Dois dos mais notórios trânsfugas do Aspirina B mancomunaram-se com mais uns quantos elementos de má nota. O resultado só vai durar 60 dias, dizem eles. Assim sendo, o Caderno de Verão é apenas o feio (que fizeram vocês ao pobre template?) casulo de onde vai em breve emergir uma linda e original borboleta. Eu já lá fui deixar alguns comentários insultuosos; por que esperam vocês?
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Falta de auto-estima? Aonde?
O “Record” de ontem resumia a nossa vitória contra o Irão com qualquer coisa no estilo de “Até já damos baile!” Isto depois de um jogo medíocre contra um adversário que patentemente não tinha ideia do que fazer quando se via com a bola nos pés. Falando de uma vitória que se solidificou com um penalty ingénuo cometido segundos depois de uma jogada em que só a inépcia terminal de um avançado iraniano evitou o empate.
Hoje, na TSF, ouvi o moderador da famosa “Bancada Central” entrevistar um comerciante turco, adepto do Sporting (!), colocando as suas questões num Inglês macarrónico. A fechar a peça, o jornalista não resistiu a comentar com condescendência o “Inglês deficiente” do entrevistado.
Fico sem saber se estes episódios autistas são um sintoma de doença colectiva ou apenas tontice banal. Não esqueçam que é a esta malta da imprensa que cabe dar voz ao sentir da alma lusa, amplificar as nossas idiossincrasias e dar antena aos estados de espírito que nos vão dominando. O que explica muita coisa.
“Vista” com banda sonora

Robert Fripp, o enorme compositor e guitarrista por detrás dos King Crimson e de milhentas outras coisas louváveis, gravou há pouco alguns temas que em breve estarão na sua secretária: o ambiente sonoro do novo sistema operativo da Microsoft, o “Windows Vista”. Assim, é certo que aquele terá pelo menos uma característica aproveitável que não foi copiada dos Macintosh. Aqui, podem encontrar um fascinante documentário sobre a excursão de Fripp ao “campus” de Redmond.
Já nem a Holanda é o que era?

Uma visita de 15 dias, há um ror de anos, e algumas conversas com o nosso Fernando Venâncio deixaram-me com uma excelente impressão da Holanda e dos holandeses. Malta afável, cosmopolita, comunicativa e hospitaleira. Assim uma espécie de portugueses, mas em bom (e sem fado, para melhorar as coisas).
Ontem, ao almoçar com um amigo que também é por lá professor, chegou a desilusão. Descobri que também os holandeses têm a sua “bible belt”; áreas pejadas de gente que se agarra ao Santo Livro em busca de instruções detalhadas para cada aspecto da sua vida quotidiana. Uma região sobretudo rural, onde até poderemos topar, segundo este meu amigo, sinais no  meio dos campos relembrando aos passantes que por ali é proibido praguejar.
Proibido; isso mesmo. Vilas existem na Holanda que aprovaram regulamentos a interditar o uso de objurgações com linguagem menos apropriada e, claro está, a invocação a destempo do nome do Senhor. Mas um criminoso apanhado em flagrante com a boca suja só será multado se se provar que não estava a exercer o seu direito de expressão, garantido pela constituição. Presumo que ninguém tenha sido multado até hoje…
Quem quiser importar este salutar tendência, fica aqui com o contacto do que parece (não entendo mais que duas ou três palavras em todo o site) ser uma associação dedicada à limpeza da oralidade dos cidadãos holandeses.
O “Choque Tecnológico”, versão de 1878

