Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

«Bad Boy»

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Um mimo, a crónica de PAULO MOURA hoje no «Píblico». Um mimo, como quase sempre. Para vos faire la bouche:

«A bicicleta é independente. Vive da nossa força muscular, que multiplica com eficácia cada vez maior. O objectivo da ciência ciclística é tornar o veículo mais leve, mais aerodinâmico, mais funcional. Os quadros, forquetas e guiadores começaram a ser construídos em alumínio, depois em fibra de carbono. Carretos, cremalheiras, correntes passaram a ser feitos em ligas metálicas resistentes e virtualmente isentas de peso. Sem recurso a nenhuma fonte externa de energia, à custa, apenas, do seu próprio desenho, a bicicleta é, hoje, um veículo extraordinário. Aproxima-se da perfeição, ou seja, de um limite utópico em que não seria preciso, sequer, pedalar.»

«Lixo demagógico», isto?

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A coluna de JOSÉ PACHECO PEREIRA, no «Público» de hoje, é de leitura obrigatória para quantos se mexem nestas embaladoras águas da blogosfera. Saia, pois, você de casa e compre o jornal. Começará a ler assim:

Um livro de Andrew Keen tem suscitado uma grande discussão na comunicação social internacional e na rede. O livro ainda não foi traduzido em português, mas o seu título e subtítulo não enganam ninguém: O Culto do Amador – Como a Internet dos dias de hoje está a matar a nossa cultura. É um livro panfletário e simplista, escrito para chocar, mas as questões que lá são levantadas são importantes e cada vez mais presentes, até porque são uma versão nova de problemas muito antigos potenciados numa dimensão que, essa sim, é nova. O livro de Keen não foi o primeiro e certamente não será o último sobre o assunto vindo do lado dos “apocalípticos” das novas tecnologias, para usar a terminologia de Eco. Pode-se até esperar um filão polémico de livros sobre este tema, porque os efeitos de “matança da nossa cultura”, usando o título de Keen, são sérios e só se podem agravar nos tempos mais próximos. O catastrofismo é uma longa tradição do pensamento ocidental, principalmente nas mudanças do século, mas lá porque é cíclico e porque as coisas nunca correram tão mal como se anunciava, nem por isso, nada nos garante que, desta vez, não corram mesmo muito mal.

Leia o resto com a sua bica, à sombra.

Actualização

José, outro, perdeu – confessa-o aqui nesta caixa de comentários – uma tarde de praia. Para escrever ISTO. E que teria adiantado, na praia, mais um José tostando (supomos) anónimo?

Ligeiros anos

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No eléctrico, a menina, dezoito ligeiros anos, faz questão de levantar-se.
– Não se quer sentar?
O veículo tivera um arranque violento, e eu precisei de deitar a mão, rápido, a uma argola.
Foi aí que ela reparou nos meus cabelos brancos.
– Não, muito obrigado.
E, ridículo, sincero, não pude conter-me:
– É que ainda sou novo, sabe?
Era a maior das verdades. Subo escadas a correr – ainda subo escadas a correr – e desço-as
dois a dois e com um rasto de elegância. Mas ela, a mocinha, nunca poderia adivinhá-lo.
– Mas, se quiser, sente-se.
Menina linda. Bem-educada. Cruel.
Não me sentei. Sorri apenas. Gentil. Vingativo.

Como soa o português?

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Sim, como soa o português? Nenhum de nós sabe. Tal como a água não tem sabor nem o ar cheiro. Isto, normalmente. Mas é verdade: não podemos sair do português e saber como ele soa. Ouvi-lo de fora, digamos.

Não podemos? Ora experimente. Leia este texto a um amigo. Ou, mais exactamente, peça-lhe que lho leia a si. Você não vai entender nada. Mas saberá, finalmente, qual o cheiro, e o sabor, e o som do seu idioma.

O VAGANAU

Quando, nesse dia, a grande zorata se escabajou, fachona e esampada, lastraram-se os macanjos, não os mais coitanaxes, mas os futres. As récegas, ainda mal forjicadas por uns chambris sem galilé, experluxavam todas murzangas e resulhas, debaixo do mesoneiro.

Perto, esbagoavam-se as caiporas no seu ousio brês e solerte, empanzinando o mandil das chedas mais cainhas, enquanto o bom do gerifalte, cada dia mais zambro e somítego, estroncava zarcamente o bajoujo.

Onde se entroncava a sancadilha, onde? Empanizava ela com os pegamaços ainda cóscoros, ou alapardava-se nos pelouzanos do galaroz? Malditas búseras, a que nem os piores malcatrefes refertavam. O jagodes choutou novamente as rópias de seu já velho taró e engabelou-se no ralão de codeço.

Nunca mais se eslavoiraram as lagóias. E desde esse dia a calhatroz esmoeu toda a sirga que matejara nos olharapos ladravazes da pandorga.

Este texto foi composto com vocábulos retirados de obras ficcionais de Aquilino Ribeiro.

