Arquivo da Categoria: Luis Rainha

Meia dúzia de palavras vs. uma dúzia de passas

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Engolir à pressa as uvas secas. Empurrá-las com champagne caro e frio demais. Rezar, entrementes e entredentes, os pedidos/decisões/declarações que irão fazer do próximo ano um punhado de dias mais suportável que o anterior. Passam 60 horas do tão gabado Ano Novo. Parece que o ritual não funcionou. Até que abraçamos o filho que não vemos desde antes do Natal e ele nos diz: “já sentia falta de estar contigo.”
Agora sim, acredito que 2006 talvez vá a algum lado de jeito.

Mais livre… para ecoar o partido

Andamos todos a perder um grande espectáculo de sit down comedy; grátis, disponível online e sempre hilariante. Falo do único, do incomparável, do paroxístico “Mais Livre”. “Um blogue de apoio à candidatura de Jerónimo de Sousa às eleições presidenciais. Não é um blogue do PCP, nem as opiniões aqui expressas representam a candidatura ou outra opinião que não a do autor do texto.”
Não é do PCP, as opiniões não representam outras opiniões (?), e nem a candidatura representa, mas não se inibe de declarar em triunfo que é o único e exclusivo membro do clube dos “blogues dos candidatos”! Isto porque “aqueles que se afirmam jovens, modernos, digitais ou fenómenos, esqueceram-se da blogosfera…”
Vão lá que não se arrependem e os rapazes andam carentes de animação. Afinal, onde mais é que encontram um título como “Porque Jerónimo é como o algodão”?

Só para quem gosta de lutas na lama

Quando há sangue no ar, surge depressa a bicharada necrófaga. Desta vez, anda por aí a rabiar uma “senhora” que pretende equiparar um seu plágio descarado ao faux pas da Joana Amaral Dias. Claro que nada existe de similar entre os dois casos. A JAD teve um deslize, um momento menos feliz, c’est tout. A “Joana” do Semiramis foi apanhada a copiar parágrafos e parágrafos para depois se gabar da sua erudição. A melhor defesa que conseguiu então apresentar passava por negar a cópia de conteúdos de um site, admitindo no entanto o plágio de um ou mais livros. Como se tal fosse desculpa para o esbulho sem tino nem vergonha do trabalho alheio.
Agora, apanha boleia de um caso díspar para vomitar alguns insultos e apodar de “matilha de trogloditas” todos os que lhe toparam, e bem, a careca. Tentei responder no local próprio com um comentário. Mas começo a suspeitar que ele nunca irá ver a luz do dia. Assim, e por muito que me desagrade mexer nesta imundície, deixo a seguir o texto que deveria estar apenso ao delírio mitómano da plagiadora.

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O glauco regresso de uma palavra na moda

Há coisa de um ano, a palavra “glauco” merecia honras de litros e litros de tinta de jornal. Tudo e mais alguma coisa podia ser “glauco”. Na secção de crítica cinematográfica do Expresso, então, era um fartote: bastava aparecer por aí um filme assim um pouco soturno ou desprovido de números musicais para ser logo promovido à temida mas fina categoria de objecto “glauco”.
Com a repetição teimosa desta ocorrência lexical, fui começando a entender que este adjectivo era usado como sinónimo de “sombrio”, “opressor” ou coisa que o valha. O que me continua a parecer estranho, tendo em vista que ele significa, de acordo com este dicionário, tão somente “de cor verde-mar; esverdeado”.
Há pouco, verifiquei que não era o único a dar pelo estranho fenómeno. Mas andava já convencido que a moda passara. Até ler hoje uma crónica de Eduardo Prado Coelho, no Público, em que ele revive a sua mortificante experiência num hospital português. E, certo como o destino, lá vem o animalejo: “entram num espaço desconhecido, inóspito e glauco”. Por infeliz coincidência, li esta passagem no hospital Dona Estefânia. Ainda olhei à minha volta para ver se o verde fora adoptado como nova cor oficial dos estabelecimentos tutelados pelo Ministério da Saúde. Mas não. Continuam pouco glaucos, os nossos hospitais.

