Arquivo da Categoria: Fernando Venâncio

Postal do Intendente

De «Lisbon Blues», colectânea de José Luís Tavares, este poema.

Isto aqui é o paraíso —
fazer uma mija contra a sebe,
sem que a bófia nos interpele,
embora o frio nos morda a pele
e mil dele eu te deva.

Alguém chamaria a isto vida.
Diógenes teria encontrado aqui
o seu homem. Goethe o proto-tipo.
Ovídio não lamentaria o seu exílio
— alta estima tenho por ele
embora não perceba o latinório.

Amigos na folia, vejo cão
e perdigão. Mas uns bacanos
armados em al capone
semeiam deliciosa confusão.
Quando todos aguardavam o encore
abalaram de roldão.

Na contramão, cismando, ainda
lhes perguntei se de onde vinham
a manhã se bordava a fogo,
mas apenas a pólvora dos impropérios
e um arroto de aguardente velha deixaram
por essa pretérita manhã do burgo.

Se o inimigo nos trama

«Preciso de mais um capítulo. Como um adolescente precisa de um telemóvel. Ou como os telemóveis – as empresas que os produzem, bem visto – precisam dos adolescentes.» Isto escreveu-o Confúcio, o inestimável, o vivo, o nosso. Quem tem coração para deixar a aguar um púbere assim?

Eu sei. Não há-de chegar, para tanto insofrimento. Mas é tudo o que se tem, este capítulo, mais um, de Deus chega no próximo avião. Arrancará a ‘acção’ aqui, finalmente?

*

Passa já das quatro e meia. Lá fora, o vento ganhou em fúria com o vir da madrugada, a chuva não deu descanso. Quase vazia está, na mesa-de-cabeceira, a garrafa de Reguengos. Começo a sentir um buraco no estômago, mas impossível erguer-me e confeccionar qualquer coisa. Não sei quando irei dormir, se vou dormir sequer. Isto que está a passar-se é único, e já não me importo com que cara possa aparecer, daqui a horas, na Água Líquida.

Era já bem meia-noite, quando me afundei no número cinco dos originais. Achava-me sem sono, e antes com uma energia que, em momentos de outra premência, acontece falecer-me. Fizera observações à margem nos manuscritos, anotara no bloco sugestões de feitura. Os quatro enredos não me tinham aquentado nem deixado de fazê-lo, mas já vira pior. Como sempre faço com este trabalho, li trechos com maior detenção, a outros deixei-os para eventual oportunidade.

E, de repente, isto. Um texto que, à primeira linha, rompeu como uma sinfonia, e veio depois ganhando este ritmo sereno mas subjugante, desenvolvendo aqui uma vivacidade, ali um alargar de visões, além um espadanar de conceitos. Venho-lhe degustando, uma e uma, as expressões, entrando pelos parágrafos como quem se arroja a uma nova onda, crescentemente desperto, a cada momento mais sobressaltado.

O nome do autor, Maurício Peres, nada me diz. O título, O bom, o malvado e quem fica de fora, não se me fez mais eloquente. E, todavia, impossível agora deter-me. Vou pouco para além de meio, e já me toma uma dolência, uma nostalgia, por saber que esta narração estonteante há-de ter um remate. Tento retardar a leitura, procuro se possível inverter a marcha, revivendo situações e abstraindo da sequência entretanto conhecida, para que o conjunto não se exaura. Pergunto-me quem escreveu este desmedido assombro, que mente concebeu tamanho primor. E sinto que passei estes largos anos aguardando só esta exacta dádiva, e desesperando de tê-la um dia nas mãos. Agora aqui descansa, concreta, sobre os meus joelhos, a escrita mais luminosa que supor se possa, um brinquedo de argúcia e gentileza, de ingenuidade e atrevimento, uma bela tonalidade clássica cortada aqui e além por discretas gírias, tudo servindo uma história louca, sim decerto louca, mas plausível, genuína. Que sorte esta, a da minha editora, vir parar-lhe um livro assim.

Que terá passado pela cabeça ao Luciano Malta quando leu isto? Vejo que, esparsamente, lhe corrigiu uma acentuação (estava «impúdico», estava «os pelos», estava «páro»), eliminou, pois claro, os ponto e vírgulas em discurso directo, uniformizou aspas e itálicos. Não se valeu, vê-se, do corrector ortográfico. De outro modo, não se percebe por que tivesse feito emendas no papel. Eu tenho ali a disquete, posso ir confirmar. Enfim, o Luciano fez a sua parte, e fê-la bem. Mas terá ele reparado no material que se lhe oferecia? Reconheceu ele, ali sobre o tampo da secretária, este romance assombroso? E, se o viu, tê-lo-á dito, chamado a atenção de alguém? Nem uma nem outra coisa parecem prováveis. Este texto já lhe passou pelas mãos há algum tempo – exacto, vejo aqui na capa uma data, vai para quinze dias – e, caso houvesse alarme, já me teria chegado, e a mim antes de a muito outro. Está visto, o Luciano não leu. Quer dizer, leu e não reparou. Nada de anormal nele. Nunca o ouvi comentar a qualidade de um livro. No máximo faz menção de alguma brejeirice.

E antes assim. Se alguém tiver de avisar o mundo, que seja eu. Vou fazê-lo com cuidado, tratar o assunto a sós com o dr. Cícero. Já é desse modo que procedo em casos excepcionais, e desta vez proporei que nem se aluda ao caso na reunião. O Luciano é imprevisível em demasia para se arriscar tanto. Teria sempre a reacção que mais me prejudicasse. Com os seus imperturbáveis ares de sábio, desfaria no apreço, «Também nem tanto…», ou chamaria a si a descoberta, «Isso já eu tinha percebido», e comporia com charme o resto da intervenção.

Por outro lado, e agora que nisto penso, silenciar totalmente a questão não é aventurar menos. Se o safardanas tiver entrevisto desta maravilha um décimo que seja, pode bem lançar-me um laço, perguntar inocentíssimo se o Hermenegildo por acaso trabalhou também o manuscrito de certo Maurício Peres – «O senhor até já telefonou a saber» – e, se sim, o que é que achou. São incontáveis as formas de um inimigo nos tramar.

29 euros

Lerei eu alguma vez Rio das Flores, o recente romance de Miguel Sousa Tavares? Quem saberá dizê-lo? Também eu nunca digo nunca. Mas a vontade de me meter ao livro é, devo confessá-lo, basto reduzida.

Acabo de ler o comentário que do romance faz hoje, no Público, Vasco Pulido Valente. O conhecido cronista é um notável historiador (entre outras coisas, do período que Tavares romanceia) e a noção que fica é que se trata dum passável romance de aeroporto.