Benesse dos deuses

Posto de conversa com Jorge Carvalheira, descobriu Daniel de Sá, num recuncho da sua manjedoira, este manuscrito. Não sendo todos os nossos leitores destros furões (mas alguns são-no), puxámos o valioso texto para aqui. Eis:

SenhorHesta verdade he puvriqua e bem sabida que asy como a sargento que sube de segundo a prymeiro loguo lhe outhorga Deos que elle aja intelligencia de prymeiro, asy a nosos ministros da noso Senhor intendimento de ministro, pollo quall cada acto de mandar podeloham fazer muim bem feito; e mais he sabido que o Regno do Allgarve era asy dito, como se lee em o titolo de nosso glorioso rey – Dom Manuell, per graça de Deos Rey de Portugall e dos Allgarves daquem e dalem maar em Africa senhor de Guinee e da conquista e navegaçam, commercio de Ethiopia, Arabia, Persya e da India; pollo que se vee que o ministro Manuell Pinho tem muyta rezam em mandar que o Algarve seja Allgarve, mas quamto a querer tambem mandar o Regno pera ese tempo em tall nam quero cuidar, e esto contra todallas e quaesquer openiõoes que o governo do doutor Santanna Lopes nam ouve tempo de fazer sandices senão de dizelas, e este governo já vae avendo tempo de dizelas e de fazelas.

O ironista

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Detenhamo-nos um instante nessa quinta-feira, 2 de Junho de 1994. São nove e meia da manhã. Eduardo Prado Coelho barra concentrado o seu croissant, de olhos distraídos no Libê, quando se apercebe do ronronar do fax. Aquilo acontece mais vezes, editores e outros amigos não o deixam meia hora ínscio da imprensa nacional.

Eduardo aguarda pois, e só consumido o folhado se dirige, em passo rotineiro, para a fonte dos escândalos. «Isto é comigo», pensa sempre. Ali, era. Eduardo enterra-se no sofá e percorre o texto. Cresce nele uma doce hilaridade, qualquer coisa lhe diz: «Agora caladinho, porque só os tontos que me detestam se hão-de divertir com isto, e eu sou aqui o último a rir, depois de ter sido o primeiro.» Ora, por incrível que pareça, Eduardo desprezou este momento de graça.

Foi publicado no JL em 1995
e republicado em Maquinações e bons sentimentos em 2002
Leia, abaixo, «O ironista» completo
.

Continuar a lerO ironista

Adeus, Eduardo

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Ontem li, no Público, a crónica dele. Tinha graça, mas já não a força de antanho. Vi-o em Maio, na Fnac do Chiado. Ao despedir-me, abracei-o. Era a primeira vez na vida, eu sentia que era também a última.

Neste lugar, que é um bocadinho meu, fica a recordação do homem que disse de mim coisas que não lembram ao diabo, mas acrescentando que, se o V. agora entrasse por aquela porta, teria o maior prazer em recebê-lo.

Agora foi ele quem entrou por essa porta, mais que todas, tremenda. Que ela o conduza ao mais tranquilo e verde dos espaços.

Foz do Arelho, ouvido cândido

São mais cás mães, pá. E aparecem, sem avisar, em tudo quanto é sítio, mesmo público, mesmo assim tipo discreto. O que mais por aí há são héteros, é o que eu te digo. Héteros. Nunca ouviste falar? Daqueles gajos que…, eh pá, tu percebes, não disfarces. E vêm, sim, vêm como calha: sozinhos, juntos, aos pares, claro, mas não se ensaiam por virem também aos magotes. Um gajo topa-os logo.

Também, pá, não escondem. Nem um nadinha de decoro. De urbanidade, digamos. Dantes não era assim. Dantes essa malta escondia um bocadinho. Fachada, meu, pois era, fachada pura, tá-se a ver. Mas sempre era outra coisa. Agora até os miúdos reparam, já viste? Até os miúdos. Que é que um pai vai dizer, se vêm com perguntas? Sim, um tipo não vai… Tá bom, há maneiras de rodear a coisa, eu sei. E os putos entendem. Às vezes entendem até mais que sei lá o quê.

Mas não devia ser. Não devia, pá. Quer dizer, eu nem sou contra. Nunca fui. Cada um lá… Ãh? Pois, pois falam, falam muito em liberdade, em assumirem, em «todos diferentes», comé quié? «Todos diferentes»… Isso, «todos iguais» tarantã. Mas depois um gajo é que os grama.

E são, são uma data deles. Vai por mim, meu. Mais cás mães.

«Tu»

A presidente da maior confederação de sindicatos holandeses trata por tu o ministro do Trabalho. O presidente do conselho de universidades holandesas (que vai sempre de bicicleta para o trabalho) trata por tu o ministro da Educação. Vários presidentes de grandes bancos holandeses tratam por tu o ministro das Finanças.

E julga alguém que este Reino, de onde vos escrevo, amanhã se desmorona?

CÔRTE? CÓRTE? UM ESPANTO.

Eu já tinha lá passado, no blogue Intermitências da Corte. Lá. Aqui. Mas agora foi para ficar.

