Todos os artigos de jcf

Casa velha na aldeia

Casa velha sem ninguém

Onde se avistam telhados

Disseram adeus à mãe

Os cinco filhos criados.

Ficou a casa sozinha

Rasga a renda das cortinas

Só resiste uma vizinha

Com as cabras pequeninas.

Fica a gateira sem gato

Na loja dos animais

O silêncio é o contrato

Nos campos de nunca mais.

Mesmo à beira da ribeira

Onde a água faz o brejo

Já ninguém tem a canseira

Dum trabalho a desejo.

Dispersos por continentes

Os filhos são emigrantes

Falam línguas diferentes

Dos países mais distantes.

Casa sem água nem luz

Onde o silêncio impera

Tem no telhado um capuz

Esperando a Primavera.

Casa velha em abandono

Na Rua de Cima do Povo

Paredes de eterno sono

À espera do tempo novo.

Vinte Linhas 708

A vida e a morte no alto da Senhora dos Remédios

Os pórticos de passos perdidos e portas fechadas na A23 afastaram as pessoas para o IC8. Ninguém se dispõe a pagar mais que 4,40 euros por mais alguns quilómetros a seguir a Abrantes. Se de Lisboa a Torres Novas se pagam 5,65 euros não faz sentido pagar 4,40 euros entre Torres Novas e Abrantes – só que não há alternativa. Malditos pórticos.

Eu evitava o IC8 porque não queria encontrar os rapazes que (diziam eles) toureavam os carros. Dois erros numa expressão. Primeiro não toureavam coisa nenhuma; depois não são carros mas sim automóveis. Um carro é um objecto com rodas que precisa de ser puxado por animais ou empurrado por um motor. No caso do jovem que toureava carros aconteceu tragédia: ele morreu e os rapazes que o filmavam para o colocar na Net fugiram quando perceberam a dimensão do desastre. Esses miúdos não estão preparados para lidar com sentimentos fortes: a Internet é uma realidade virtual. Queriam filmar o rapaz a tourear carros mas fugiram quando ele foi atropelado. Lembrei-me de um poema de João Miguel Fernandes Jorge do livro «O regresso dos remadores» (edição da Presença). Há dentro de um dos poemas uma mulher que costura lágrimas e baínhas numa «Singer». Num passeio a São Martinho do Porto essa viúva perde a filha e o neto para quem trabalhava na máquina de costura.

Essas mortes (as distantes num barco em São Martinho e a próxima numa curva do IC8) ocuparam uma parte do fim-de-semana mas não a totalidade. Na casa das três meninas (Margarida, Paula, Ana Maria) encontrei o oposto. A vida na sua teimosa afirmação diária, na sua alegria convocada para uma aldeia à beira do IC8. As três meninas não desistem e trazem no seu olhar o esplendor da esperança. A negação da tristeza, da amargura e da morte.

Veneza o terceiro poema – As sombras de Veneza (foto Humberto Lopes)

Há sempre tempo para uma sombra em Veneza.

Hoje, como nos tempos em que havia touradas e as tabernas improvisadas se colocavam à sombra das igrejas com os barris de vinho cobertos por grandes panos molhados. O vinho sela os encontros, multiplica a alegria do quotidiano suspenso por um intervalo magnético de festa. Surgem assim novas pontes, não de pedra mas de humana ligação, entre vozes e mãos, olhos e palavras. Tudo se liga no diálogo molhado pelo vinho e pela sombra.

Levo de Veneza uma ideia forte de encontros e de procura imediata de uma sombra. Onde a alegria acaba por se instalar no devagar nos minutos prolongados. Há sempre tempo para uma sombra em Veneza.

Veneza o segundo poema – Os relógios invisíveis (foto Humberto Lopes)

Há em Veneza um outro conceito do tempo. Sem relógios.

É o sol que abre as portas das pastelarias, pequenos hotéis, mercados ao ar livre, livrarias, restaurantes e, também, dos transportes públicos do grande canal. É a sombra que fecha os taipais das bancas dos feirantes, as portas das lojas, os toldos das esplanadas e afugenta os turistas para os autocarros que os esperam do outro lado do canal, perto da estação do comboio.