Mas eu já tinha sido alertado para o José Mário Silva, que, no blogue «A Invenção de Morel» (clique aqui à direita), reproduz uma sua crítica na revista Time Out. Também o Zé Mário é devastador.

Escrevi um dia, em Crónica Jornalística. Século XX (do Círculo de Leitores, 2004), que «em Vasco Pulido Valente, em Miguel Sousa Tavares, em Eduardo Prado Coelho, em António Mega Ferreira, em Manuel António Pina, em Mário de Carvalho» estava, na realidade, a fina-flor da nossa prosa actual. A ordem não era arbitrária de todo. Se é certo faltar ao cronista Tavares a consistente qualidade da escrita de Mega, de Pina e de Carvalho, também é verdade que assinou algumas crónicas brilhantes.

Hoje sei que o cronista Tavares permitiu a existência do romancista Tavares, e lhe deu carta branca para a banalidade e a frouxidão. Ele venderá os 100.000 já impressos, e mais, muitos mais. Mas o grande prosador de Sul e de David Crockett terá entrado, definitivamente, na prateleira light.

O alerta para a crítica do Zé Mário foi-me dado pelo ficcionista Eduardo Pitta, no blogue «Da Literatura» (clique aqui à direita). Aí escreve Pitta que sentiu ficarem-lhe no bolso mais 29 euros. Sei que, para Pitta, isso equivale a um «melão com presunto» no alto do Hotel Tivoli. Eu, que não sou mundano, hei-de trocá-los por dois livrinhos que – assim o destino não seja avaro – me saberão a néctar dos deuses.

Um homem feliz

Contra o prometido, ainda não é aqui que o motor de Deus chega no próximo avião engrena. Um pouco mais de paciência, pois, gente leitora. O que não torna desprezáveis as informações ainda assim fornecidas.

Para quem possa ignorá-lo: Moreanes é uma tranquila aldeia entre Mértola e Mina de São Domingos. Tinha, à época em que escrevi isto, um restaurante que valia bem vários détours. Se calhar, ainda lá está. A Foz do Lizandro, essa, é no Oeste, não longe da Ericeira.

Numa caixa abaixo, Valupi escreveu: «Deus chega no próximo avião? Continuemos à espera, pois. E rezemos (mas a quem?…) para que o avião não caia.» Interessado até aos gorgomilos, também eu acenderei uma velinha.

*

Acabo de levar a casa a Noémia. Pôs-se uma noite de chuva, nada que o esplendoroso fim-de-semana pudesse anunciar. Ainda tentou aliciar-me para um serão, mas só aceitei os ovos com presunto e a taça de clarete. Foi óptimo estarmos os dois na Foz do Lizandro, lendo àquele sol já de Primavera, vadiando pelas dunas, e mais tarde horas a fio na cozinha aprontando um prato inédito. Mas ela compreendeu a minha pressa, a minha indisponibilidade. É que preciso de passar ainda os olhos por uma resma de originais, e amanhã às dez quero sentir-me fresco para a reunião semanal. Com o dr. Dominguinhos reuníamos quinta à tarde, resvalando o encontro o mais das vezes para o jantar na marisqueira. O filho é mais tipo norte-americano.

Trago quase sempre manuscritos para casa. Ponho os almofadões na cabeceira da cama, e assim fico horas regalado. Do corpo, porque o espírito, não raro, sofre atrozmente. Leio mais romances num ano do que um leitor compulsivo em cinco deles. E, diferentemente desse leitor, não posso escolher. Para mais, não leio apenas. Tento entrar nos textos, tomar-lhes a espessura e o cheiro, para melhor aquilatar-lhes o conseguimento, revitalizá-los onde for praticável, fortalecê-los onde o admitirem. E faço-o à mão. Só no escritório é que, depois, pego da disquete, ou do cd, e construo os meus best-sellers.

Estes dois diazitos com a Noémia fazem-me bem. São o meu oxigénio. Partimos sempre sem outro programa senão o de esquecer Lisboa. Com a vantagem de se ficar por perto. Quando estava com a Clara, era uma aventura meter-nos até Moreanes. Não havia as belas estradas de hoje, e o regresso dos algarvios, ao domingo à tarde, ainda mais nos estragava as contas. Hoje raramente lá vou, e só uma vez ou outra com o Diogo. Ele aprecia o ambiente alentejano, tem lá amigos nos montes à volta, organiza farras até altas horas, é um regalo vê-lo, e mais para quem, como eu, gostaria de ter sido assim. E, quando não vai comigo, leva a namorada do momento, leva o computador, leva a mãe. Não nasceu lá, e dá-se melhor no Alentejo do que eu.

Com a Clara, nem eu nem ela esquecíamos, ao fim-de-semana, o trabalho. Tínhamos em comum a obsessão da minúcia: ela no direito, eu no jornal. Era onde melhor os dois nos encontrávamos, era, tenho de ser sincero, o único ponto em que reagíamos bem. Aprendi, nas suas matérias jurídicas, a força da pormenorização, a valia das distinções, o préstimo duma global coerência. Confio em que também ela tenha ganho comigo, talvez na estruturação de um raciocínio, no colorido das sonoridades, na exactidão de um vocábulo. Os nossos fins-de-semana, fossem na Lapa ou na casinha alentejana, eram «de trabalho», por muita descontracção que isso nos garantisse. Quanto ao resto, o nosso casamento só tinha um arrimo: a existência do Diogo. E, mesmo aí, estive sempre longe de empenhar-me quanto devia. Porque é que não fui mais vezes com ele a treinos, ao cinema, a devassar mundo, mesmo a preguiçar numa praia, ainda hoje não sei. Quando me descobri pai, já o meu filho não precisava de mim.

A Noémia atravessou-se-me no caminho. Foi quando, meio conformado meio fatalista, eu começava a habituar-me à solidão. Era um processo a que eu assistia com curiosidade, e que o aparecimento dela perturbou o seu tanto. Não poucas vezes me ouvi pensar: «Se isto também der bota, tenho-me ainda a mim mesmo.» Mas foi-me boa, essa experiência do despovoado. Lembra-me aquilo que afirmam quantos se acercaram da morte e regressaram. Um por um dizem ter perdido qualquer medo. Também para mim a Noémia, ou quem a ela se siga, será apenas uma alternativa, aceite com muita alegria, mas com igual desprendimento. Estranho seria se ela nada disso notasse, por informe que essa noção lhe chegue. Para alguma coisa lhe haveria de servir essa larga prática com homens, de que ela se gaba mais do que a minha vaidade aprecia.