Em Setembro de 1878, estreava-se a iluminação pública em Portugal, decorando a festa de anos do Príncipe D. Carlos. Meses depois, Sua Majestade oferecia ao Município de Lisboa os 6 inovadores candeeiros que importara de Paris. O Chiado iluminava assim as suas noites escuras quase ao mesmo tempo que a imperial Londres, com as novíssimas “velas Jablochkoff”; lâmpadas de arco voltaico com eléctrodos de carbono, alimentadas a corrente alterna.
Então como hoje, os senhores responsáveis esperavam que a invocação do santo nome de uma ou duas Entidades Modernas pudesse transformar de fio a pavio este triste pedaço de pântano disfarçado de país. Agora, são as miríficas “Tecnologias da Informação”; na altura, foi a Iluminação Pública.
A chegada do sumptuoso e bem-amado Progresso foi aplaudida da seguinte forma, por pena que não consigo identificar, em versos publicados no DN de 2 de Novembro do mesmo ano:
“Agora, sim, povo amado, / Que já tens um regabofe, / Vindo à noite no Chiado/ Ver a luz do Jablochkoff; / Luz, muita luz, luz imensa, / É da ventura o princípio, / Em ti, por fim alguém pensa, / Já tem luz o município./ Vai esconder-se o morcego,/ Vai sumir-se a trefa coruja, / Dos canos espero cedo/ Ver fugir a rata suja; / A luz descerá aos antros / Para as trevas dissipar,/ Dos pobres secando os prantos, / Nas covas sem luz, sem ar. / Lysia vai ter novas molas,/ Vão rasgar-se os boulevards, / Abrir-se asylos, escolas,/ Passeios, largos, bazares;/ Vai haver docas no Tejo, / Museus de estudo e recreio, / De gosos vasto cortejo, / Praças com repuxo ao meio; / Vai começar nova era,/ Vai surgir um tempo novo, / E há no bem que nele impera / Casas baratas p’ra o povo. / Até um homem escuro/ Disse com o ar mais franco : / – Esta luz traz bom futuro / Porque faz do preto branco. / E as românticas donzelas / Dizem amantes invalidas, / Com a luz parecem mais belas / Porque se mostram mais pálidas. / Gosa pois, ò povo amado, / Gosa o grátis regabofe, / vinde pasmar no Chiado/ Ante a luz do Jablochkoff.”
Como se vê, pouco mudámos em 128 anos. Continuamos nas mãos de autoridades convictas de que basta oferecer uns pós mágicos de Progresso ao indígena para que maravilhas mil aconteçam, sem a maçada de tratar primeiro do essencial. E já então atingíamos a excelência… no escárnio corrosivo.
Algo se salva desta história: a “vela” de Paul Jablochkoff veio a sofrer um melhoramento crucial quando a sua substituição se tornou automática, dispensando a intervenção contínua de serventes armados de escadotes. Foi um professor do liceu de Santarém, João Rodrigues Ribeiro, o inventor do decisivo “acendedor automático”.
De qualquer forma, a experiência do Chiado foi de curta vida: assustada pelos custos de manutenção do sistema, a Câmara Municipal logo tratou de o desligar.
Este desenlace parece-vos familiar?
Acima de nós, só Deus
É daquelas palavras na moda, que acabam por irritar pela profusão desnecessária, eu sei. Mas quem ouviu as declarações do bastonário da Ordem dos Médicos à TSF, a propósito da coima atribuída pela Autoridade da Concorrência, ficou a conhecer o verdadeiro significado de “pesporrência”.
A pesada penalização surgiu a propósito de uma prática aparentemente normal aos olhos do Dr. Pedro Nunes: tabelar preços dos actos médicos. O valente bastonário, julgando talvez que vive na Itália corporativista de Mussolini, “não reconhece qualquer competência para sequer interpelar a Ordem” à AdC, e não lhe “passa pela cabeça” que aquela “tenha o atrevimento” de a multar. Mesmo prometendo recorrer aos tribunais, a Ordem sabe já que “não pagará a multa jamais”. Pior ainda: o homem declara-se “estupefacto pela AdC se ter lembrado de emitir um comunicado público, quando a Ordem tinha requerido expressamente para que não houvesse comunicado público.” Isto apesar de a AdC a tanto ser obrigada por lei… mas essas minudências não se aplicam aos assuntos da classe médica, pois não? Claro que o Sr. Dr. não acabou a sua prédica corporativista sem agitar o álibi do costume: eles andam a “pôr interesses de doentes em causa”.
Em resumo: a Ordem sabe-se totalmente imune a qualquer espécie de fiscalização da sua actividade. Voga centenas de metros acima do atoleiro onde labutam as criaturas comuns e nunca se rebaixará a pagar uma multa. Tem uma legitimidade que a coloca num pedestal fora do alcance dos reles órgãos fiscalizadores que emanam dos poderes eleitos.
A ministra e a comissão das bexigas
A ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, pode não ter grande experiência política. Mas aprende depressa. Hoje, deu provas de já dominar duas complexas artes do ramo: dar uma no cravo e outra na ferradura e colocar-se de cócoras ante os Grandes Vultos.
José Saramago resolveu apoucar a actividade de uma comissão de honra dedicada ao estímulo à leitura, de que até faz parte. «Não vale a pena o voluntarismo, é inútil, ler sempre foi e sempre será coisa de uma minoria. Não vamos exigir a todo o mundo a paixão pela leitura». A ministra, confrontada com estas pícaras declarações de Saramago, “estranhou”. Mas não tratou de lhe sugerir de imediato a saída de um organismo a que ele admite só pertencer por uma «fatalidade, como as bexigas». Quando lhe perguntaram se o escritor deveria sair da tal comissão, a senhora ministra soltou um grito de alma: «Meu Deus! Nada disso!»
Deve ter imaginado, num momento de susto, a sua carreira governamental num jazigo ao lado da de Sousa Lara. Temos política.
Silencioso em Auschwitz
Bento XVI esteve em Auschwitz. Talvez tocado pelo local, o papa lembrou-se de ecoar a pergunta que vem ao cérebro de qualquer ateu sempre que confrontado com mais uma malfeitoria do espírito humano ou colossal desgraça dos elementos: se Deus existe mesmo, porque não mexe uma palha para evitar estas catástrofes?
“Porquê Senhor Permanecestes calado? Como Pudestes tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque permaneceu em silêncio? Como permitiu Ele esta matança extrema, este triunfo do mal?” Não são lamentos de cristão interesseiro e pouco iluminado em assuntos da Fé; são palavras do chefe da Igreja Católica.
Estranha queixa esta, vinda de quem vem. Toda a teologia cristã pode ser vista como um labiríntico emaranhado de biombos destinados a ocultar a inacção e o silêncio de Deus. Quando Ele age, os Seus caminhos são insondáveis; quando fica quedo, trata-se por certo de um Mistério, coisa não destinada ao nosso ínfimo entendimento. Há sempre forma de dar ao vazio a aparência de grande ponderação e suprema bondade.
E até para ter permitido as matanças insanas dos nazis Nosso Senhor deve ter um boa desculpa na manga. Claro que ele tinha a agenda muito preenchida; é que ser uma divindade suprema, ainda por cima tripartida, não é pêra doce. Por exemplo, nos dias em que Hitler cimentava a sua liderança do partido nacional-socialista, no início de 1926, Deus estava ocupadíssimo com missão de extrema importância: aparecer à irmã Lúcia e reclamar dos maus tratos que andamos a dar à senhora Sua Mãe. Afinal, dar a conhecer à Humanidade que “são cinco as espécies de ofensas e blasfémias proferidas contra o Imaculado Coração de Maria” só pode ser demanda prioritária, a exigir acção pronta e excursão prolongada do Menino Jesus, himself, a Pontevedra. Como poderia Deus, ao mesmo tempo, lembrar-se de cortar a carreira a Adolf Hitler, antes que o nazismo desse no que deu? Omnipresente mas não tanto, caramba…
Uma fábula com música