Mo intervalo há tempo para tudo. Ou quase: a cidade respira, move-se, dialoga, contempla e dorme como se de um ser humano se tratasse. O tempo deu-lhe a sábia medida do que é justo, urgente e necessário. Por isso nas ruas estreitas há um sereno usufruto do tempo. Ninguém atropela, empurra ou agride aquele com quem se cruza.

Nos relógios invisíveis de Veneza é sempre tempo de viver.

Vinte Linhas 707

Billy McNeill e a memória dos leões de Lisboa de 1967

Os colegas de Billy no Celtic puseram-lhe a alcunha de «César» e não por acaso. Nascido em Blantyre a 2-3-1940, ele era um «senhor» a jogar e a fazer jogar a sua equipa. No dia 25 de Maio de 1967 no estádio do Jamor, se os nomes ganhassem jogos este Inter-Celtic já estava ganho antes de começar. No corredor de acesso ao campo brilhavam Fachetti, Mazzola e Domenghini como estrelas da Europa no sol de Lisboa. Tímidos e discretos, mais habituados ao frio de Glasgow, os homens do Celtic sofreram um penalty logo nos primeiros minutos. Mazzola converteu. As coisas pareciam arrumadas para os italianos mas uma jogada de Craig e Murdoch criou a oportunidade para Gemmel converter no empate. Coube a Chalmers o golo da vitória mas os meus olhos e a minha memória ficaram no endiabrado Johnstone, o extremo de cabelo cor de cenoura. Havia uma segunda curiosidade na equipa do Celtic: todos os seus jogadores nasceram num raio de 15 milhas à volta de Glasgow. Por sua vez a equipa do Inter, famosa pelo seu catenaccio, vinha de duas vitórias na Taça dos Campeões em 1964 e 1965; os italianos eram os favoritos.

Recordemos as equipas e treinadores nesse dia 25-5-1967. O Celtic, treinado por Jock Stein, alinhou com Simpson, Craig, Gemmel, Murdoch e McNeill; Clarck e Wallace; Johnstone, Chalmers, Auld e Lennox. O Inter, treinado por Helenio Herrera, jogou com Sarti, Burgnich, Fachetti, Bedin e Guarneri; Picchi e Mazzola; Bicicli, Cappellini, Corso e Domenghini.

No canto superior esquerdo da foto julgo ver o Nuno Ferrari, sempre em cima do acontecimento. Outro dia, em Edimburgo, na loja do Celtic, vi fotografais dos leões de Lisboa e expliquei que estive lá. Tinha 16 anos. Ainda os eléctricos levavam bandeiras de «Estádio».

Veneza o Primeiro poema – Entre pedra e água (foto Humberto Lopes)

As ruas de Veneza são iguais às veias e artérias que percorrem os caminhos líquidos da alegria. O mesmo é dizer: não há ruas em Veneza, apenas travessas, becos e praças no intervalo das pedras e da água.

As ruas de Veneza não existem como as outras ruas de outras cidades: com fumo e ruído e a ânsia metálica de chegar numa pressa para nada. A água dá aos grandes passeios o ritmo de uma vida que nasceu num líquido anterior, num sono descansado, na paz de não haver conflitos porque a placenta os dilui e aniquila. A pedra dá às viagens a força dum passado sempre a resistir à erosão da chuva, do vento e da morte.

Entre pedra e água, as ruas de Veneza não existem mas são verdade.

Um livro por semana 267

«O sangue por um fio» de Sérgio Godinho

Para Camilo Castelo Branco o poeta é quem desmente as leis fisiológicas, vivendo do princípio vital de uma única entranha – o coração. E é o coração que dá o título ao livro no seu último poema: «Até que uma tarde, manhã, noite / por impulso e por vingança / (aquela que se serve fria) / arrefece e deixa de bater / sem dar tempo aos outros de o chorarem.» Mas o ponto de partida do livro é a viagem como metáfora da vida: «Não aparecem sempre, os destroços dos actos / em cada memória flutuam / e em cada sonho se transformam / desejam o que antes desejámos / não se conformam / desaparecem levados».