Mas talvez por tudo isso o contacto com ela me é tão relaxante, e nada nele se assemelhe a um pânico perante falhas ou suposição delas. É isso. Ao mesmo tempo que bendigo os céus que ma deram, estou pronto a entregá-la inteira quando eles o requererem. Eu devia considerar-me um homem feliz. Se calhar sou, e não sei.

O gene auto-destrutivo

Um comentário no Público.pt, esta tarde. O pretexto é o apuramento de Portugal para o Europeu.

Realmente nao percebo esta mentalidade nacional, velhos do Restelo ingratos!!! Sempre que se avança um passo no nosso país aparece um medíocre tuga, xico esperto, a envenenar-nos para darmos dois passos para trás. Algures na nossa historia pusemos um gene auto-destrutivo que aparece sempre quando as coisas estão finalmente com uma luz ao fim do túnel. Tenham vergonha, todos nós somos culpados, somos um pais multicultural e fazemos piadinhas absurdas dos nossos irmãos, e depois quando vamos para fora queremos ser bem tratados? Ignorantes!!! Qual é a lógica de ser assim? Qual é a lógica de constantemente nos sabotarmos a nós próprios por pura vaidade e orgulho ácido?

Bruno Sá Marques, Londres

[destaque meu]

Escritor falhado?

Uma multidão audível, e já ameaçadora, à porta do Aspirina obriga-me a entregar mais este capítulo de Deus chega no próximo avião. Mas eu, prometo, resistirei.

*

Às vezes desejaria ser um desses espíritos rasos, para quem o mundo é uma paisagem de enlevos, sem fronteiras nem conexões, de enlevos trazidos pelo vento, pelo vento arrumados, e isso um dia, e outro, e mais outro. Porque é que, pergunto-me, fui eu feito de perspicácia, porque trespasso eu os dizeres alheios, que vantagens me supôs a vida ao carregar-me com a imparável percepção de um gesto, de uma hesitação, de um silêncio? Quanto mais leio acerca dos sobredotados, mais evidente se me faz que injustiça há neste excesso de penetração, neste estontecedor discernimento. Tento não ver, proíbo-me de raciocinar, esforço-me por mirar só as superfícies, só o que de contingente, de volátil, apresentam as coisas e as pessoas. Por vezes, penso que consegui. E tenho instantes de paz, sinto-me o anjo cego, o boi na paisagem. Dura instantes. E logo acordo, ébrio de lucidez, outra vez desgraçado.

Faculdades excepcionais poupam muito, é certo. Não preciso de ler um manuscrito completo, nem um capítulo, às vezes nem já o primeiro parágrafo inteiro, para saber, de ciência feita, o que aquilo vale, que investimento meu se justifica, que hipóteses existem de o autor alinhar com propostas. Mas exactamente esta pasmosa capacidade cria as fricções que depois se vêem. Eu não estou sempre disposto a engonhar a cena, a subtrair a choques o incomensurável ego dos romancistas. E, sei bem, é isto que não se me perdoa. O eu não poder, e não querer, camuflar a rápida apreensão que tenho do conseguimento alheio. «Você nunca dá chances a ninguém», rosna-me o Luciano. É a pura verdade. E pior seria – mas isso não o adivinha ele – se eu não fizesse o arrasante esforço de acompanhar, aqui e além, o miúdo passo dos meus semelhantes.

Mas se possível ainda mais doloroso é este contacto tão directo, que é o meu, com o íntimo dos autores. Vê-se a milhas que passaram meses afeiçoando um psicodrama ou um ajuste de contas. Ou os dois, já que o ajuste se faz às vezes com o agreste passado que lhes calhou. Não são os mais legíveis, não são seguramente os mais recreativos. Além disso, e sou o primeiro a compreendê-lo, este exercício de honestidade e de exposição deixa-os susceptíveis em extremo, quase intratáveis. Vejo então como missão minha protegê-los contra si próprios. Nem sempre com êxito.

E é assim que – exemplo ao acaso – ando, há bem quatro anos, nas mãos de uma loura escrevente, que eu venho estilisticamente medicando, e é senhora de um psiquismo vertiginoso. «Você aponte o que quiser, o problema é seu», lançou-me uma tarde destas a Úrsula Magno. Uma voz sonora e bem timbrada que, pobre de mim, tanto mexe comigo. «Mas não se muda nada, senhor. Cada palavra, ouviu, cada palavra sai-me muito daqui.» E estrafegava o peito, com uma auto-imagem de todo invejável. Em termos velados mas audíveis, ameaçara há tempos, ela também, ir bater a outras portas. Não foi o que fez agora. «Para mais, e o sôr Gildo sabe isso muito bem, a crítica tem apreciado os meus livros.» Quando outros argumentos falham, ou a vontade de produzi-los, é fatal o dizer dos críticos. Neste caso, nem era muito verdade. Tirando a desaforada Natália Rosas, do Mundo, já poucos recenseiam, e ninguém com entusiasmo, as novelas anuais da pseudónima Úrsula. Mas, exactamente, eu não quero, nem sequer com as minhas reservas, animar um jogo perverso. Não são os júbilos ou os desprazeres da crítica o que salva um livro ou lhe rouba as qualidades. Mesmo as obras que eu tornei apresentáveis não foram sempre descobertas, e, se descobertas, ponderadas o suficiente. Respeito a crítica, sei a espiga que é ler certas produções, mas não aceito chantagens. Simplesmente, a Úrsula não me era interlocutora, como nunca me serão interlocutores esse mediático Rafael Sirais, ou a premiadíssima Antónia Fontouro, ou o misterioso, e por isso, tão requerido Olavo Junqueira, os pilares da casa. «Mas, ó Gildo», atira-me o dr. Cícero, «você não acha mesmo um piadão a eles?» Eu não consigo dissimular quão módico alvoroço me infundem. E o dr. Cícero não recupera da desolação.

Mas não há crise, evidentemente. Já aprendi a usar de brandura com os semideuses, e chego ao ponto de cometer a maior das abominações: dar-lhes o benefício da dúvida. Não mo apreciam, isso também eu o vejo, como não apreciariam se não se lhes endireitasse aqui um acento, além um género gramatical. Eles querem ter a certeza de que são lidos. Mesmo por alguém desprezível como eu.

