haja por aqui alguém a representar condignamente as virtudes femininas.

Futebol de quarta-feira

Tenho na mão um livro brasileiro dum português. Não acontece muitas vezes. Este chama-se Mansões abandonadas e é uma antologia da poesia do José do Carmo Francisco. Tem organização de Floriano Martins, ilustrações de Sérgio Lucena e introdução de Nicolau Saião. Edita-o a Escrituras, de São Paulo.

A recolha inclui algumas das melhores produções do poeta. Mas não esta, de Jogos Olímpicos, livrinho de 1988. Que aqui transcrevo. Por gosto estritamente pessoal.

*

Futebol de quarta-feira

Para quem janta a correr e sai de casa mais cedo
para perder tempo na bicha do «36» no Rossio
não custa suportar nem o vento nem o frio
nem a dúvida do resultado que se transforma em medo.

O autocarro saiu completo e já vai na Avenida.
Daqui de cima vejo melhor a cara de quem espera.
E vejo melhor o condutor quando ele acelera
como se também fosse sua esta nossa corrida.

O resultado que vai sair em todos os jornais
nunca pode testemunhar o jogo, a sua história.
Daqui por alguns anos ficarão apenas na memória
os números, sem golos a menos nem golos a mais.

Agora sonho com os comentários de amanhã.
E sei que me vai custar mais a levantar.
Dói-me a garganta depois de tanto gritar
e para a próxima compro um cachecol de lã.

site involuntário

Há dias o Valupi assinalou a afluência assídua a alguns posts do Aspirina que vão ficando lá para baixo. Num deles, abrir o livro, vão gotejando comentários, a uma cadência regular, de pessoas ligadas ao meio do hoquei em patins. A natureza especializada e a extensão dos mesmos indiciam uma presença cada vez mais estável de adeptos da modalidade nesta caixa. Uma ocupação espontânea e bem-vinda, num espaço obscuro, relativamente anónimo, mas onde parecem sentir-se em casa. Que todas as moradas desportivas fossem como esta, fácil, barata e ao agrado de todos.

ilusos lusos

Um dos melhores blogues portugueses (por mais bem feitos, mais úteis) é este, de nome atormentado: Letratura, de Helder Guegués. (O patronímico é inabitual, mas o possuidor é portuguesíssimo). Nesse blogue se examina e comenta o nosso idioma com erudição, com gosto, com leveza.

Um dos últimos temas é a súbita florescência em jornais do vocábulo lusos a designar os portugueses.

Devo dizer que já o tinha advertido num programa de televisão. E suponho – com um faro que cada vez menos se engana – ser o uso provindo de média espanhóis, onde, para variar com «los portugueses», frequentemente se nos chama «los lusos».

Se isto tiver vindo «desde España», temo que venha para ficar. Mas, para a nossa já deprimida auto-imagem, é arrepiante que passemos a designar-nos – mesmo só para variar – com um nome que o grande vizinho nos arranjou. Teremos de aceitar que se nos trate por «los lusos». Mas é pataratice copiá-lo, e dizer também «os lusos» de nós próprios.

Terei de dizer, uma e outra vez, que admiro profundamente a Espanha? E terei de dizer, outra e outra vez, que isso casa bem com uma infinita desconfiança da sua percepção a nosso respeito? E com uma viva repulsa por este tipo de sugestões?

Minha nega Fulô

Minha Nega Fulô

Não bata não, sinhá,
Não bata não.
Nunca ninguém pegou minha mão
Por gostar,
Nunca ninguém, sinhá.
Papai morreu no negreiro.
Eu viajei segura dentro de mamãe,
Que morreu dez vezes na viagem
E a última na senzala quando nasci.
Nunca ninguém catou meu cafuné.
O sinhô abriu caminhos no meu corpo,
E nem pediu com licença nem por favor.
E eu não mando no sinhô,
Nem mando em mim, sinhá.
Bichinho da terra não tem dono,
Nem ave do céu, sinhá.
Mas se o sinhô gostou meu coração mirim,
Ficou seu dono, sinhá.
Me deixa, dona, me deixa chorar.
Não precisa bater, a dor que eu tenho dá.

O caso José Manuel Fernandes

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Quem lê o Público, e leu neste domingo, poderá ter feito o mesmo exercício que eu fiz: ligar o texto de António Barreto ao de Joaquim Vieira. Barreto despeja mais um alguidar de banalidades inconsequentes, mas desta vez ataca os jornalistas na figura das redacções. Ora, isto é o mesmo que atacar os directores dos jornais. E fica espaço suficiente entre os latidos para se imaginar que nem o jornal onde escreve escapa à sua raiva veterotestamentária. Logo a seguir, o Provedor do Leitor faz aquela que tem de ser a mais grave crítica que se pode fazer a um jornal: diz que as fontes não são credíveis, porque não identificadas em vários e fulcrais episódios; sendo os próprios princípios deontológicos do Público a suscitar todas as perversões, ao arrepio do que é a prática internacional de referência. Os exemplos apontados, por sua vez, ligam-se com a temática do vitupério barretino: a manipulação das redacções pelas agências e agentes de comunicação. Quer-se dizer, estes dois senhores, referências éticas assumidas e reconhecidas, podem ter estado — cônscia ou inconscientemente — a pôr a corda à volta do Zé Manel.