A outra vítima dos kamikazes: a verdade

“O que faz um kamikaze na Palestina?” Esta pergunta pungente saiu da pena de Helena Matos. É mais uma das “Coisas que não entendi”. O gatilho para a prosa inflamada foi um título do Libération: “Un kamikaze tue un Israélien et deux autres Palestiniens”. Uma “pequena mas veemente introdução à questão palestiniana”, em suma.
Então vamos lá à explicação: “o que fazem os kamikazes no meio da Palestina? Nada. Simplesmente nada, porque os kamikazes pertenciam ao exército japonês durante a II Guerra Mundial. Mas indo buscar esta designação exótica acaba-se a evitar palavras incómodas como ‘terrorista’ ou ‘bombista’.”
Não ocorre à jornalista que nenhum dos “sinónimos” que ela propõe descreveria um bombista-suicida. Nem que o termo kamikaze talvez já não seja assim tão “exótico” para os leitores franceses. Mas essas coisas agora não interessam nada. Interessa mesmo é proclamar que, “habituada a viver da diabolização de Israel, sofrendo frequentemente dum forte anti-semitismo”, a imprensa europeia anda à nora com o que se passa por ali hoje em dia. Por isso, onde antes se liam exaltações com a Intifada, “não existe agora espaço para dar conta dos raptos de jornalistas e estrangeiros (…) na mesma Faixa de Gaza e na Cisjordânia.”
Chama-se a isto aldrabice pura. No próprio dia em que saiu o título que indignou Helena Matos, o mesmo Libé dava notícia que “Le processus électoral n’est pas seul pris en otage par les groupes armés, trois Britanniques ont encore été enlevés hier dans le sud de Gaza.” Deve dar muito trabalho ler um jornal por inteiro, suponho.
Hoje mesmo, surge por lá um balanço sombrio da situação na Palestina: “Les faits restent que c’est la première fois qu’une institution officielle des Nations unies a été prise pour cible par les miliciens de Gaza. Une évolution très préoccupante dans un contexte de chaos grandissant dans les territoires autonomes” ; “La sécurité palestinienne a fait preuve de son inefficacité abyssale à la faveur des cas d’enlèvement qui se sont multipliés depuis l’été.” Eis a preocupante cegueira de um jornal europeu enlouquecido pelo tal anti-semitismo.
Mas voltemos aos kamikazes: consultando um dicionário online de Francês, até descobrimos o termo por lá referenciado. Mas mais curioso é o exemplo escolhido para ilustrar o seu emprego: “Les Israéliens attaquent en kamikazes et sèment la mort, le désordre, la défaite, après avoir parcouru 400 kilomètres de désert et d’empoignade, sans sommeil depuis soixante-douze heures (J.-F. HELD ds Le Nouvel Observateur, 3 janv. 1968, p. 30, col. 2)”. Ironias do destino: há quase 40 anos, o tal termo “exótico” foi usado para descrever… o exército israelita. Suponho que a cronista também encontraria uma explicação adequada para tal; sobretudo uma que envolvesse anti-semitismo a rodos.