A história curta, e mais ainda a supercurta, pode ser um espectáculo. Alguns dos seus cultores habitam o meu Olimpo privado. Como este. E este (comentado aqui). E este.

Os melhores momentos da arte de Confúcio Costa é em tudo comparável aos melhores momentos da arte desses outros. Com uma diferença: a do seu lado cru, com dedos a voarem, com ossos a estilhaçarem-se. É para aficionados – que sempre, incompreensivelmente, os há. Mas é arte, da mais pura, da que mais nos aquece a alma por vê-la feita no nosso idioma.

Fez-se aqui uma homenagem ‘provisória’ a Confúcio Costa. Esta, agora, é definitiva.

Tipo assim

Sou um viciado em linguagem da plebe. Da plebe culta, esclareço, aquela onde mais acontece roçar-me. Assim tipo… Atenção, isto não anuncia nada. «Assim tipo» é já linguagem da plebe que se cultiva.

É assim. Um gajo senta-se incógnito, à escuta, junto a uma mesa com umas… Como? Eu escrevi «É assim»? Não posso crer, isto nunca me aconteceu. Como? Escrevi também «Não posso crer»? Bom, senhores. Esqueçam. Eu não disse nada. Tchauzinho e até mais.

Tá vendo?

A cidade sem monumentos

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Sempre dormi descansado sabendo não estar o meu sono rodeado de monumentos. Sim, porque os monumentos são um peso. Não estou a referir-me a esse peso, leitor, mas também não o subestimo, descanse.

Sempre tinha ouvido dizer que Amsterdão era ‘uma cidade sem monumentos’. Acreditei e assenti. Com efeito, chega-se a Bruxelas e sente-se um gajo pequeno. Chega-se a Paris e sente-se esmagado. A Londres e olha-se à volta onde-é-que-eu-fiquei. E mesmo Lisboa… Bom.

Pois acabou-se a tranquilidade. Li ontem no friso publicitário dum eléctrico que a minha cidade conta 7650 monumentos. Levou algum tempo a perceber o que lia, depois procurei algures uma vírgula (as décimas ou centésimas seriam o mais criativo), mas não. Eu tinha visto bem.

Amanhã volto ao centro, onde trabalho (alguém falou em férias?), e vou procurar. Sou capaz de dar por lá com algum monumento, escondido nesse espaço urbano que, até hoje, eu sempre pensara construído «à escala humana». Vou-me sentir pequeno, isso é de prever. Se de mim sobrar alguma coisa pensante, direi o que se conseguir. Se não, já sabem.

Vale o desvio

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Quem, descendo o mapa, vai para Monte Gordo, ou para toda a metade leste do Algarve, pode deixar a auto-estrada e ir conhecer mais um recanto do país: Mértola, o maior museu do Alentejo. Ali o espera, há bem dez séculos, uma das maravilhas de Portugal.

O autor do «post» é, concedamos, suspeitíssimo. Calhou-lhe nascer lá. Mas vá, você mesmo, tirar teimas.

A deusa em Monte Gordo

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Paulo Moura é, decididamente, um grande talento da história breve. Uma delícia, lê-lo ao domingo
no Público. Hoje, o episódio leva-nos ao algarvio Monte Gordo (que ele grafa estranhamente «Montegordo»), em 1963, quando Ingrid Bergman aí apareceu em biquíni e foi multada pelo
cabo-de-mar.

Há – há sempre, num grande escritor – alguma efabulação à mistura. Há, também, algum exagero nas cores negras do Portugal da época. Paulo Moura nunca o conheceu, e só o entende como tragédia da manhã à noite.

Mas é um raro prazer lê-lo. Ao magnífico criador de cenários.

Dê-lhes rijo, Arquitecto!

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Hoje, no «Sol», escreve José António Saraiva, o director, a propósito do Iberismo
e de Saramago:

«A classe média portuguesa olha para o enorme desenvolvimento que a
Espanha registou nas últimas décadas, compara-o com o marasmo português
e conclui: integrados na Espanha seríamos mais prósperos, mais ricos e
mais felizes.
Ora, é uma ilusão pensar assim.
Basta olhar para o que aconteceu em muitas empresas portuguesas que
foram compradas por espanhóis: a investigação deixou de ser feita em
Portugal e passou a ser feita em Espanha, os quadros superiores
portugueses foram substituídos por espanhóis nos lugares-chave, os
portugueses ficaram em posição subalterna e acabaram por se sentir
estranhos no seu próprio país.»

«Quando Saramago disse que a integração na Espanha é inevitável,
estava implicitamente a dizer que os portugueses não têm vontade de
continuar a ser independentes (ao contrário dos bascos ou dos catalães,
que no próprio dia em que o franquismo caiu ressuscitaram os seus
valores).
Portugal poderá perder a independência.
Mas só se os portugueses quiserem.
Daí que a posição mole, distraída, desinteressada, capitulacionista
ou abertamente anti-nacionalista da esquerda portuguesa seja um mau
sinal.»

Com um obrigado ao Carlos Luna.