Uma coisa que Helena Matos não entende

No passado sábado, Helena Matos encerrou o ano no Público com a enumeração de algumas dúvidas prementes que a andam a angustiar.
Uma delas até é de cariz cultural, imagine-se. Com aquele “ar” matreiro de quem infiltra um fatal grão de areia na sinistra engrenagem do adversário, ela deixa-nos a questão venenosa: “resta-me uma dúvida incontornável: em que se distingue o gosto de Berardo do de Champalimaud?” Não se trata de uma mórbida fascinação com o estilo de vida dos ricos; tem sim tudo a ver com a recente decisão governamental de forçar o CCB a albergar a colecção do empresário madeirense. Continua o rosário de perplexidades: “o que já não entendo é que em relação à colecção Champalimaud se tenha usado como argumento o facto de esse acervo resultar do gosto pessoal do empresário para se justificar o desinteresse do Estado português por esta colecção. De que resultará a colecção Berardo?”
Eu explico-lhe em escassas palavrinhas: resulta não de um gosto pessoal mas sim de uma declarada intenção de criar um núcleo museológico capaz de nos dar uma perspectiva alargada de todo o modernismo do sec. XX, com particular ênfase no pós-guerra. Aliás, nem vejo como é que um gosto pessoal conseguiria ser de tal forma vasto que abarcasse as mais de 4.000 peças desta colecção. E, já agora, quem realmente enformou a génese da colecção foi Francisco Capelo; este, contando com os milhões de Berardo e com a depressão do mercado internacional de Arte, é que dirigiu as aquisições.
A colecção de António Champalimaud é mais simples em âmbito: resume-se às pinturas, mobiliário e porcelanas da sua antiga habitação. Ao que parece, ele gostava de se rodear de belos objectos. E tinha uma marcada preferência pelo rococó francês e por paisagens italianas. Mas, de acordo com Anísio Franco, do MNAA, ele sabia que tal nunca bastaria para dar origem a um museu e “tinha a consciência de que era simplesmente o recheio de uma casa rica onde as coisas eram boas e poderiam facilmente ser liquidadas”.
Como comparar o espólio de um milionário com bom-gosto a uma das maiores colecções privadas da Europa? Muito provavelmente, algumas das peças de Champalimaud seriam excelentes acrescentos para o Museu Gulbenkian, por exemplo. Mas com a colecção Berardo vamos ter em Lisboa um grande museu de Arte moderna; um pólo de educação para o nativo e de atracção para o turista. Algo que sempre nos faltou.
Claro que Helena Matos até devia saber disto. Mas dá sempre jeito ter estas “dúvidas incontornáveis” à mão para obscurecer as questões.

5 thoughts on “Uma coisa que Helena Matos não entende”

  1. como sempre, o vosso amigo Tim tem uma resposta pertinente.
    E se o estado pprtuguês não albergasse a colecção Berardo, seria muito natural que ele encontrasse albergue num estado estrangeiro. Seria uma perda muito, muito estúpida. Aquela colecção dá para muitas exposições temáticas e é de chorar o estado em que se encontra o museu de Sintra, sem um tostão. Ainda bem que a colecção vai para o CCB, onde será muito mais visitada e o acervo mantido em melhores condições. A helena matos sempre foi um bocadito precipitada nas suas conclusões.

  2. “Mas com a colecção Berardo vamos ter em Lisboa um grande museu de Arte moderna; um pólo de educação para o nativo e de atracção para o turista. Algo que sempre nos faltou.”

    A mim não. E, mesmo admitindo que a interrogação da HM seja apenas retórica, continuo sem perceber porque é que eu tenho de contribuir para pagar aquilo que nunca quis.

  3. Este “nos” referia-se mais aos habitantes e visitantes frequentes de Lisboa. Quanto às contribuições, olhe que também deve haver muita estrada e investimento público sortido aí para os seus lados. Será que me tocou parte da despesa?

  4. não duvido que tenha tocado, como não ponho em causa a necessidade da despesa pública.

    mas se toda a despesa pública pode ser discutida, nenhuma é tão discutível como a despesa que se faz em nome de gostos artísticos.

  5. será, salvador, se ela estiver equivocada nas escolhas, no investimento. mas, se reparares, não há país que prestigies que não tenha uma forte tradição cultural/artística. é através do nível cultural e da educação para a cultura (aí, o CCB é muito bom, tem excelentes visitas guiadas, adaptadas à especificidade dos grupos que as solicitam) que se consegue subir a fasquia do cidadão, também. é importante aumentar o nosso grau de exigência no usofruto da vida. já pensaste que se houver mais gente capaz de sentir a felicidade contemplativa, passível de ser provocada por um objecto artístico, num museu, a vida será bem melhor?

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