O poeta sabe que não há presente na Poesia; apenas esperança (futuro) e saudade (passado). Por isso adverte sobre as ilusões: «as ilusões parecem-se com a moeda / como a moeda não têm medida certa / não se definem senão / pelo uso que delas se faz». Num Mundo violento («arma de fogo é metáfora»), o poeta pergunta: «Para que serve uma arma de fogo? / Para chegar mais depressa aos inimigos». O poeta vê, no oposto da Violência a Liberdade: «São os acordos falhados / que fazem da liberdade uma procura / uma cratera uma conquista». No oposto da Nação, vê o Indivíduo: «Quem atirou fora, na pressa, / a minha primeira radiografia, como é que eu sei?». No oposto da Vida, vê a Morte: «A morte encontra o seu projecto por entre arenas / precedida por rastos de entradas e saídas / a coisa do costume / areia no sangue». No oposto da Morte, vê o Amor: «Quando muito mais tarde / tendo aprendido as leis da perspectiva / vi os teus olhos numa clara recta / um claro dardo / curvado só por esse riso / que sabemos vir das vidas anteriores / – e o sonho, tido de véspera / me confirmou ser conforme o original – / não digo que passei a acreditar em tudo / mas acreditei em tudo nesse momento».

(Editora: Assírio & Alvim, Desenhos: Tiago Manuel)

Vinte Linhas 706

O Bairro Alto em festa quer dizer que não morre

Nasceu em Dezembro de 1513 e está a festejar 498 anos. A primeira casa, ainda como Vila Nova de Andrade, está testemunhada num tabelião de Lisboa. Na manhã do passado domingo o Conservatório Nacional teve dois cantores a darem a boas vindas a um grupo de moradores do Bairro Alto que ainda resistem. A orquestra do Conservatório, sob a direcção de Alexandre Branco, executou peças de Mozart, Beethoven e Mendelssohn. O concerto para piano e orquestra de Mozart teve como solista Bárbara Costa. Foi uma abertura solene e cosmopolita para o aniversário de um bairro onde sempre se cantou o Fado, se fizeram e ainda fazem livros e jornais, onde João Garcia de «Mau tempo no canal» de Vitorino Nemésio passou as suas angústias à espera da carta de Margarida e onde Molero viveu as suas aventuras nas ruas perto do «Farta Brutos» e nas páginas de Dinis Machado. Hoje o Bairro Alto tem os seus filhos cada vez mais longe. Uns em Londres, outros em Dublin, outros a caminho da Austrália. Um ex-morador desabafa: «Se não fosse ter um bebé pequeno, também eu emigrava!»

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Vinte Linhas 705

Não há areia nas praias de Brighton

No Teatro da Politécnica os quatro actores da peça «A farsa da rua W» de Enda Walsh (Américo Silva, João Meireles, António Simão e Laurinda Chiungue) falam muitas vezes de um lugar (Elephant & Castle) que faz parte de uma zona muito pobre do Sul de Londres. Nesse chamado South Bank, o sítio Elephant & Castle faz parte de um triângulo entre Lambeth, Walworth e Kennington. Foi aqui (East Street) que nasceu Charles Chaplin em Abril de 1889. Foi aqui que seu pai morreu em 1901 com apenas 37 anos de idade. Mais tarde, lembrando as mobílias em segunda mão da casa de Brixton Road que habitou em 1908, Charlot dirá que havia ali uma «mistura de um bordel francês com uma tabacaria».