Uma coisa que Helena Matos não entende

No passado sábado, Helena Matos encerrou o ano no Público com a enumeração de algumas dúvidas prementes que a andam a angustiar.
Uma delas até é de cariz cultural, imagine-se. Com aquele “ar” matreiro de quem infiltra um fatal grão de areia na sinistra engrenagem do adversário, ela deixa-nos a questão venenosa: “resta-me uma dúvida incontornável: em que se distingue o gosto de Berardo do de Champalimaud?” Não se trata de uma mórbida fascinação com o estilo de vida dos ricos; tem sim tudo a ver com a recente decisão governamental de forçar o CCB a albergar a colecção do empresário madeirense. Continua o rosário de perplexidades: “o que já não entendo é que em relação à colecção Champalimaud se tenha usado como argumento o facto de esse acervo resultar do gosto pessoal do empresário para se justificar o desinteresse do Estado português por esta colecção. De que resultará a colecção Berardo?”
Eu explico-lhe em escassas palavrinhas: resulta não de um gosto pessoal mas sim de uma declarada intenção de criar um núcleo museológico capaz de nos dar uma perspectiva alargada de todo o modernismo do sec. XX, com particular ênfase no pós-guerra. Aliás, nem vejo como é que um gosto pessoal conseguiria ser de tal forma vasto que abarcasse as mais de 4.000 peças desta colecção. E, já agora, quem realmente enformou a génese da colecção foi Francisco Capelo; este, contando com os milhões de Berardo e com a depressão do mercado internacional de Arte, é que dirigiu as aquisições.
A colecção de António Champalimaud é mais simples em âmbito: resume-se às pinturas, mobiliário e porcelanas da sua antiga habitação. Ao que parece, ele gostava de se rodear de belos objectos. E tinha uma marcada preferência pelo rococó francês e por paisagens italianas. Mas, de acordo com Anísio Franco, do MNAA, ele sabia que tal nunca bastaria para dar origem a um museu e “tinha a consciência de que era simplesmente o recheio de uma casa rica onde as coisas eram boas e poderiam facilmente ser liquidadas”.
Como comparar o espólio de um milionário com bom-gosto a uma das maiores colecções privadas da Europa? Muito provavelmente, algumas das peças de Champalimaud seriam excelentes acrescentos para o Museu Gulbenkian, por exemplo. Mas com a colecção Berardo vamos ter em Lisboa um grande museu de Arte moderna; um pólo de educação para o nativo e de atracção para o turista. Algo que sempre nos faltou.
Claro que Helena Matos até devia saber disto. Mas dá sempre jeito ter estas “dúvidas incontornáveis” à mão para obscurecer as questões.

Adivinhem quem não gostou de ser apanhada

A Joana Amaral Dias deu pela adivinha por aqui postada. E, surpresa das surpresas, diz que não plagiou nada. Foi coisa bem mais simples: “fiz a minha súmula. O único pedaço que está ipsis verbis, questão que LR enfatiza de várias formas, é o bilhete que Cocteau escreveu o que, naturalmente, não pretendi alterar.”
Ora temos então que o texto a armar ao pingarelho cultural da Dr.ª Joana é apenas uma “súmula”. Pena foi que não nos tivesse de tal dado conta logo na altura, como é normal entre gente intelectualmente honesta.
E mais: quando escreveu “doze dias depois, Cocteau anuncia a colaboração de Picasso num ballet de Diaghilev, com música de Erik Satie. Assim foram para Roma, uns meses depois, e estrearam em Paris em Maio de 1917”, estará ela a fazer uma “súmula” ou uma tradução bem próxima do original que até admitiu ter lido? É que as diferenças são ínfimas: “only twelve days later, Cocteau announced that Picasso had agreed to collaborate on a new ballet for Diaghilev, Parade, with music by Erik Satie. It took them to Rome in February 1917, premiered in Paris that May”.
Mais: o tal “bilhete” surgiu directamente sacado à tradução brasileira incluindo expressões como “bati chapas” e até a introdução de Fernando Costa: “sobre o encontro, o autor das fotos escreveu no dia seguinte num bilhete para uma amiga”. E isto, será “súmula” ou copy/paste?
Ao espernear, JAD ainda me acusa de “cortar, através das reticências, partes do meu texto de forma a que batam mais ou menos certo com os excertos supostamente plagiados”. Imaginem a perfídia: cortei um texto mas descuidei-me e deixei bem clara a indicação correspondente: as reticências!
Depois, começa a parte cómica desta resposta da JAD: fazendo do ataque uma espécie de defesa, vem dizer que “seria a mesma coisa que eu dizer, que LR fez plágio” no post sobre a obra Move 36. Mas claro que é a mesmíssima coisa! Com a pequena, mesmo ínfima, diferença de eu ter incluído links para o site que ela aponta e de nenhuma das passagens em questão ser tradução ou cópia de coisa alguma.
Tendo gasto horas a peneirar os meus textos, JAM exulta com outra prova. “Esquecendo” mais uma vez que estava lá o obrigatório (digo eu) link para a fonte que citei: o proto-evangelho de Tiago. Claro que o facto de eu ter descrito a acusação feita a José e de esse “pormenor” não figurar (como a origem da história, aliás) no texto que a JAD aponta também parece coisa de somenos.

