Imaginemos que era uma mulher, presidente de uma federação de futebol masculino (improvável, mas possível hoje em dia, quando já vemos mulheres a arbitrarem jogos masculinos), quem “se descontrolava” no auge de uma enorme alegria e dava um beijo na boca, fugaz embora como aquele foi, a um jogador vitorioso apesar do penálti falhado.
“Ai, não dava. Impossível uma mulher fazer isso”, ouço já uns a dizerem. Convicções fortes à parte, digo-vos, como mulher, que podia acontecer. Quem se queixaria? O próprio não, de certeza. Ofendido não ficaria. Revoltado muito menos. O mais provável seria pôr-se com ideias sobre a senhora (dependendo da idade da dita e da heterossexualidade do dito). Protestaria talvez, talvez, a namorada/mulher do jogador, essa também com as conjecturas e a indignação muito facilitadas por aquele gesto. Mas será que haveria um clamor generalizado, como o que se ouve agora pela voz da mais insignificante das equipas até à do presidente do governo espanhol? Não haveria. A menos que este episódio com o senhor Rubiales já tivesse acontecido, claro, porque a coerência é uma coisa bonita e obrigatória, se se quer ser feminista e justa.
Dir-me-ão: “Mas a dominância tem sido historicamente a do macho”. É por isso que toda a reivindicação e acusação da mulher é justa e atendível. É verdade a primeira parte e não sempre, inapelavelmente, a segunda. Aquele beijo foi assédio sexual? Claramente não. Foi abuso? Não necessariamente.
Dito isto, que fique claro: não considero aceitável que, no desporto ou em qualquer outra situação de convivência hierárquica, um superior ou uma superiora, ou um colega, já agora, se aproveitem da sua posição para abusarem, mesmo que levemente ou sob falsos pretextos, do corpo de pessoas com quem convivem profissionalmente, quer em troca de promoção (ou de paz no dia a dia para a pessoa abusada, vá) quer em troca de coisa nenhuma, como parece ser este o caso e muitos outros, só porque sim. Não é aceitável. Também não sou radical ou tontinha ao ponto de achar que uma mulher não tem meios para se defender de “avanços” não desejados (sem violência). Tem. Tal como um homem. Mas também não sou radical ou hipócrita ao ponto de achar que nenhum “avanço” é desejado. Muitos são e seria pena se não acontecessem. Repito que não estou a falar de actos violentos, como é óbvio. Mas terá sido aquele um acto violento, o do Rubiales? Irreflectido, sim. Violento, não.
O que se passou então? A própria atleta, que desvalorizou o sucedido num primeiro momento, optou por se juntar ao clamor geral, dada a reacção desafiadora de Rubiales e dadas as implicações que uma desvalorização daquele gesto tem no contexto de uma série de casos conhecidos de abusos no desporto. A tolerância passou a ser zero. Compreende-se. O próprio Rubiales devia ter compreendido e, no mínimo, pedir desculpa. Coisa que não fez, o que agravou a situação.
Enfim, se nada na vida e na conduta daquele senhor configura falta de respeito pelas mulheres atletas, não me parece que o homem mereça ser crucificado por aquele excesso, como pretendem muitas feministas. Mas o próprio podia tê-lo evitado se reconhecesse esse excesso, preferindo optar pela fuga em frente (uma vez mais, irreflectida), inventando consentimentos onde não os houve nem podia ter havido por falta de tempo ou condições. Fez mal. Possivelmente teria que abandonar o cargo fosse qual fosse a sua reacção às críticas. E isto, sim, é passível de discussão. Porque uma mulher ser sempre vítima (incluindo em situações calmas) é também um excesso e demasiado desprestigiante para a própria.