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Vinte Linhas 704

Ricardo Serrado – um historiador para quem o Sporting não existe

Este livro («Futebol – a magia para além do jogo») começa com um problema técnico: alguém se esqueceu de dar os respectivos números às páginas entre a 5 e a 16. Estão em branco. Outro problema é que para o autor os sete maiores jogadores do Mundo são: Zidane, Michael Laudrup, Le Tissier, Maradona, Pelé, Messi e Roberto Baggio. Na página 45 refere Chalana como o mais genial e na contracapa diz que Eusébio é o maior. Como nasceu em 1980 nunca ouviu falar de Peyroteo nem de Matateu nem, muito menos, de Travassos, o primeiro português a jogar na selecção da Europa. Mas anuncia o seu livro como «uma reflexão» embora depois explique que foi «escrito com o coração» e o proclame «sério, rigoroso e honesto». O autor não deve ter lido «Glória e vida de três gigantes» de 1995 (edição A Bola) pois assim saberia que, ao contrário do que diz no seu livro nas páginas 119 e 140, houve muito mais do que Benfica e Selecção Nacional na década de 60 em Portugal. Houve o Sporting Clube de Portugal que conquistou contra o MTK da Hungria a Taça das Taças em 1964, numa epopeia de 12 jogos (contra Atalanta, Apoel e Lyon) na qual impôs uma derrota ao Manchester United por 5-0. A prova, iniciada em 1960-1961, foi disputada até 1997-1998 e teve como vencedores equipas como o Barcelona, o Arsenal, o Chelsea, o Ajax, o Bayern de Munique, a Juventus e o Manchester United – entre outras. Há deslizes de escrita como na página 45 («É preciso duas coisas») ou na página 85 («A língua oficial é o inglês e o francês») mas o maior deslize será quando refere o ano da fundação do SLB: «quem fez do futebol um dos efes da sociedade portuguesa da altura foi o povo (concomitantemente desde 1908) que via naquela modalidade um enorme entretenimento e uma busca de excitação sistemática.» Ora bolas!

Vinte Linhas 703

Lembrar Afonso Praça e recordar Raul Brandão

Afonso Praça (1939-2001) concluiu o curso de Românicas em 1968 com uma tese de licenciatura intitulada «Raul Brandão, Jornalista» na qual o orientador foi Jacinto do Prado Coelho. Profundo conhecedor da obra de Camilo Castelo Branco e de Raul Brandão, entre outros autores portugueses, espanhóis e franceses, Afonso Praça dedicou muito do seu tempo ao estudo dos livros e da vida do autor de «Os pescadores». Por isso pode vir a jeito lembrar uma bela página de Raul Brandão (1867-1930) datada da Nazaré em 1923:

«Tive sempre a ideia de que quem manda em todo o país é a mulher. Na lavoura, às vezes o bruto bate-lhe mas é ela que o guia e lhe dá os mais atilados conselhos. E é ela em toda a parte que nos salva, parindo filhos sobre filhos para a emigração, para a desgraça e para a dor. Creio que só assim, parindo e gemendo, tecendo e lavrando mas principalmente parindo, é que se equilibra a nossa balança comercial, o que nos tem permitido viver como nação independente. Valem mais que o homem, sacrificam-se mais que o homem – mas aqui o seu trabalho é tão palpável que toda a gente afirma que a mulher da Nazaré é a alma desta terra. Os pescadores obedecem-lhe – a bem ou a mal, dizem… Não é, como em toda a parte, insinuando-se, que a fêmea, mais fina que o homem porque cria, o governa nesta terra. Aqui impõe-se, aqui existe a verdadeira e autêntica casa do Varunca – e sólida, apesar de edificada sobre areia… Da praia para cima só elas põem e dispõem. Eles, saindo do barco, metem-se na taberna e bebem. Sóbrios na comida, gastam quase tudo que ganham a beber: a percentagem e a rodada ou o giro. Só entregam em casa, intacto, o salário. Se as mulheres lhe batem, como corre, na verdade acho bem feito. – Eles merecem-no».

Descoberto e revelado por J.C.Francisco

Vinte Linhas 702

O Bairro Alto em festa de 11 a 18 de Dezembro

Quando um casal (Bartolomeu de Andrade e Francisca Cordovil) aforou em 15-12-1513 vários talhões para construir umas casas na Vila Nova de Andrade (o actual Bairro Alto), estava a ser escrito o primeiro documento válido para a História deste Bairro. Não há nunca História sem documentos escritos; o resto é lenda.