Em resumo, Joana: não, não é a “mesma coisa”. O que a senhora fez, em vez de comentar um livro que supostamente leu, foi traduzir e copiar textos alheios sem qualquer menção ou link aos verdadeiros autores e só depois de apanhada explicar que, afinal, a amostra de erudição era uma mera “súmula”.
É que não existem de todo as “outras intenções” que a sua imaginação (olha, afinal tem-na) me atribui. Eu apenas detesto ver gente a usar trabalho alheio para se fazer passar por algo que patentemente não é.

A hora da Melancolia

Li isto há minutos num romance espantoso: “nunca possuí qualquer relógio, de parede ou despertador e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontra tudo à chegada como dantes, ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente”.
Recordo-me agora que nos meus dias de juventude também abominava os relógios. Melhor, ignorava-os, com uma distância que anulava até a possibilidade de um desprezo casual. Tinha na mesinha de cabeceira uma gaveta cheia de destroços sem pilha, sem corda, sem caminho de regresso à rotina do tiquetaque. Lá ia perdendo comboios, aviões até, com a alegria pateta de quem julga que todos os tributos são devidos aos deuses da juventude. Não resistia ao “poder do tempo”; fazia de conta que ele não me dizia respeito, que navegava bem acima das suas correntes escuras. A tal “actualidade” era apenas um prólogo entediante para as maravilhas que o futuro por certo me reservava. Não me afligia a passagem do tempo, apenas deplorava a sua morosidade.
Às tantas, sem transição clara que me tenha ficado na memória, dei por mim a gostar de relógios. A gostar, não; a adorá-los. Lia intermináveis artigos de relojoaria, gastava dias face a complicados esquemas de balanços, turbilhões, escapes. Depois, comecei a comprar anacrónicas e caríssimas máquinas suíças de funcionamento temperamental e nomes estranhos. Claro que só sentia cada um destes relógios como pertencendo ao meu pulso depois de conhecer intimamente o papel de cada engrenagem no seu movimento; a beleza escondida de cada roda dentada, a ponderosa lentidão do rotor em platina, a necessidade absoluta do mais ínfimo rubi. Não sei se uma mania assim já mereceu honras de nome próprio, de um pedestal na taxinomia labiríntica das perturbações mentais, mas está mais que na hora: andam por aí muitos como eu.
Posso não me lembrar da queda nesta peculiar doença. Mas sei bem que mudanças na minha vida a acompanharam. E consigo ler nas letras garrafais o óbvio: a minha obsessão com relógios mecânicos revela um desejo claro de dominar o tempo. Uma ânsia de ter coisas a dizer, opções a fazer sobre ele. Não escolhi um tempo sobre-humano e infalível, daqueles que continuarão por certo a marchar indiferentes bem depois da minha última badalada; esse é o domínio dos relógios digitais, dos monstros a césio, dos leviatãs que regem observações astronómicas ou as engrenagens celestes do sistema GPS. Escolhi um tempo artesanal, entendível, imperfeito, a requerer que eu não me esqueça de lhe dar corda, sob pena de ver todo o universo estacar, entre chiadeiras mil e reclamações das pessoas sérias, que têm onde ir. Um tempo que pode ser preciso em si mas nem se sabe manter síncrono com o resto do universo: é raro acertar com precisão um dos meus brinquedos suíços.
Olho através do fundo de safira do meu cronómetro e vejo mais do que rodas gravadas, em trânsitos tão bem coreografados. Surpreendo ali, afinal, a prova do evidente embuste que é o tempo: como é que algo obviamente humano, embora admirável, pode alguma vez vir a sobrepor-se aos meus desejos ou à vontade de sobrevivência da minha carne? Claro que o tempo não existe, “embora, naturalmente, a perspectiva pouco animadora de eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto”, para voltar ao bravo Jacques Austerlitz.