Por mais desmentidos, desmontagens e desmascaramentos que apareçam, o Priorado do Sião continua a dar que falar, escrever e facturar. Por mim, já desisti de tentar compreender os fanáticos destas imposturices divertidas mas pegajosas.
Li há uns dias a lista de Grandes-Mestres do dito Priorado. De Leonardo a Cocteau, passando por Newton, é um verdadeiro dream team de supostos conspiradores. Incluindo, para lá de muitas figuras de cuja capacidade organizativa não duvido, o meu compositor predilecto: Claude Debussy. Sim; o Debussy incapaz de gerir a sua vida financeira, os seus prazos, as suas mulheres. Este homem tão desprovido de sentido prático teria sido, de 1885 a 1918, um dos vultos ocultos que governaram o mundo sem que de tal déssemos conta. Pois, pois.
A diáspora acetilsalicílica
Antecipando até a liberalização das farmácias, alguns dos nossos bem-amados colegas do Aspirina andam por aí a fazer pela vida, e bem.
O João Pedro da Costa dá alma, verbo e graça ao “blogue canino” do Brand New, conhecido programa de novidades musicais. O Daniel Oliveira voltou à cena do crime com o seu Arrastão: provocação, sarcasmo e análise inteligente nas doses do costume.
Claro que toda a gente já sabe disto tudo há um ror de tempo. O que ainda não sabem é o que os nossos ex-sócios António Figueira e Nuno Ramos de Almeida andam a preparar, com alguns cúmplices de ocasião… Na altura certa (e não com meses de atraso como agora) darei novidades.
Meteorologia

Que bela noite. Perfeita para o fim do mundo. Uma noite quente, de céu claro, com milhões em quintais recém-regados, apontando telescópios para astros que nunca despontarão. Uma noite abafada, húmida, em que tudo nos parece justo, correcto, no sítio mais próprio. O calor que denuncia a iminência das grandes catástrofes geológicas. A calmaria que sugere o fim de todas as tribulações. Que bela noite.
A aldeia global entrou em órbita