O programa completo está disponível para consulta em «diadobairroalto@blogspot.com» ou em «facebook.com/diadobairroalto» e arranca no dia 11-12-2011 com um concerto pela Orquestra do Conservatório Nacional. O mesmo Conservatório que integra a organização do evento – sem uma estrutura organizativa, sem orçamento e a funcionar num somatório de boas vontades. Juntam-se ideias de Associações (Comerciantes, Moradores e 25 de Abril), cafés (Luso e Frágil), o Clube Rio de Janeiro, estruturas camarárias (CML, Hemeroteca e Biblioteca Camões) e outras associações locais. Haverá Fado, Folclore, Exposições de Artes Plásticas e de Fotografia, visitas guiadas e muito convívio. Para nós festejar é preciso!

O Bairro Alto já foi um mundo trepidante de gente em acção, havia jornais e jornalistas, empresas e trabalhadores. Quando em 1978 comecei no Diário Popular havia/tinha havido também o Diário de Lisboa, o República, o Século, A Capital, o Record, a Gazeta dos Desportos e A Bola – que é o único hoje a manter-se no Bairro. Os escritórios de muitas empresas foram-se embora depois de a EMEL ter fechado o Bairro e condicionado o estacionamento de forma brutal – só a pensar na multa e no reboque; o mesmo é dizer, no lucro. Não bastava às pessoas que aqui vivem há décadas o empobrecimento do tecido empresarial e económico da zona, ainda somos castigados com uma guerra que transforma o Bairro em zona de terra queimada.

Vinte Linhas 701

José Travassos e a previsão da derrota do Brasil em 1950

Corria o ano de 1949 quando José Travassos, então com 23 anos de idade, foi entrevistado por um jornalista brasileiro. O Jornal Sporting na sua edição de 10-9-1949 transcreve (com a devida vénia) o conteúdo de uma matéria do jornal O Esporte de São Paulo – Brasil. Escreve o redactor brasileiro: «Entrevistei Cândido de Oliveira, Ribeiro dos Reis, falei também com muitos torcedores, jornalistas e jogadores e a resposta de todos à pergunta sobre o melhor jogador português da actualidade foi: – Travassos.

Ontem fui ai treino do Sporting lá no campo do Limiar. Entre os valores do esquadrão verde e branco, estava Travassos. A primeira pergunta era:

– Qual será o campeão de 1950? – Inglaterra, respondeu Travassos.

– Sua opinião do futebol brasileiro? – Não sei, disse ele. Somente vi jogar aqui o Vasco e parece-me pouco».

E o redactor conclui: «E assim acabou-se a história. O maior jogador de Portugal não acredita no sucesso dos Brasileiros. Para ele a Inglaterra será a vencedora do próximo Campeonato Mundial de Futebol».

Claro que Travassos não adivinhou o nome da selecção vencedora desse Mundial (Uruguai) mas pelo menos acertou na derrota do Brasil. É uma curiosidade. Tal como fica aos leitores a ficha desta equipa que venceu o campeonato nacional de 1957/1958. Da esquerda para a direita em pé: Enrique Fernandez, Valente, Pacheco, David Júlio, Osvaldinho, Carlos Gomes e Galaz. Da esquerda para a direita de joelhos: Hugo, Vasques, Vadinho, Travassos e Martins.

Vinte Linhas 700

Artur Quaresma e Sócrates – entre o pó e a posteridade

Horas depois de ter sabido da morte (civil) de Artur Quaresma, soube do falecimento de Sócrates, jogador brasileiro que não foi feliz em 1986 tal como já não tinha sido em 1982. Nunca vi jogar o Quaresma no Belenenses e na selecção nacional mas li muito e ouvi ao vivo muitas histórias de amigos «azuis»: Raúl Santos, Décio de Freitas, Faro Cal, Carlos Esteves, Cristóvão Canto e Castro. Campeão nacional em 1946, Quaresma foi um jogador marcante nos «azuis» do Restelo e na «equipa de todos nós» quando havia ainda poucos jogos entre selecções. Foi colega de homens como Peyroteo e Espírito Santo. Em 1938 (30 de Janeiro) nas Salésias, num Portugal-Espanha, houve três jogadores (Quaresma, José Simões e Mariano Amaro) que se recusaram a fazer a saudação fascista. A revista Stadium retocou a foto mas a PIDE foi às Salésias e deteve Simões e Amaro, escapando Quaresma por uma unha negra.