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passagens

O que o temperamento arisco da adolescência faz em nós. Chega a casa, abre os braços e fecha-os à volta dos meus ombros, sem apertar. Fica assim alguns segundos, aconchegado. Filho, aconteceu alguma coisa? Nada, mãe, vinha só com vontade de te abraçar. Dá-me um beijo, escolhe um livro e deita-se no quarto, a ler. Precisamente, e pelo contrário, está muito bem.

Coisas que não se ouvem na Linha de Cascais por volta das 9.30 da manhã — I

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– 40 anos…
– Hã?…
– 1968. Foi há 40 anos…
– Ah…
– Revolta nas universidades, Primavera de Praga, Maio de 68…
– Olha, já estamos na Parede.
– Que tempo, que esperança!
– Pois, pois…
– Sabias que o Tariq Ali diz que 68 só acabou em 74, com a Revolução dos Cravos?
– Esse Tariq… pfff…
– E depois a volta que aquilo deu, os russos, o De Gaulle, Nixon…
– É. É fodido.
– Podíamos ter mudado o mundo… Podíamos, pá…
– Podes é passar-me A Bola.

O PSD e a insónia

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Num jantar de Natal do PSD, a 21 de Dezembro, Menezes profetizou o martírio e a insónia de Sócrates, logo a partir do começo do ano. A imolação teria lugar no Parlamento, a vítima cairia pela ferocidade dos deputados sociais-democratas. Antecipando as festividades, dois dias depois Menezes exigia que Cadilhe fosse para a CGD em nome de uma concepção corrupta de democracia, a qual garantiu ter a chancela de Cavaco. 2007 ainda lhe ofereceu uma última ocasião para exibir o perfil de grande estadista, desta vez pretendendo condicionar as eleições no BCP. Estava o baile armado, e ainda nem se tinha aberto champanhe com sabor a 2008.

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Dissertação breve sobre o olhar de Marisa

Há no olhar de Marisa a memória dum tempo entre pedra e água. Nesse tempo tudo o que era essencial à vida (água, pão, azeite, vinho) era arrancado às pedras. Os homens tiravam as pedras da terra para a amanharem e com essas pedras construíam os muros, os redis para o gado, os abrigos dos pastores, as eiras, as cisternas, as pias e os poços rotos. Sem esquecer as presas, muros de contenção de terras onde se plantavam as oliveiras. Depois da pedra, a água. No olhar actual de Marisa passam de novo carros de bois com tonéis cheios de água. Um molho de vides, colocado em cima, evita o desperdício da água nos solavancos do caminho. A água era o bem mais precioso no tempo que o olhar de Marisa recorda. A porta da casa deixava-se sempre no trinco mas a portinhola da cisterna estava sempre fechada a cadeado. Uma enguia no fundo ajudava a matar todos os vermes. E a água sabia sempre bem. Ao lado do escritório de Marisa na cidade existe um restaurante. Nada nesse pão de forno eléctrico recorda à menina-mulher o sabor das «brindeiras» de sábado à tarde no forno da avó. O trigo e o milho eram tratados pelos homens a malhal em lenga-lengas ritmadas na «eira de poço», numa dupla inscrição de tarefas. Depois da ceifa e das descamisadas, completada a ocupação principal, surgem as primeiras chuvas de Setembro e a água, essa primeira água, não vai ainda para a cisterna. Só a segunda água entrará no reservatório. No centro comercial um pianista repete músicas de hotel, mas Marisa ouve na verdade uma canção antiga: «Fui lavar ao Rio Lima/Cheguei lá sem o sabão/Lavei a roupa com rosas/Ficou-me o cheiro na mão». O olhar de Marisa resiste ao desgaste da cidade porque tem dentro de si a memória e a força da pedra e da água.

óPtimo, não é?

Se vamos passar a escrever só (mas também sempre) os «c» e os «p» que pronunciarmos, há uma forma muito simples de conservá-los:

é passarmos a pronunciá-los sempre.

Até hoje, nunca pronunciei «espeCtadores», ou «caraCterística», como ouço tanta gente fazer. Pareceu-me parvoíce. Ah, como eu estava enganado!

O livro que queimava nas mãos

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Andei com ele cinco, seis horas. Não na mão, não no bolso, mas entalado entre as calças e peça mais íntima. Sabia que ele era valioso, muito valioso. Para falar mais claro: era caríssimo.