Há dois meses, um astrónomo amador, entusiasmado com o Google Earth, decidiu usá-lo para procurar crateras de meteoritos ainda desconhecidas. Ou seja: munido de uma ferramenta ao alcance de todos, Emilio González teve a ousadia de se imaginar capaz de encontrar estruturas geológicas ignotas. Fenómenos com dezenas de quilómetros que tivessem escapado aos argutos olhares de incontáveis especialistas, debruçados sobre fotografias colhidas por enxames de satélites. E, em meia hora, fez precisamente isso. Descobriu, algures na fronteira entre o Chade e a Líbia, uma cratera em que ainda ninguém tinha reparado.
Que dizer quando a informação que qualquer um de nós tem na secretária pode conter o mapa para descobertas científicas? A infosfera tornou-se num símile tão perfeito do nosso mundo que já serve de território de pesquisa, laboratório que até dispensa de todo o contacto directo com a realidade.
Disse González, com uma candura reveladora: “é um pouco como um jogo de vídeo. Só que é real”. Mas ainda existirá mesmo essa linha de fronteira, assim tão clara, ou será que ela se está a desfocar e a afastar de nós a cada dia que passa?
Pontos de vista
Dois caminhos para provar a mesma coisa
Sob o signo da incubadora (2)
Carrilho será uma osga insuportável. Talvez. Será um mitómano que coloca tudo e todos em causa, menos a sua própria presciência. Terá perdido a campanha contra um adversário fraquíssimo sobretudo por incapacidade absoluta de gerir e protagonizar uma campanha eleitoral agreste. Por certo. E ter-se-á lembrado agora de congeminar o seu regresso com este pequeno “Manual do Ressabiado” movido por dois impulsos irresistíveis: atirar as culpas para cima do resto do mundo e apontar à sua nada modesta pessoa os holofotes da ribalta mediática, nem que seja por mais um minutito apenas. Claro como água.
Mas há que convir que nem todas as suas queixas são infundadas. Ele não é um doppelganger do Santana Lopes dos murros na incubadora, das gaffes diárias, da necidade crónica e militante. Houve de facto alguma má vontade em torno da sua campanha. Se suscitada por embirração com a personalidade difícil de Carrilho ou por maquinações sombrias, como ele defende, é agora indiferente. Mas dão-lhe alguma razão, por exemplo, os que o vaiaram por usar o seu filho no vídeo de lançamento da campanha e depois aplaudiram quando Cavaco Silva exibiu os netinhos.
Angiogénese

Naquele dia, deixou-se fascinar por veias. Veias e artérias. Pensou e admirou o seu crescimento, a forma ordeira como se espalhavam em silêncio por dentro do seu corpo. Pequenos rios de sangue a crescer de acordo com as leis escondidas de uma orografia espantosa; alimentando continentes, levando cheias sem aviso a terras sequiosas. A cada segundo, mais um milímetro de tubagem era construído com precisão e sem fadiga. Quem convencera o seu próprio organismo a alimentar assim o pequeno invasor? E onde estaria o projecto de uma tal empreitada? Como poderia, logo desde o início, aquela mão-cheia de células ambiciosas comandar um prodígio assim?
E não era apenas a logística com que as linhas de abastecimento acompanhavam a invasão; todo seu corpo se rendia a um sem fim de exigências famintas, cedendo nutrientes, calor, protecção. Um instinto maternal à escala celular, colaborando com a inflação desenfreada dos tecidos?
Ela conformara-se desde o início. Sabia bem que esse era o caminho da Natureza. Aquela vida dentro de si só existia porque podia contar com uma hospedeira prestimosa. E apenas conhecia um ditame: crescer. Crescer sempre, mesmo que à custa de tudo o que a rodeava.
Cancro Pequeno

Quando pessoas de bom senso e sensibilidade se vêem do mesmo lado da barricada que malta da extrema-direita, algo de estranho aconteceu. Neste caso, aconteceu mais uma entronização das touradas no renovado altar do grunhismo nacional. Mesmo a tempo de prolongar esse êxtase do lusitanismo obscurantista que são as cerimónias da Cova da Iria e fazendo já a ponte para mais uma gloriosa jornada de patriotismo descartável a propósito do futebol.
Quando alguém aplaude como espectáculo uma encenação em torno da agonia de um animal, está a desistir de muitas das coisas que nos tornam humanos. Será folclórico, será do agrado dos turistas, será cultura… mas é por certo um momento de júbilo para o que há de mais negro nas nossas almas.
Ainda o grande derby Couves x Alforrecas

Em princípio, a estrambótica providência cautelar contra o livro do JP George terá destino daqui a pouco mais de uma hora. Não se aceitam apostas; espera-se sim que o bom senso prevaleça. Até lá, vai prevalecendo a promoção ao lançamento da Objecto Cardíaco e ao autor.
Não sei porquê, mas não consigo deixar de pensar que o título desta pequena maldade, “Couves e Alforrecas”, caía que nem uma luva no recente ajuste-de-contas-em-forma-de-livro de MM Carrilho.
A Guerra em close-up