Há um pormenor a ligar estes dois nomes (Quaresma e Sócrates) e as suas duas memórias: os dois coexistem nas páginas do meu livro «Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos» (edição Padrões Culturais). Quaresma está no poema da página 35 que celebra a vitória dos «azuis» por 2-1 em Elvas com golos de Quaresma e Rafael. N página 45 o poema «Mundial 82» recorda os melhores jogadores do Torneio: «Schachner, Maradona, Trevor Francis, Boniek, Platini, Rummenigge, Zico, Jordan, Sócrates, Falcão, Tigana e Éder além de Paolo Rossi – o homem dos golos decisivos, inesperados e impossíveis».

Quando Carlos Serafim fracturou uma perna muita gente em Belém esperava que o malogrado jogador fosse um novo Artur Quaresma. O Futebol oscila sempre entre o pó do vento e a posteridade vagarosa. Quando o trunfo é morte nós nada podemos fazer; só assistir.

Um livro por semana 266

«Cacilhas – Imagens d ´antigamente» de Luís Bayó Veiga

A chamada História «local» tem ganho nos últimos tempos uma enorme importância no conjunto das obras publicadas em Portugal sob o tema da História. O Liceu, a Misericórdia, a Corporação de Bombeiros, o Clube Desportivo (por exemplo) integram na sua memória uma perspectiva não apenas local mas também geral. Este livro, realizado a partir de 44 imagens (fotos e postais) de uma colecção particular, vem convidar o leitor a uma viagem aos tempos idos de Cacilhas e sua região. Cacilhas não é apenas lugar de nascimento de gente ilustre (Elias Garcia, Bordalo Pinheiro ou Romeu Correia) mas também foi um pólo industrial com fábricas de cortiça, tanoaria, conservas e estaleiros navais. Aqui se comercializava água potável para os navios além de azeite, vinho, vinagre, carvão e óleo de fígado de bacalhau. Fiquemos com a nota sobre a imagem da capa:

«Nesta imagem tem-se uma perspectiva do «Largo de Cacilhas», tal como ele se apresentava na década de 30 do século passado. Em primeiro plano observa-se uma das primeiras camionetas da «Empreza de Camionetes Piedense Lda» a qual foi fundada em 2 de Junho de 1928. A «Piedense», para além das carreiras para Almada e Cova da Piedade, também as fazia a partir de Cacilhas para outros destinos mais distantes como a Costa de Caparica e a Trafaria. A «Piedense» juntamente coma a «Beira Rio» (1945) foram, ao longo de 3 décadas até 1975, as mais populares empresas de camionagem que a partir de Cacilhas transportavam os seus passageiros com destino a diversas localidades espalhadas por todo o concelho de Almada. Repare-se ainda no lado direito da imagem, um pormenor de um grupo de pessoas à porta do estabelecimento de mercearias «Tenda Marítima». Em segundo plano ao centro, depara-se o aglomerado de prédios que faziam então parte do sítio da Lapa. Ao fundo o morro de Cacilhas ainda com o seu peculiar torreão. À direita na crista do morro é visível, entre diversas árvores, um moinho já em ruína e sem a sua cobertura.»

(Edição: Junta de Freguesia de Cacihas, Apoio: SCALA, Prefácio: Luís Milheiro, Grafismo: Modesto Viegas)

Vinte Linhas 699

Sobre duas varinas numa foto de Joshua Benoliel – 1945

A luz do vosso olhar vai empurrar a frente da força da neblina. Por enquanto aguardam na lota o pregão do valor do peixe. Só mais tarde, já com a canastra à cabeça, vão cantar o pregão do preço da sardinha, do carapau ou da pescada. Vivinha da Costa – se for o caso.

Por enquanto o vosso olhar está suspenso. No ferro separador o braço direito da varina da camisa escura apoia o queixo. A varina da camisa branca usa um cordão de ouro igual. Tal como é igual o chapéu onde colocam ambas uma rodilha nova para o armar. Quando saem da lota com a canastra de peixe coberta com um oleado verde, sobem às colinas da cidade e voltam as costas à Ribeira e ao Cais do Sodré. Há quem veja nas canastras a projecção das fragatas, dos varinos e das faluas tal como eu vejo nas rendas das mulheres das praias do Atlântico uma cópia das redes dos pescadores que arriscam a vida na faina da noite.