A esperteza, isto foi-me contado, já deu a um ou outro para a sugestão, gratuita, mas sucesso seguro à mesa do café, de eu ser o que se esperava: um escritor falhado, ciumento, mau perdedor. Revolta-me a aleivosia, porque nunca poderei provar que se enganam, que nem uma fibra em mim lhes cobiça os descomandos, ou sequer as proezas. Dou por mim, é certo, a divagar, a entrever situações, ou ditos, ou peripécias, que dariam um conto, um romance, mas não saberia como descrevê-los, nem a urgência de tal me acode. Gosto de ver as coisas já meio feitas, quando outros as começaram, e por isso, sim também por isso, tenho tanta satisfação no que ainda deixam para mim. Amo esse discreto acréscimo à façanha alheia. Gosto de amanhar, de mondar, de evidenciar o bom e disfarçar o imperfeito, diverte-me pôr no papel o que o outro queria dizer, e diria, se tivesse feito um esforço, se fosse mais capaz. Mas sei que por nada do mundo – nem sequer para dar uma valente resposta à mesquinhez – eu pegaria da caneta e me poria a forjar uma história. Fiz um filho. Plantei algumas árvores. Um livro, não há hipótese.

When I’m sixty-two

O editor Manuel Alberto Valente, da ASA, fez anos e contou-o assim no blogue do Francisco José Viegas, «A Origem das Espécies», clicável aqui ao lado. Ao homem, os parabéns. Ao poeta, os ouvidos do mundo.

Soneto para os amigos no dia dos meus 62 anos.

Se aqui cheguei foi graças a vocês
Que me tiraram as pedras do caminho
E me deram resposta aos múltiplos porquês
Onde o medo sorrateiro faz o ninho

E por isso aqui estou passados os sessenta
Pejado de tabaco e de vinho tinto
A olhar tranquilo o banco onde se senta
Esse juiz supremo a que não minto

Fui jovem e sonhei, errei, caí
Mas sempre soube que o rumo que escolhi
Só podia ser livre e verdadeiro

Não sei se consegui mas estou seguro
Que tentei construir o meu futuro
Pra que nele coubesse o mundo inteiro

O filho mais desejado

O quarto capítulo de Deus chega no próximo avião é o que vai aqui. De resto, não há pão para malucos.

*

Era isso mesmo. Eu estava a precisar de falar com o Diogo. «Preciso de falar contigo», disse-me ele ao telemóvel ontem à noite. Combinámos ir jantar hoje. Voltei, há momentos, de pô-lo em casa.

O Diogo nasceu quando eu e a Clara ainda andávamos no primeiro enlevo. Queríamos aquele filho, por mais que os meus pais, e a mãe dela, nos chamassem à razão. A Clara tinha dezanove anos, eu vinte e um (passará pela ideia ao Diogo que tem, hoje, a idade que eu tinha quando o fiz?), estávamos ambos desempregados, a viver por quartos, mas loucos de mútua fome. O meu filho foi a criança mais desejada que o mundo viu.

Levei-o ao Snob. Há tempos que lhe andava prometendo um sítio chique. Adoro, ele também, restaurantes de bairro, onde se serve uma comida honesta e dentro dos orçamentos. O meu não é largo, e por isso mantenho com agrado o hábito de condividirmos a despesa, e sei lá se o puto não se safa com mais dinheiro de bolso que eu. Mas hoje, ali, insisti em pagar eu sozinho. Parecia-me justo. Este filho é o maior tesouro que a vida me deu.

«Tens visto a mãe?» Não há um só encontro em que não mo pergunte. «Telefonei-lhe há dias.» É a resposta que ele já sabe, e nunca percebi se o deixa tranquilo, se desconfiado. «Como vai o trabalho dela?», quis eu saber. «Se lhe falas, deve dizer-te.» Tinha razão. Mas era para mim importante ouvi-lo da boca dele. A Clara é uma advogada de renome, e eu sei que o Diogo tem nisso orgulho. Simplesmente, vivendo com a mãe, deve sentir como experimenta ela a fama, e a canseira que a fama traz. Além do mais, andará bem informado do meu pouco contacto com ela. Quando me pergunta «Tens visto a mãe?», o que quer ouvir não é um memorando de falas e encontros, mas a minha confissão da importância que ainda nos damos, ela e eu. Não, não deve ser fácil para ele ver-se onde o pusemos. E por muito feliz me poderei ter, se ele ainda não percebeu que aquilo que, no fundo, me interessa é descobrir se, na vida dela, há já, ou não, algum outro. É rasteiro, eu sei. E esta ansiedade, esta chã indiscrição, contaminam aquilo que mais puro eu desejaria manter: a relação com o meu filho. Queria poder aguentar-lhe o olhar, e só ter a mostrar, no meu, uma perfeita candura, de quem ainda não acreditou nessa rara oferta de alguém me chamar pai. Enfim, e Deus o queira, se calhar só complico.

Falámos – falamos sempre – como dois amigos. Não confidentes, mas melhor do que isso ainda. As nossas conversas são a mais serena das desordens, e nem um nem outro parecemos desejá-las diferentes. Ele fala com a mesma dedicação da electrónica ou das namoradas, eu distraio-o com os meus autores e com planos de férias. São famosos entre nós os meus planos de férias. Já dei a volta ao Mundo em projectos, e posso com a mesma convicção expor-lhe o indispensável jornadeio a Katmandu, como enunciar a urgência de se demandarem as Ilhas Virgens. Eu não sei onde sejam as Ilhas Virgens, mas arrisco supor que o Diogo faria hoje as malas para irmos lá.

Outras vezes, toma-nos a nostalgia. Somos dois náufragos, com algum exagero. «Sinto-me, às vezes, tão velho», diz ele. Sim, filho, na tua idade também eu me sentia. «Ainda não fiz nada que se veja», insiste, magoado. Aqui, não posso dizer-lhe a verdade. Que, por muito que se viva, e se produza, não mais ela nos larga, essa convicção de nunca fazermos coisa que mereça mencionada. Mas o Diogo tem direito à ilusão, a de um dia vir a dizer que sim, que algo valeu a pena. E portanto calo-me. Ou lembro-lhe alguns méritos entretanto bem demonstrados. Ou pergunto-lhe se é assim tão indispensável fazer na vida coisas. «Mas nunca te apeteceu voltar atrás?». Quando ele me pergunta isso, sinto-me mais aliviado. Em vez de dar a resposta que ele pretenderia, a do pânico que dia após dia nos vai capturando, entrego-me ao pouco comprometedor exercício de construir cenários, de forjar-me uma outra biografia. Assim não se educa um filho, eu sei. Mas falta saber se alguma vez obteve ele de mim senão isso, o mínimo dos mínimos: alguma atenção, um tudo-nada de segurança, o pãozinho. E, depois, eu posso invejar-lhe a juventude, mas com ela eu perderia outra vez este aconchego que é o ter vivido, o saber cada vez melhor onde estou, do que sou capaz, o que é legítimo esperar, o que, por isso, ainda vale um esforço. Ele é novo. Mas ser novo é uma grande tristeza. Isso também já ele o descobriu.