Comecei a escrever isto acreditando que iria dar a um ponto onde faria sentido falar do fim do ano e desejar-vos um feliz 2006. Perdi-me algures. Desculpem lá.

Os não-melhores de 2005

O melhor romance que ainda não acabei: Austerlitz, de W.G. Sebald. Com tanto que por aí já foi dito sobre esta obra tão frágil como imponente, resta-me recomendar a sua leitura aos poucos que ainda não a encetaram.
O melhor ensaio a cujo meio não cheguei: Ghost Ships, de Robert McNab. Uma investigação obsessiva sobre as viagens e desencontros do mais surrealista dos triângulos amorosos: Max Ernst, Paul Éluard e Gala.
O melhor livro que, afinal, não reli completamente: Gravity’s Rainbow, de Tomas Pynchon. É incrível como gostei tanto de uma obra que não entendi de todo. Agora, estou a gostar ainda mais.
O melhor livro que não editei: Aqui vem o Sol, de Alexandre Andrade. Não cheguei a tempo a este, mas ao menos vinguei-me com Cinco Contos sobre Fracasso e Sucesso.
O melhor disco que de todo ainda não ouvi: Cripple Crow, de Devendra Banhart. Só conheço alguns fragmentos graças à minha filha e à MTV.
A melhor peça de teatro a que não pude ir pois temos um filho de dois anos e uma carência gritante de baby-sitters: sei lá, qualquer uma serve. Para minha desgraça, estou a leste.
A melhor exposição que não visitei: Dada, no Centro Pompidou, em Paris.
O melhor concerto que não vi: o dos Van der Graaf Generator em Lisboa. Mas aqui, ao menos, a culpa não foi minha.

Pequeno contributo para um Tratado da Escatologia

Há milhares de anos que os odores associados a certas funcões menos nobres da nossa biologia têm sido continuamente vilipendiados. Já os clássicos gregos se referiam ao “fedor que aproxima o homem do bicho mais rasteiro” e aos “movimentos dos intestinos que trazem ao mundo a baixeza da nossa condição de seres contingentes e imperfeitos “. Mesmo o Cristianismo recusa a caridade a tais eflúvios: Simão o Estilita terá partido para um exílio de décadas no topo de uma coluna de pedra precisamente para expressar o seu desagrado pela falta de instalações sanitárias condignas e resguardadas na sua aldeia.
Mas chega sempre o momento de colocar tudo em causa: e se os odores associados aos ditos “movimentos dos intestinos” tivessem afinal um papel nobre e útil?
Mais — sustenham a respiração que vou revelar-vos hipóteses arrojadas —, e se o cheiro hediondo que tende a rodear até o indivíduo mais angélico mal ele se senta na sua sanita preferida, de livro na mão, fosse um sábio estratagema da Mãe Natureza? E se estamos em presença de um ardil protector, pacientemente urdido ao logo de séculos e séculos de cega mas infatigável Evolução?
O bicho-homem sentado, de calças em baixo e empunhando o seu romance predilecto, está vulnerável como em poucas outras ocasiões. Ainda por cima, e sobretudo se falamos de um exemplar masculino confinado às agruras da vida em família, ele trata de aproveitar aqueles preciosos minutos de privacidade para ler em paz e sossego. Trata-se assim de um momento muito especial e precário.
Tendo tudo isto em mente, não será o tal desagradável odor uma eficaz barreira protectora, desenhada para repelir a aproximação de empecilhos aos prazeres solitários da leitura? Hipótese que causa vertigens pela ousadia: a Evolução a fazer tudo para proteger o nosso convívio com a Literatura!
Ah, sábia Natureza que não dá ponto sem nó.

Os normopatas andam por aí!