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Vinte Linhas 698

Eusébio e a inesperada vocação de rasurar a História

As declarações de Eusébio numa entrevista a um semanário sobre a existência de «racismo» no Sporting de Lourenço Marques, além de ridículas são mentirosas e absurdas. Depois de ter sido rejeitado pelo clube do seu pai (o Desportivo), Eusébio foi aceite e acarinhado no Sporting de Lourenço Marques. Deixou de ser um miúdo da rua onde jogava com o seu grupo de amigos e passou a ser um jogador integrado numa grande equipa o que lhe permitiu vencer diversos campeonatos. Eu trabalhei na redacção do Jornal Sporting debaixo de uma fotografia da nossa filial de Lourenço Marques na qual Eusébio está sorridente ao lado do seu grande amigo Milicas. A acusação de racismo aos «leões» de Lourenço Marques cai pela base: racismo havia em toda a sociedade moçambicana mas do Sporting Eusébio nunca se poderia queixar. Era uma questão mais acentuada em Lourenço Marques. Alguns anos antes do «caso» Eusébio, a Académica de Coimbra foi a Moçambique festejar o título nacional de basquetebol. No Hotel para onde tinham enviado um telegrama, os «capas negras» foram surpreendidos por um gerente aos gritos: «O preto não pode entrar!». O rapaz era finalista de Medicina, natural de São Tomé e fazia parte da comitiva dos campeões de Coimbra mas o homem do Hotel dizia: «O problema são os nossos hóspedes da África do Sul. Eles não querem pretos no mesmo hotel.» O rapaz foi para casa de um advogado com saudades de Coimbra. Abreviando: Eusébio veio para o Benfica porque era menor e foi a mãe a assinar a troco de dinheiro grande. Ao contrário de Mário Wilson e de «Juca» que vieram em 1949 e de Hilário e Peridis que vieram mais tarde, Eusébio não quis vir para Lisboa à experiência. O primeiro fato completo, primeiros sapatos, primeira camisa, foi tudo comprado com o dinheiro ganho no Sporting de Lourenço Marques. Como não tinha 21 anos não era considerado maior. Por isso apareceu a mãe a assinar.

Importante era o Eusébio explicar que razão o levou a jogar no Beira-Mar e no União de Tomar quando regressou dos Estado Unidos da América. Foi o racismo que o rejeitou no Benfica? Foi outra coisa qualquer? Pode esclarecer? No Benfica existe a tradição de rasurar a História. Alteram a data da fundação do clube de 1908 para 1904, tentam fingir que não houve campeonato de Portugal entre 1934/5 e 1937/8, escrevem a História a seu belo prazer. Eusébio, tantos anos depois da sua chegada a Lisboa, aparece a seguir as pisadas dos «historiadores» encarnados mas há muita gente que sabe da história. Que pensarão os companheiros de equipa em Lourenço Marque disto tudo? E o Milicas? Que pensará o Milicas?

Vinte Linhas 696

Memória do eterno titular da selecção nacional «B» (a José Vilela)

As mãos tinham que ter a força das tenazes embora no retrato ficassem atrás das costas. Como a baliza, como o Estádio Nacional minutos antes de um jogo da equipa «B» de Portugal. Entre 1946 e 1954 havia cinco nomes para Sporting e Os Belenenses: Capela, Sério, Azevedo, Dores e Tormenta. Em Belém fui suplente até à chegada de José Pereira. O guarda-redes é o topógrafo do relvado, o seu olhar é uma lente de ângulo aberto aos movimentos mais inesperados. São cinco avançados contra três defesas, sempre à espera que os médios possam recuar. Havia então muitos pelados, a bola ganhava efeitos de capricho, a chuva era mais fria, o vento forte era um temporal desatado sobre o campo e sobre a solidão da pequena área.