Enquanto aguardávamos a sobremesa, contei-lhe o essencial do ambiente que se vem formando na Água Líquida. Nunca me alarguei, diante dele, em pormenores. Ele conhece as pessoas, das vezes em que vai apanhar-me no carro ao trabalho. Engraça com a Micas (e quem não engraçaria?), e eu sei, porque vejo, que entre ele e o Luciano há um nítido à-vontade, em que não desejo interferir, que direito teria eu aliás. Fui, portanto, sucinto no que relatei. Pouco comentou, e quase só isto: «Acho que tu provocas sempre invejas». Ia dizer-lhe que era, palavra por palavra, a apreciação da Noémia, mas teria de explicar-lhe quem é a Noémia, e ainda não me parece o momento. Quis, sim, ouvi-lo mais sobre esse misterioso tema da inveja que me reservam, forneci mesmo exemplos provocadores. Mas o meu filho não é parvo. Teve a noção de que expressara já o definitivo.

O vinho foi o evento da noite, escolha que é, sempre, do Diogo, e eu perguntei, meio a brincar meio sincero, de que me servia um filho se não percebesse de vinhos. Riu, e só entendeu do meu dito o que mais o elogiava.

Sobre o assunto de que tanto necessitava falar-me, e que ali nos tinha trazido, nem uma palavra.

Inversão? Perversão?

Da crónica de Rui Tavares, hoje no Público:

«Se falo em “carreira” é porque Durão diz na mesma entrevista [ao DN e à TSF] que não gosta da expressão “carreira política”. Declarações portentosas vindas de quem, sobre a Guerra do Iraque, diz ainda o seguinte:

“Não temos que estar de forma nenhuma arrependidos da posição que tomámos. Portugal não perdeu nada, também na Europa, com isso. Repare, depois das decisões que tomei, fui convidado a ser presidente da Comissão Europeia e tive o consenso de todos os países europeus. O que demonstra que o facto de Portugal ter tomado naquela altura aquela posição não prejudicou em nada, em nada, a imagem de Portugal junto dos seus parceiros europeus.”

Durão Barroso pode não gostar da expressão, mas faz da sua carreira política a medida de todas as coisas. Aquelas frases sugerem bem como funciona a sua cabeça e a de tantos políticos como ele. Portugal não tem que estar arrependido do apoio à invasão do Iraque. Porquê? Porque “não perdeu nada com isso”. Não perdeu o quê: honestidade, credibilidade, autoridade moral? Nada de tais coisas; foi a nossa “imagem” que não sofreu. E como sabemos que a nossa “imagem” não sofreu? Porque a carreira de Durão o “demonstra”.

Esta é a mais pura inversão moral. A carreira de um indivíduo é a medida da imagem de um país. A imagem de um país é mais importante do que o seu comportamento. E a opinião dos parceiros – em geral mais ricos, poderosos e brancos – é mais importante do que o destino de gente que é menos qualquer dessas três coisas.

Muitos anos, muitos jornais e muitas crónicas depois, pergunto-me se será demasiado ter uma palavra sobre os quinhentos mil mortos e quatro milhões de refugiados desta guerra. Mas afinal, os portugueses não devem preocupar-se com isso, porque Durão Barroso veio depois a ser nomeado para um cargo importante. Mais alguma coisa interessa?»

Anti-elegia da Beira-Tejo

Um sonho de Outono: sermos editores de José Luís Tavares

*

Vejo-os balouçando nas patas trôpegas,
palmípedes vorazes sob a garoa febril.
Ardeu-se-lhes a juventude nas plumas desgrenhadas
e já nem este mijo outonal os faz recear a pestilência
fosforescendo como um desígnio cautelar.

A tantos foram alimento por tardes soneteiras,
mas agora que o céu oculta vozes e cores
e deus essa babugem cantante,
quem acende nas margens hesitantes
o tumulto irmão da ira?

Ó aves, que um falcoeiro outono
difracta em sarro, nuvens, fogueiras,
agora sois apenas ténues fotogramas
iluminando a insónia — o tempo,

esse relojoeiro cego, quebrou vosso encanto;
baixou sobre vós a heráldica da dissolução;
embora a reverência compassiva cascateie
louvores em jacentes metros doutrora.

Vós, aéreos náufragos, concedei-me o passo
vacilante com que à tarde o frio trazeis
em vossos desdoirados bicos — ficará,
decerto, o azul doutra lembrança,
coloridos prospectos apreçando o sol
olhando lisboa cinza agora sobre o rio.

Charmes do ócio

Sob a insustentável pressão de três Costas – o JP, o Confúcio e um discreto indivíduo que paira benfazejo sobre o Aspirina – aqui vai mais um capítulo, o terceiro, de certo romance in fieri. Não se promete mais nada, nadinha.

*

Vá-se lá entender como estas coisas transpiram. Haverá, terá de haver, leis a reger os humanos. A ordenar o vaivém no palco dos nossos actos, mesmo os mais medidos, mesmo os mais falhados. Como compreender, de outro modo, que um autor modestíssimo, e, para dizer tudo, uma futilidade de cima a baixo, como é o Damião Marreiros, se tenha permitido os tons insolentes com que esta tarde me filou? Eu havia passado o fim-de-semana a aparelhar-lhe as cenas do romance, tentando alentar os parcos méritos de um ou outro episódio, esbatendo a brusquidão de golpes de teatro, estranhamente abundantes. Nunca rejeitei nenhum original, por mais desesperado de formas. Tudo quanto me veio ter às mãos acabou publicado. Cheguei a lutar, contra toda a coerência, contra toda a sanidade, pela obra mais disforme, o enredo menos aconselhável. Quando, há três ou quatro semanas, me trouxe O Olhar do Ciclope, foi um mesureiro, suplicante, Damião quem insistiu em narrar-me «em poucas palavras» o essencial da intriga. Meia hora levou no intento, surdo ao meu desejo, ao meu quase direito, de vir a ler-lhe a história com um mínimo de lastro, com algum resíduo de surpresa. «Só terá a ganhar com isso, Marreiros.» Não me ouviu. E daí, sou sincero: sem esse dengoso relato, ter-me-ia sido incomparavelmente mais difícil entrar pelo desnorteio a que ele chamara ‘romance’. 