Claro que toda a gente percebeu onde fui eu buscar inspiração para a minha pequena adivinha de há pouco. Mas não é só por estes exercícios de exploração cultural da Joana Amaral Dias que o Bicho Carpinteiro merece visita delongada.
A prosa panegírica de Medeiros Ferreira, por si só, é um deleite para a alma e uma sessão de cócegas para a disposição mais sisuda. Ora tomem lá isto: “a apresentação do livro «Mário Soares, o que falta dizer», feita por Carlos Amaral Dias foi um momento de grande qualidade cultural, como raramente as épocas eleitorais proporcionam. Recorrendo à mitologia e à sua formação, o Professor comparou Mário Soares a Orion, e chamou-lhe o caçador do futuro.E descreveu os normopatas como irremediavelmente falhos de perspectivas.”
Orion e normopatas. Imagino a “qualidade cultural” da função.
Então se teve algo a ver com a ode que o distinto professor compôs há uns tempos para exaltar um livro de Clara Pinto Correia, estamos conversados. Recordo de seguida alguns excertos, então pacientemente inventariados pelo nosso Zé Mário:
“Há pessoas que, num determinado tempo, representam, contradizem, infirmam e confirmam esse tempo. Fazem-no tão só porque pensam e porque pensar não é uma actividade homóloga de si própria, mas heteróloga porque pensativante.”; “transmigrando a sua subjectividade sobre pequenos/grandes acontecimentos que vão de Entre-os-Rios a entre as falas e as suas disjunções.”; “como os besuntos de cimento armado que se fazem, lá onde se catrapiscou uma lontra sob a luz indízivel da juventude.”; “relação inelutável entre personalidade e máscara, que no étimo grego reenvia ao mesmo.”; “Sabe-se, ainda, que os que usam a personalidade como máscara e a máscara como atributo da personalidade se auto-condenam à observância pública da perscrutação mais ou menos paranóide do sujeito mascarado.”

Calculo o esforço de Mário Soares para não adormecer.

Uma pequena adivinha

Há uma senhora muito conhecida que até foi gabada pelo seu colega de blogue “pela forma inteligente e corajosa como se tornou numa personalidade política nacional”. Ela gosta de perorar sobre política, mas também não dispensa a sua penada cultural: de Beethoven à poesia coreana, nada lhe escapa.
Agora, escreveu sobre um livro. Acontece é que, em vez de puxar pela cabeça em busca de opiniões originais, preferiu usar algumas passagens alheias, sem tal referir. Sempre sai mais barato e mais fácil do que comprar e ler o calhamaço.
Quem será a irrequieta figura de mistério?

De seguida, não lerão a solução do enigma; apenas mais alguns elementos do mesmo…

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À atenção do Dr. José Mário Silva

Será possível conjugar numa obra de arte os fantasmas de Gary Kasparov, do Deep Blue e de Descartes? Tudo acompanhado por uma dramática evocação das possibilidades da engenharia genética?
Move 36, do brasileiro Eduardo Kac, é tudo isso. Uma instalação complexa que inclui projecções e uma planta geneticamente alterada de acordo com uma transposição para código ASCII da famosa sentença cartesiana: Cogito ergo sum. A planta assenta raízes precisamente no quadrado onde se deu a famosa jogada que levou Kasparov a irritar-se com as capacidades inesperadamente inventivas do seu adversário cibernético.
Será isto uma corajosa exploração das fronteiras entre o inanimado e o inteligente, entre o artificial e o natural, entre a Arte e a Ciência? Ou apenas uma obra um pouco cerebral demais?
Podem ler aqui um completo texto do artista e uma crítica à peça, que esteve exposta há muito pouco tempo, em Paris.

Mais um Jogo do Quadrado

A pedido de inúmeros leitores, a braços com o aborrecimento natural das férias escolares, aqui está mais um dos nossos simpáticos passatempos. O objectivo mantém-se: identificar os Grandes Vultos da Cultura Lusa que compuseram cada uma das seguintes Odes a Manuel Alegre.
No fim, pode avaliar objectivamente a sua proficiência Cívica e Artística. Assim: de 0 a 25% — você não merece viver numa Pátria que deu à luz um poeta como Manuel Alegre; de 26 a 50% — alguém incapaz de perceber que o importante num Presidente é ser um Homem da Palavra não devia ter direito a votar; de 51 a 75% — se decorar mais uns sonetos de Manuel Alegre, você até lá vai; de 76 a 100% — você é um modelo de Cidadania, de Ilustração e está pronto para dominar “a linguagem sublime dos deuses” ou seja, votar em Alegre. Como prémio, fica desobrigado de ler qualquer obra de Inês Pedrosa em 2006.