No ano de 1949 havia nuvens de morte à volta dos estádios. Os jogadores do Torino morreram na montanha de Superga. Havia luto nas camisolas e nos corações de toda a gente. As irmãs Meireles (Milita, Cidália e Rosário) cantavam na rádio e no Sporting enquanto Hermínia Silva dava o tiro da partida no ciclismo. Era preciso construir a alegria todas as manhãs. Nas reservas havia nomes insólitos: Cascalheira, Palmense, Fósforos, Marvilense. Na primeira divisão havia clubes hoje ausentes: Lusitano de Évora, Sporting da Covilhã, Estoril Praia, Elvas, Atlético.

Meu filho Victor vai ser, anos depois, o confidente das lágrimas e dos sonhos de uma geração: Luís Boa Morte, Simão Sabrosa, Caneira, Miguel Garcia, Hugo Viana, Ricardo Quaresma, Cristiano Ronaldo, Nani. Ao intervalo, um cubo de marmelada ajuda a repôr os hidratos de carbono e o sorriso. Quando tudo corria mal na cabina, ele dava a solução: ganhar o próximo jogo. No olhar de meu filho o meu tempo interior continua: ficar nos bastidores a esperar as condições para uma subida ao palco dum jogo onde o efémero faz o seu esplendor. Sempre.

Mil nove cinquenta e sete

No ano dessa fotografia

De autor não identificado

Ouvira eu uma profecia

Logo fiquei preocupado.

Eu iria ser um fragateiro

Se não fizesse a Admissão

Para Lisboa, para o Barreiro

Conforme carga e direcção.

Nesse tempo a mercadoria

Na fragata, no varino, na falua

Chegava a Lisboa no outro dia

A cortiça ficava às vezes na rua.

Ao lado era o cais dos Vapores

O mestre trazia a água no barril

O fato de cotim dos trabalhadores

Dava-me o meu futuro de perfil.

No ano em que a ponte teve início

Comecei a trabalhar todos os dias

Não foi fragateiro o meu ofício

Não acertaram essas profecias.

Vinte Linhas 697

No dia do Fado uma Missa em Fado na Basílica dos Mártires

Quem (como eu) sempre ouviu dizer que a Missa tem duas grandes divisões (Catecúmenos e Fiéis) ou quatro (leituras, ofertório, consagração e comunhão) pode começar a pensar noutra divisão: a missa em Fado. Desde o passado domingo dia 27-11-2011 que o Fado, aceite pela UNESCO, entrou de pleno direito no espaço da Liturgia. O Grupo da Missa em Fado é originário da igreja do Santíssimo Sacramento na calçada do mesmo nome mas, por razões logísticas, a missa em Fado aconteceu na Basílca dos Mártires na Rua Garrett. Fazem parte do Grupo: José Campos e Sousa (voz e viola), Filipa Galvão Telles (voz), Bernardo Couto (guitarra portuguesa) e Ricardo Mota (violoncelo). Por uma feliz coincidência esta missa cantada aconteceu no primeiro domingo do Advento e o celebrante usou paramentos roxos. Tal como na Quaresma ou nas Vigílias, esta cor do crepúsculo exprime penitência, purificação e humildade.

Desta vez não havia aquela frase do Diácono como nos primeiros tempos do Cristianismo: «Quem não é baptizado saia, quem é indigno ou culpado sai também!». Tal frase surgiu nesses tempos iniciais depois do Credo. Ainda bem que tal já não acontece, ninguém aponta a dedo os impuros. Curiosamente é de alguns desses (como eu) que se soltam as lágrimas mais salgadas porque a comoção de estar dentro de uma missa em Fado é enorme, é imensa, é ilimitada. Eu fui um dos muitos que se deixou envolver na grande emoção das palavras e da música – em todas mas em especial no «Aleluia», no «Credo», no «Pai Nosso», na «Avé Maria» e no «Senhor eu não sou digno». Uma curiosidade última. A palavra Missa vem de Missio em latim que significa despedida mas neste caso foi uma chegada. A Missa em Fado chegou em muito boa hora à Liturgia da Missa. O Grupo está de parabéns pela música e pela emoção.