Pois bem, hoje, foi um outro Damião Marreiros que me entrou no gabinete. Sim, é verdade, tenho desde há pouco um gabinete. A última desavença com o Luciano teve o bom efeito de se me dar finalmente um espaço próprio, onde possa sem constrangimento, meu e deles, receber os autores, expor-lhes o que melhor entendo, ouvir-lhes as dúvidas, aparar-lhes as defesas. Era meu hábito levá-los para o café, onde a conversa, e mesmo a discussão, tinham o charme do ócio, e onde estávamos, eu sobretudo, ao abrigo das antenas do Luciano, da Irene, do Marcos, que nunca perderiam uma observação, uma réplica.

«Você estragou-me o romance», prorrompeu o Damião, cruzando a perna. A Micas tinha-nos trazido dois cafés. Fiz-me de parvo. «Acha?» A brandura não o desfez. «Está visto que não entendeu nada.» Escolhi alargar a volta, sabendo-se que pode levar tempos a convencer um autor. «O que é que o senhor Marreiros acha que não entendi?» «Nada», atirou, «o melhor escapou-lhe.» «O melhor?» «Sim, o que a Joana vai fazer na casa de praia. Ela nunca foi lá, não percebeu? Ela nem sabe onde a casa é. São tudo sonhos. O Filipe já morreu.» «O Filipe já morreu?» Do meu espanto escorria sinceridade. O Damião destraçou as pernas. «Logo vi que você…» E não foram as reticências, foi uma atrevida, como dizer, uma impune ameaça, o que logo movimentou todos os meus alertas. Confessei: «O senhor é livre de ter em conta as minhas propostas. Eu não sou aqui patrão.» Logo me achei defensivo em demasia, segredei-me que, para insolente, insolente e meio. Só que eu ainda não digerira o inesperado do episódio, daí aquela vacilação. É isso, ninguém é perfeito.

Facto é que o Marreiros, que vinha para a guerra, não previra o meu recuo. «Deixa-se então o que eu entreguei.» Mas era-lhe audível a convicção abalada. Também ele, depois da minha trabalhosa leitura, intuíra fraquezas na narrativa. Simplesmente, o mundo teria que ser muito melhor do que é, e o Damião mais esperto do que nasceu, para sermos poupados ao que então sobreveio. Vi-o levantar-se, reunir as peças, dirigir-se à porta e, já com a mão no trinco, atirar: «Não se apoquente. Mais dia, menos dia, você troca com o doutor Malta. Ficam-lhe as vírgulas. Espero que se divirta.» E, antes que eu pudesse atinar com um gesto, com um tom para a voz, desapareceu.

Olhei-me dentro de mim, e vi-me calmo. Coisa inaudita, já que, por bem menos do que aquilo, costumo dar comigo em pânico. Mas não. Em qualquer esconso da mente, algo me sugeria que, na vida, havia coisas mais atrozes do que a missão que o Luciano pudesse desempenhar na Terra. Que, ao fim e ao cabo, a minha labuta, se era compensada com o lisonjeiro ascendente que me cabia, não me deixava menos esgotado, deprimido, envergonhado por interposta pessoa. E, maior mal ainda, ao mesmo tempo que, fim-de-semana após fim-de-semana, eu aprontava best-sellers, o meu casamento definhava e o meu filho crescia sem mim. Não, a Clara nunca mo lançou em rosto, mas as minhas façanhas literárias clandestinas tiveram sempre de parecer-lhe mais absorventes do que a existência dela. E só espero que o Diogo, vinte e um anos ajuizados, tenha aprendido a distinguir entre o comedido carinho que sempre lhe dei e um autêntico desinteresse. Mas nem disso estou certo.

Os olhos do abutre

A pedido da Sininho, sob pressão de várias famílias, e desvairado com os elogios que cobriram o primeiro capítulo, aqui coloco o segundo de Deus Chega no Próximo Avião. Mas não se promete mais nada.

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Vai fazer em Abril oito anos que vim para a Água Líquida. Entrei pela mão do dr. Domingos Pompeu, que Deus tenha, um homem bom como poucos conheci, e que me foi buscar ao Observador, me «comprou», expressão muito dele, chefe de uma equipa reunida a dedo. Eu estava bem no jornal, estava mesmo nas minhas sete quintas, era conceituado, «adorado», no tocante dizer da Micas, enfim não havia razão de mudanças. Via-me ganhar tranquilos cabelos brancos – e ganhei alguns – naquele cubículo do terceiro andar onde me cabia passar a pente fino a edição. Todos me estavam gratos para a vida inteira. É que ninguém resiste à imagem do director lendo a nossa peça, exactamente a nossa peça, e dizendo consigo «Dá-lhe um jeito, este sacana!». Eu era o copydesk mais invejado de Lisboa, valia uma fortuna. E foi essa fortuna que o excelente dr. Dominguinhos sacou um dia ao banco.

A transferência, se deu aquele brado todo, deu também horas amargas aos proprietários do Observador. O semanário mais apresentável do País – da Península, dizia-se – passou a sair à rua falho dos brios que os meus olhos de abutre asseguravam. Dez anos naquilo levei, contas redondas. Fui descoberto aos vinte e quatro, e nunca mais o jornal foi o mesmo. Tudo me caía sobre a escrivaninha, tudo me invadia o ecrã. «O Gildo passa os olhos por isso», «O Gildo depois ajeita». Era o meu estandarte, pudera transformar-se no meu pesadelo. Consegui meter lá a Viviana e o Artur, dei-lhes um curso nos meus segredos, e pude um mês por ano afastar-me para o Alentejo, com a Clara e o Diogo.

Na Água Líquida fui recebido em triunfo. A editora saíra da zona de perigos, e achava-se naquela etapa eufórica em que até os maus autores acabam contagiados. Diante da minha secretária se sentaram um dia, encolhidos, minguados de palavras, três actuais best-sellers. Fui parteiro de outra gente, mais modesta, mas mesmo assim hoje meninos do meu orgulho. Tive, até este momento, o gosto de vê-los, a esses, salvos do desvaire que toma aos outros, os que, ainda os capítulos finais estão por pensar, têm já edições esgotadas. Quanto escritor não há entretanto por aí – dói-me, só de nisso pensar – que vai ler a escolas os capítulos mais inteligíveis do seu livro, deliciando os putos com a minha fluência, com a minha inventiva. Nenhum irá jamais confessar que fui eu quem, à débil trama primitiva, ao tosco da locução, trouxe luminosidade, deu robustez. E, se, em parte recôndita do cólofon, um ou outro consentiu que se assinalasse, em tipo seis, tipo oito, «Revisão de Hermenigildo Vilena», mesmo isso desaparece, nunca descobrirei por que artes, às edições seguintes.

