Naquele dia, deixou-se fascinar por veias. Veias e artérias. Pensou e admirou o seu crescimento, a forma ordeira como se espalhavam em silêncio por dentro do seu corpo. Pequenos rios de sangue a crescer de acordo com as leis escondidas de uma orografia espantosa; alimentando continentes, levando cheias sem aviso a terras sequiosas. A cada segundo, mais um milímetro de tubagem era construído com precisão e sem fadiga. Quem convencera o seu próprio organismo a alimentar assim o pequeno invasor? E onde estaria o projecto de uma tal empreitada? Como poderia, logo desde o início, aquela mão-cheia de células ambiciosas comandar um prodígio assim?
E não era apenas a logística com que as linhas de abastecimento acompanhavam a invasão; todo seu corpo se rendia a um sem fim de exigências famintas, cedendo nutrientes, calor, protecção. Um instinto maternal à escala celular, colaborando com a inflação desenfreada dos tecidos?
Ela conformara-se desde o início. Sabia bem que esse era o caminho da Natureza. Aquela vida dentro de si só existia porque podia contar com uma hospedeira prestimosa. E apenas conhecia um ditame: crescer. Crescer sempre, mesmo que à custa de tudo o que a rodeava.
Com a mão direita, mediu os centímetros a partir do seu esterno. Vinte e dois. Para baixo. Claro que não sentiu nada, nenhum inchaço prematuro a assinalar o local exacto. Nem ela o esperava; era cedo demais. E muito menos esperaria qualquer movimento ou tremor subterrâneo. No entanto, sabia que ele estava lá. A crescer. Mesmo nos seus sonhos, ele vivia sempre ali, uma entidade outra, presença opaca e alienígena que povoava os seus pesadelos com uma sombra que já não lhe pertencia. Era ela; mas era também coisa diversa.
Decidiu que deixaria de pensar nele como um invasor. Um passageiro. Era isso: um passageiro que a acompanhava para todo o lado, no conforto de um habitáculo climatizado, protegido pela benevolência de inúmeros airbags. Mas quando lhe dera boleia? E com que destino?
Sempre for a cuidadosa, afastando-se dos caminhos de risco denunciados nos talk-shows com clínicos de penteados telegénicos. Mas acontecera. Nem dera pelo início; uma má-disposição persistente, vómitos, cãimbras que lhe arranhavam o ventre por dentro. No hospital, evitaram o incómodo de simular um sorriso de encorajamento. Numa sala ainda a reverberar a claridade fantasmagórica do dispositivo da ecografia, o médico explicou-lhe que já era tarde para o retirar. Ela deixara passar muito tempo. Descuidada. Agora, já crescera demais; já lançara âncoras fortes ao mundo da vida. Nada nem ninguém conseguiria convencê-lo a desfazer-se numa pacífica migração de regresso aos fluidos elementares, à corrente sanguínea, ao limbo das moléculas inertes. Too late, baby.
Os trânsitos das luzes no tecto do seu quarto reproduziam o avanço vagaroso dos automóveis na rua, quatro andares abaixo. Uma dor aguda a pontuar o lamento assustado de uma ambulância. E ainda as veias. As artérias. Mais um milímetro. E outro.
Nas últimas semanas, ela começara também a pensar na dor. Quando chegasse o momento decisivo, seria insuportável? Acabaria ela a suplicar aos médicos a piedade da anestesia? Ou conseguiria suportar tudo sem lágrimas, queixumes, lamúrias, raivas, gritos; mantendo um impecável controlo dos seus esfíncteres? Porque não se lembrara antes de cultivar o estoicismo para agora poder contar com mais essa virtude? E como manter a dignidade nos meses que se aproximavam, quando o anúncio de enjoos e a sugestão de incomódo, ainda tão distantes da verdadeira dor, já bastavam para a deixar a tremer?
Pergunta Importante: mesmo se lhe garantissem que tal operação seria possível, limpa e indolor, desejaria ela realmente ver-se expurgada, vazia, intacta?
De uma forma perversa, a condição inesperada em que naufragara viera dar um centro à sua vida. Agora, ela sabia onde estava, adaptara-se, com naturalidade de um gato a aninhar-se numa casa estranha, a um novo e absoluto referencial: as suas abcissas e as suas ordenadas encontravam o zero fundador naquele ponto um palmo abaixo do seu esterno. A sua vida terminara. Das rotinas antigas e estimadas, dos afectos nutridos com tanto zelo, nada sobreviveria: o invasor tudo exigia. Mas também dessa morte nasceria algo.
Ainda antes de sair do hospital, já sentia que toda a geometria de pontos de vista que lançara sobre o universo estava a mudar. E adivinhara nos olhos do médico algo muito mais importante: a percepção que o universo dela tinha também iria mudar.
Por enquanto, só a sua família sabia (e ela vivia só, para dar um toque lacrimejante a uma historieta tão banal). Mas nesses escassos ensaios de revelação a notícia espantosa lera-a ela nas das reacções de pais, tios e irmãos: agora, era por fim uma Pessoa Interessante, palco para narrativas capazes de prender a imaginação dos espectadores mais volúveis e entediados. Havia por fim um Destino a germinar nela, uma mira para os holofotes da atenção alheia.
A cada segundo, o seu ventre dilatava-se, ganhava massa, embrião de estrela a agregar pó cósmico enquanto aguarda o imenso instante da ignição. Os dias de rocha inerte, à deriva longe de tudo, dissolvidos numa apoteose de luz e gravidade: em breve, perderia a conta aos astros menores orbitando em torno do seu ponderoso esplendor. Sim: quando os sinais reveladores subissem à tona da sua pele, os olhos dos outros ganhariam aquele brilho inconfundível, o lampejo da piedade. E sacudiriam os ombros com um tremor involuntário a soletrar alívio por não lhes ter acontecido a eles. Dar-lhe iam lugares no autocarro, prioridade em todas as filas, compaixão sem fim.
Sim, ela esperava ainda ter tempo para aprender a viver com o seu cancro.
Belíssimo texto.
Lindo e terrível… mas um bom conto. Agradecimentos ao Luis.
O efeito estético da imagem e da sua cor no enquadramento do aspirinab está perfeito.
Que humor tão negro, meu Deus! Mas na verdade não se pode exigir mais ou melhor à arte prosaica de enganar brilhantemente para surpreender com a derradeira e fria palavra, como num script do Hitchcock. Sim, a morte e a vida têm destas coisas – se não as chamarmos pelos nomes, não sabemos se estamos a falar duma ou da outra.
Como se esta dificuldade não bastasse para enguiçar-nos os maquinismos mentais de apreciação do drama corriqueiro da vida do cidadão desconhecido, ainda temos a indústria do cancro a mistificar-nos com a teoria bafienta da multiplicação desvairada e anárquica das células sem intervenção de animálculos microscópicos – a enganar-nos a nós, maiorias pobres ouvintes da Rádio Nacional Macaca, e muitos dos eruditos e talentosos romancistas da tuberculose social e da pastilha farmacêutica de efeito múltiplo – que é como que a impor-nos um diabo complementar ou de reserva para reforçar ou substituir os medos que já temos doutros organizações políticas carcinóides que andam por aí a corroer-nos por dentro e por fora.
comecei a ler e de imediato pensei tratar-se do crescimento anómalo das células do sistema capitalista.
afinal é só a descrição de um mero cancro de um individuo descartável por esse mesmo sistema