Como fazer uma série de televisão sobre uma operação militar que envolveu centenas de milhares de soldados, sem dispor de grandes meios? Como mergulhar no inferno, sem gruas, hordas de extras, meses de pós-produção? Simples mas não fácil. Filma-se de perto a verdadeira matéria-prima das grandes guerras clássicas: a carne.
Eis a verdadeira vedeta da série “Dunkirk”, da BBC, de que ontem voltou a ser exibido o último episódio. A carne dos soldados. Carne suja, suada, rasgada, amputada, gangrenada. Ou apenas  exaurida por esforços para lá do humano. A câmara faz mais do que procurar intimidade com as suas presas. Ela aproxima-se até que a pele mais não permite. Fixa-se nos poros, num nariz sujo, num ombro destroçado, numa esfregona que limpa um convés, ensopada de sangue. A câmara recusa a imobilidade, adopta os ritmos daqueles derviches insones; gira e rodopia, bem dentro do desespero dos soldados e civis envolvidos na maior evacuação militar da história. Induz a vertigem no espectador, faz do seu movimento mais uma barreira entre o horror da guerra e a nossa tranquilidade no sofá. De quando em vez, lá surgem as imagens documentais, algumas a cores, para nos lembrar que tudo aquilo aconteceu mesmo, ainda no tempo dos nossos pais. Estranhamente, os grandes planos de multidões em fuga a custo organizada, as enormes barcaças em chamas, todas as intrusões do mundo real no tecido microscópico da narrativa de “Dunkirk” acabam por funcionar como um contraponto perturbador na sua coerência: como se a verdadeira guerra apenas conseguisse igualar, nunca ultrapassar, em “realidade”, a presença palpável da carne dos actores.
E há o fantasma da sempre presente caução (bem anunciada no início de cada episódio) realista: estas histórias foram todas recolhidas de entrevistas e diários de sobreviventes. Cada nome, cada corpo, pertenceu mesmo a um ser humano. A intimidade que a câmara celebra a cada segundo não é apenas um artifício da ficção; é uma busca da realidade perdida no pó dos arquivos. Um último resgate dos heróis de Dunquerque.
E há os olhos também. Os olhos que são dos poucos sinais a distinguir cadáveres de combatentes ainda vivos. Os olhos do oficial inglês que abate um seu camarada desertor. Do ferido que só aguarda o tiro de misericórdia e recebe dos alemães um cigarro e água. Do moribundo que pestaneja sob a chuva, gota a gota, do sangue do seu companheiro de beliche. De Churchill ao ordenar que os feridos sejam deixados para trás.
“Dunkirk” é excessivo, manipulador, exibicionista, quase demagógico. Por tudo isso, é uma grande obra de televisão.
O Quinto Império vai ter olhos azuis
O que vai ser de Portugal? A economia esboroa-se. O optimismo foi fazer companhia aos dodós no paraíso das criaturas alérgicas à realidade. Os analistas mais lúcidos só concordam num ponto: ninguém sabe porque é que esta nação porfia na acédia e derrapa na ineficiência desde há séculos. As “elites” empresariais rabiam à caça de culpados, nunca se lembrando de procurar no cotão dos seus umbigos forrados a Maludas. Os pessimistas passam dias a gemer o luto antecipado pelo finis patriae. E a realidade teima em dar-lhes razão: a cada ano, lá somos ultrapassados por mais um recém-chegado à europeia fraternidade. Até já se estimou a data em que daremos connosco a segurar com cotos decrépitos a lanterna vermelha desse pelotão imparável: 2050.
Se Portugal fosse um animal, a extinção seria destino certo e merecido. Mais uma experiência falhada, mais um projecto simpático mas inviável. Um dia, Portugal acordaria vazio. Assim sem mais menos. E, como a geopolítica e a demografia têm horror ao vácuo, logo outras populações viriam reclamar tanta riqueza imobiliária devoluta. Construindo cidades vibrantes onde hoje estiolam praças desertas; empresas inovadoras em vez dos estaminés que agora se limitam a dar “empregos”, não trabalho; multidões alegres em lugar das sorumbáticas turbas portuguesas.
A única coisa que nos poderia salvar? Uma mutação inopinada que nos ofertasse novas qualidades, que nos trasnmutasse em criaturas plenas de energia, inteligência e instinto. Impossível, desconfia o bom-senso. Infelizmente, acrescenta o mesmo.
Mas… e se esta mutação já estiver mesmo em curso?
 
    
  