Simplesmente, jamais me deixei tomar de vinganças. Sou um tipo discreto, sempre o fui, e retiro gozo suficiente de uma escondida contribuição para glórias alheias. Sem descanso, continuarei a fazer, também, o trabalho miudinho, ir verificar uma data, um nome de personagem ou localidade, a grafia exacta de um barbarismo. Cuidarei de que as estações do ano se sigam coerentemente, de que as personagens não mudem levianamente de nome, de profissão, de estado civil. Irei sempre ver se tal marca já existia à época, se tal designação já fora popularizada, se aquela estação ou linha de metro já estava aberta, se o tempo de uma viagem de carro combina aceitavelmente com as distâncias. Continuarei a estimular a coerência no relato, no retrato íntimo das personagens, no que se pode saber e no que se deve ignorar. Quando um livro sai do meu computador, sai irreconhecível. Mas era aquele o livro com que o escritor sonhava, o livro que agora chamará seu, com naturalidade, com infantil confiança. Aí está um prazer que ninguém me arranca.

Mas, pobre de mim, não será dos autores que vai esperar-se que refiram, em entrevistas, o senhor que lhes cozinha e tempera as obras-primas. Todos terão sempre uma escusa magnífica, e eu serei o primeiro a aprová-la. É que o meu benemérito ofício não tem, nunca teve nome. Porque, como chamar a esta minha função, tão rarefeita, quase incorpórea? A de «redactor»? A de «revisor»? A de «conselheiro redactorial», como a Noémia gostaria de me titular? A de «editor», pondo-lhe a melhor pronúncia britânica? O dr. Cícero Pompeu apresenta-me às visitas como seu «coordenador literário». É, de tão inócuo, quase adequado. Sem título a que segurar-me, sem categoria com que se me defina aos olhos das gentes, eu faço meio mundo feliz, e, tranquilamente, não existo.

O poder de encaixe das pessoas

Um romance anda a fazer-se. Há-de chamar-se Deus chega no próximo avião, mas não me comprometo. O primeiro capítulo será como vai aqui. Mas sem este visual de blogue.

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Nunca hei-de perceber porque é que, tarde ou cedo, toda a gente rompe comigo. Até os mais íntimos, até os mais indiferentes. «Não dês as culpas logo a ti», consola-me a Noémia. Por vezes, insiste: «Tens tantas qualidades, tantas! Mas é isso também, acho que é isso, o que fere as pessoas.» E explica melhor: «Elas não aguentam o ciúme que lhes fazes.» A Noémia tem sempre estas profundidades.

A sério. Se há coisa que não entendo, são os invejosos. Eu posso ter, e de certeza tenho, todos os outros pecados capitais, mas a inveja é-me estranha. Invejar, invejar o quê? O que eu quiser conseguir, hei-de tê-lo por mim próprio. E se não, não. O mundo não acaba aí.

O caso do Luciano Malta, sirva esse exemplo. Jamais me apanhou a tratá-lo mal, tive sempre o cuidado de envolver em modos afáveis as reservas ao trabalho dele, convidei-o até várias vezes para almoçar. Era uma maneira de falarmos da família, dos gostos, da sua Constância natal, que tanto refere e onde tem ainda casa, falarmos enfim do que calhasse, tudo menos do trabalho. Porque, julgo eu, é assim, nesse terreno pacato, que os entendimentos crescem. Pois disse-me sempre que sim senhor, mas achou mil desculpas para nunca irmos tomar sequer um café.

E, ontem, foi o que se viu. Pôs-se aos berros, disse inconveniências, tudo diante dos colegas, e não me admiraria que na direcção lhe estivessem a ouvir os mimos. Por mim, fiz quanto pude para acalmá-lo, disse-lhe duas ou três vezes que sim senhor, tinha razão nisto e naquilo, fui mesmo ao ponto de propor trocarmos de funções: eu fazia as correcções mais miúdas, as vírgulas, a ortografia, mexia só em algum vocabulário, ele que amaneirasse depois os textos à sua vontade, falasse com os autores, decidisse com eles o produto final. Procurei ser desinteressado, mostrar que a minha posição ali não era tudo na vida, bem sabendo que a Irene, atenta ao ecrã, estava a seguir-nos a conversa, a sonsa, ansiosa por ver se era desta que eu me espalhava. Pois tanto me valia ter estado calado. Quanto mais terreno eu sacrificava, mais o senhorito perdia as maneiras. Que eu era um cínico, um impostor, um pedante, que hoje em dia «as letras do burgo», termos dele, não estavam à espera das camisas-de-forças em que eu sonhava amarrá-las, e que não era já a primeira vez, nem a segunda, que um autor da casa tinha ameaçado levar os originais a outras paragens.

«Luciano», disse-lhe eu, e quis dar a impressão de que procurava ainda as palavras. «Se as coisas, para você, estão já nesse pé, parece-me altura de a direcção ser avisada.» Parou o gesto, recuou, quase perdia o equilíbrio. Depois, desgrenhado, espumando incapazes raivas, despediu para lado nenhum a sugestão definitiva: «Vá pró car…». Deixou o dito assim, e desembestou dali, enquanto da pasta se lhe perdiam canetas de várias cores. A Irene ergueu ao céu os bem desenhados punhos: «Que mal fiz eu a Deus…» Mas também a eloquência lhe ficou por aí.

Ia eu buscar um café ao andar de cima, quando o dr. Cícero, no corredor, me barrou o caminho. «Chegue aqui». E fez-me entrar no gabinete. «Quer tomar alguma coisa? Toma, que vão sendo horas do meu uísque.» Senti que apreciaria que lhe apanhasse a graça, e eu fiz-lhe a vontade, embora sem o talento que tanto me favorece nestas ocasiões. «Você anda stressado.» Disse-mo, e logo sorriu, enquanto servia generosamente os dois copos. «Esse stressado, aposto, não lhe saía vivo das unhas.» Corrigiu: «Das mãos.» É esta a minha triste fama: a de puritano, a de castigador dos desbragamentos de linguagem. Não, nunca saberão eles a tolerância a que, desde há muitos anos, me venho obrigando.