1— Precisamos de rasgar a abulia, a ignorância e o pessimismo, de nos amarmos como Pátria, de sermos Homens de palavras limpas. E quem melhor do que um poeta para o corporizar, no topo da pirâmide, em nosso nome?!
2— Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
3— Ter um Presidente da República com um perfil destes, é um luxo, diferente da desesperança de outros que transformam a vida numa máquina de calcular, que subtrai em vez de somar, que divide em vez de multiplicar, em que tudo se resume à aridez de um número, de uma percentagem, de uma estatística gelada…
4 — Uma diferença que tem riscos, evidentemente, mas cuja razão de ser é exactamente a aceitação serena desse risco, a troco de uma palavra preciosa (e esta é uma candidatura de palavra): VERDADE
5 — Com ele (Cavaco Silva) em Belém lá teríamos a sarabanda de videirinhos, empresários do dia e da noite, chicos espertos, patos-bravos, autarcas celerados, chatins, tias, reaccionários, espiões, e oportunistas de toda a espécie a moer-nos o juízo.
6 — Aqui pode começar uma descoberta para todos. Mas, se me permitem, sobretudo para a Pátria.
7 — “O sonho comanda a vida” é afirmação do António Gedeão, que nos habituámos a ouvir cantada por Manuel Freire. “Pelo sonho é que vamos!”, dizia Sebastião da Gama. Mal de nós se fôssemos apenas, sem um grãozinho de loucura na asa (podem chamar-lhe também poesia) o tal “cadáver adiado que procria”, para usar a expressão de Pessoa. ( e até como tal teríamos uma fraca prestação porque andamos procriando muito pouco).
8 — as pessoas estão fartas de ser tratadas como carneiros que fornecem lã para as mantas do Poder
9 — Votar nele é um acto de pura poesia, que, como se sabe, é a linguagem sublime dos deuses e dos homens que deles se aproximam. Ser inteligente também passa por aí, como o vento pelo mar.
10 — Querida Inês, Você é a minha outra voz. Jamais a desautorizaria. Prepare-se para comentar as próximas sondagens.

Autores: Cristóvão de Aguiar; Teresa Rita Lopes; o próprio Bardo, o Grande Vate Alegre; João Gobern; Mário de Carvalho; Inês Pedrosa; José Dias Egipto

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Os refugiados estavam mesmo a precisar de um pouco de glamour (e de um patrocínio da Sacoor)

Primeiro, veio a série “Príncipes do Nada”; documentários onde Catarina Furtado passeia a sua bela silhueta e a expressão devidamente compungida por cenários de catástrofes e trata de aborrecer alguns refugiados. Já a vimos a saltitar entre os destroços da tsunami do ano passado com a graça de uma modelo numa passerelle exótica, teimar em falar Português com um miúdo indonésio e passear uma camisola com publicidade a uma marca a que está ligada, a Sacoor.
Ontem, veio a inevitável gala de solidariedade. Num auditório onde a RTP nem teve a preocupação de angariar assistência para deixar a sala composta, lá surgiu a Furtado com um micro-vestido absolutamente desadequado às circunstâncias; a não ser que as duas tiritas de pano que a custo lhe escondiam os seios fossem uma metáfora para as carências que os refugiados sofrem…
Aliás, a apresentadora/embaixadora/cartaz publicitário tratou de se certificar que era o verdadeiro centro de todas as atenções: enquanto os músicos convidados actuavam, ficava ela em palco meneando-se com ademanes de prima-ballerina; de Susana Félix a Mory Kanté, não houve quem se livrasse de levar com aquele adereço inopinado a fazer-lhes concorrência.
Enfim; temos todos de fazer pela vidinha.