Eu já o lera. E até sabia dele coisas de cor, como «O mostrengo que está no fim do mar», e «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», e «Ó mar salgado, quanto do teu sal…», e «Cadáver adiado que procria», e «Tudo vale a pena / Se a alma não é…», e nem me atrevo a rimar. É a colecção dos nossos lugares-comuns, quando as palavras nos faltam ou nos vemos mais preguiçosos.

Mas o livro era caríssimo, caríssimo. Quanto? Tratei de sabê-lo. Não porque quisesse aliená-lo (ele nem era meu), mas porque queria dizer, a quem o entregasse, quanto a oferta de outro valia. Eu era só o transporte. Entre um amigo falecido e um amigo vivo.

A Mensagem de Fernando Pessoa, numa primeira edição, exemplar impecável e, para mais, com dedicatória, data e assinatura do autor, vale hoje cerca de € 5.000. É o mínimo que se paga por ele a um antiquário. Mas, levado a leilão, pode facilmente render € 10.000, ou dois mil contos. Se não mais. Há sempre uma universidade americana que não olha a dinheiro.

Eu mantinha-me quieto quanto podia, naquele comboio, para não estragar o material. Ninguém sonhava o que eu ali tinha. Mas um percalço ferroviário, um assalto a carteiras e telemóveis, uma súbita loucura colectiva em meu redor, qualquer coisa igualmente horrível e imaginável, teria de encontrar-me preparado.

Cheguei vivo ao destino. Entreguei o livro. Ele queimava-me nas mãos e já no corpo todo. Mas tudo vale a pena, se… Não, por favor. Tudo menos isso.

Quem duvida das virtudes estéticas dessa mui nobre arte que é a taxonomia que deixe de lado o Lineu e atente à seguinte passagem da versão de 1980 (para mim, a melhor de todas) da Classificação Nacional das Profissões da saudosa Secretaria de Estado do Emprego do Ministério do Trabalho (pp. 239-240): «A profissão de Tripeiro divide-se em: a) Tripeiro em geral; b) Auxiliar de tripeiro; c) Calibrador de tripas; d) Medidor de tripas; e) Salgador de tripas; f) Salgador de peles que não sejam tripas; g) Outros magarefes, tripeiros e preparador de carnes.»

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Apesar de os vídeos musicais terem descoberto há já alguns anos que a Internet tinha tudo para ser o seu habitat natural, é surpreendente que apenas recentemente tenham surgido os primeiros sinais de adaptação do formato à plataforma. Não estou a falar da suposta estética pixelizada do YouTube, mas do facto dos videoclipes terem finalmente começado a tirar proveito das potencialidades interactivas do HTML. Também aí, os Arcade Fire são pioneiros. Depois de, há cerca de meio-ano, o realizador Vincent Morrisset ter dado o tiro de partida com o surpreendente Neon Bible, chega agora um objecto ainda mais belo e fascinante realizado por Olivier Groulx & Tracy Maurice e que tem por mote o hipnótico Black Mirror. Posso estar enganado, mas algo me diz que estes dois clipes marcam o início de uma nova era na história dos vídeos musicais.

O José do Telhado não se chama João

Vivo em Lisboa desde 1966 e tenho tido sempre o meu trabalho e a minha casa por aqui: Rua do Ouro, Chiado, Camões, Bairro Alto, Santa Catarina. O mesmo é dizer livrarias, antiquários, editoras, leiloeiros, alfarrabistas. A Moraes, editora dos meus primeiros livros, era no Largo do Picadeiro e passou para a Rua do Século. O jornal onde comecei em 1978 (Diário Popular) era na Rua Luz Soriano. Mas ia nos alfarrabistas. Tem chegado gente nova ao ramo com os seus telemóveis, faxes, E-mails, blogs, sites, boletins. E alguma prosápia muito juvenil. Há dias tive nas mãos um boletim bibliográfico que, embora datado de Dezembro de 2008, é de Dezembro de 2007 até porque estamos em Janeiro de 2008 e ainda não chegámos lá. Um dos livros referidos é sobre a revolta militar da Ilha da Madeira em 1931 mas, por óbvio lapso, o autor refere que a dita revolta procurava «instaurar» a I República. «Instaurar» não; quando muito «restaurar» porque ela já tinha sido instaurada em 1910. Mas onde me pareceu que o absurdo se tinha instalado de armas e bagagens foi nas referências ao Zé do Telhado aqui referido como João do Telhado. Não, não pode ser. José Teixeira da Silva não se chamava João. Nascido em Penafiel no ano de 1816, José Teixeira da Silva veio a morrer em Angola (Sanza) para onde foi degredado pelos muitos assaltos da sua quadrilha formada em 1849. Antes tinha recebido a Torre e Espada por ter salvo a vida do Visconde de Sá da Bandeira. Pelo meio aparece ao lado de Camilo Castelo Branco nas cadeias do Porto e no livro «Memórias do Cárcere». Mas sempre como José Teixeira da Silva, nunca foi João. Por mais voltas que dê um qualquer boletim bibliográfico editado em Dezembro de 2007.