«Sabe, Gildo», meditou ele, «o poder de encaixe das pessoas…» Mas foi sentar-se, mais propriamente caiu na cadeira, e ergueu o copo com uma indecisão que denunciava outros uísques no bucho. «À sua, Hermenigildo.» «À nossa, doutor Cícero.» O que era cerimónia a mais nas nossas relações. E o doutor atirou, fixando os infinitos, e englobando o Luciano Malta, a editora, a avenida dos Defensores de Chaves, o planeta, a parte reconhecível do universo: «Não ligue, Gildo. Até lhe ficava mal. Você está muito, mas muito, acima disto tudo.» Ficámo-nos olhando, como se algo de decisivo tivesse sido suspenso. Segundos depois, desatávamos a rir, regalados. Já só se falou do campeonato.

Conta-me o teu sonho

Não sei se há blogues de sonhos. Daqueles assim em que o mantenedor, ou a mantenedora, logo pela manhã (e, Planeta afora, a todo o instante é manhã) nos conta em que andou metida, ou metido, nas horas anteriores.

Não sei, repito, de nenhum blogue destes. Mas hão-de existir, estatisticamente – isto é, com base no que sabemos desta humanidade e desta bloguítica.

Confessar os sonhos havidos pode ser tentador (quem nunca interferiu na tranquilidade matinal de alguém com um «Tive esta noite um sonho maluco»…), mas não consigo conceber que, mesmo numa relação íntima (e sobretudo numa relação íntima), se contem os sonhos como quem responde a um «Que tal hoje o trabalho?». E assim é que está bem. Dentro da maior intimidade partilhada, é preciso que exista um espaço onde se esteja, e se fique, garantidamente sozinho.

Isto quanto aos sonhos «desta noite».

Mas há os sonhos recorrentes – os que se contam encetando por «Eu costumo sonhar com…» – e esses são bem mais inócuos, e participáveis. Vou contar um meu.

Um razoável número de sonhos, situo-os em bairros periféricos de Lisboa. Bairros que, estou perfeitamente convencido, não existem. Mas ando por lá horas perdidas, entretido em actividades de toda a ordem, que não vêm aqui ao conto.

Olho para a planta da cidade – que conheço como à palma da mão – e não sei sequer onde colocar tais subúrbios, quase sempre de um urbanismo irresponsável, mas essa é a parte menos original. Este, um sonho recorrente, nem bom nem mau, e às vezes divertido.

Mas, certa noite, aconteceu-me o reverso disto tudo. Sonhei-me num local da cidade, que efectivamente não conhecia, algures ao Alvalade. E que sucedeu? Tempos depois, em  visita real, ele revelou ser, muito pormenorizadamente, como eu o sonhara. Ruas, casas, passeios, pequenos parques, e até um arco.

E pronto, paro aqui. Isto, sonhos, é mesmo tentação.

Cobaias de teorias

Em sintaxe clubista: sou bem mais do Rui Tavares (e por isso um tanto isolado, nesta casa) que da Helena Matos.

Mas ontem a senhora – no debate dos dois sobre a inteligência dos desfavorecidos e sobre a escola pública, que hoje prossegue no Público – escrevia o que segue, e que é muito, e muito, acertado:

Os filhos dos pobres não são nem mais nem menos inteligentes que os filhos dos ricos. Tiveram sim foi o azar de os seus pais não ganharem o suficiente para os poupar a esse papel de cobaias de teorias que tanto vêem na ignorância o estado supremo da perfeição igualitária, como entendem que aprender tem de ser divertido e fácil.

Lembram-se do eduquês? Lembram-se dos destravados que, no ministério da educação, comandam à distância as salas de aula, os seus sujos laboratórios para relatórios tão limpos?

Pois é. Era disto que se falava.

Musiquinhas deprimentes

Quando acabam as «Conversas» com Marcelo Rebelo de Sousa, corro para o aparelho e baixo o som. Para fixar algum pensamento mais útil, mais esclarecedor? Para trocar impressões com a companhia ouvinte? Não e não. Simplesmente para apagar o tune que ali vem. Deprimente a mais não poder.

Quem será o marau (virá no genérico?) que, numa manhã de puro azar, compôs, talvez – quase certamente – por bom dinheiro, aquela aflitiva melopeia?

Não é, sequer, caso único na minha lida semanal. A bizarria sonora que precede e segue o «Eixo do Mal» é, se possível, ainda mais psicótica. Outra corrida sala afora, se bem me entendem.

Sei do que falo. Também compus coisas. Não, não estou a sugerir nada. Nunca ligaria a minha arte a tais programas. Era mau para mim e para eles. Mas, como está, sofro eu sozinho.

Parece justo?

Pode ser Pepsi?

Não. Isso nunca mo perguntaram. Porque também nunca pedi uma Cola. Mas tenho ouvidos, e sei, e não posso ignorar. 

Há todavia coisas, outras coisas, que não quero, por favor, voltar a ouvir. Aqui vão algumas. 

Faça de conta que a casa é sua.

O que tem que ser tem muita força.

Ah, no meu tempo…

Não é para fazer de ti criado.

É diurético.

Então essa barba não se faz?

[Numa livraria] Está esgotado.

Como dizem os brasileiros.

Isto é vento da Serra da Estrela.

Posso ficar-lhe a dever 10 cêntimos?

Mas, se calhar, sou eu só a ter destes miudinhos, mas quão decisivos, tabus.

ASPIRINAB.COM

Amigos, Senhores e outros Mortais,

Lamentamos interromper o vosso serão.Está o Tiago Martim a lavar a louça, está a Soraia Vanessa a deitar os miúdos, está a Dona Gilda quase quase a acabar o sodoku, está o Doutor Gustavo, de fones postos, na lição 7 do harpsicórdio – e vimos nós desassossegar tão amável mundo. Custa-nos sobretudo interromper o Gato Fedorento, que tão promissoramente nos precedeu na passagem destas bloguíticas paragens para sítios se possível ainda mais vistosos. Mas, vai ver já, a interrupção tinha mesmo de ser.É que, Senhores, Mortais e outros Amigos, nós estamos noutra. Percebeu bem: o Aspirina está noutra. Onde? Onde? Isso agora… Para achar coisa apelativa, investigámos, estudámos, suámos, fizemos três biliões de operações por segundo. Mudávamos os parâmetros, fazíamos rotação de algoritmos, e o resultado era sempre, sempre o mesmo. Este:

aspirinab.com

Só. Só assim. Nem uns dâblius para uma última hesitação, um último desvio.

Rendemo-nos, pois. Migrámos. Transumançámos. Com armas e bagagens, lá fomos instalar-nos. Já aqui estamos. Já aqui estávamos. Foi o segredo mais bem guardado do século. E ainda ele é uma criança.