Uma multidão audível, e já ameaçadora, à porta do Aspirina obriga-me a entregar mais este capítulo de Deus chega no próximo avião. Mas eu, prometo, resistirei.
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Às vezes desejaria ser um desses espíritos rasos, para quem o mundo é uma paisagem de enlevos, sem fronteiras nem conexões, de enlevos trazidos pelo vento, pelo vento arrumados, e isso um dia, e outro, e mais outro. Porque é que, pergunto-me, fui eu feito de perspicácia, porque trespasso eu os dizeres alheios, que vantagens me supôs a vida ao carregar-me com a imparável percepção de um gesto, de uma hesitação, de um silêncio? Quanto mais leio acerca dos sobredotados, mais evidente se me faz que injustiça há neste excesso de penetração, neste estontecedor discernimento. Tento não ver, proíbo-me de raciocinar, esforço-me por mirar só as superfícies, só o que de contingente, de volátil, apresentam as coisas e as pessoas. Por vezes, penso que consegui. E tenho instantes de paz, sinto-me o anjo cego, o boi na paisagem. Dura instantes. E logo acordo, ébrio de lucidez, outra vez desgraçado.
Faculdades excepcionais poupam muito, é certo. Não preciso de ler um manuscrito completo, nem um capítulo, às vezes nem já o primeiro parágrafo inteiro, para saber, de ciência feita, o que aquilo vale, que investimento meu se justifica, que hipóteses existem de o autor alinhar com propostas. Mas exactamente esta pasmosa capacidade cria as fricções que depois se vêem. Eu não estou sempre disposto a engonhar a cena, a subtrair a choques o incomensurável ego dos romancistas. E, sei bem, é isto que não se me perdoa. O eu não poder, e não querer, camuflar a rápida apreensão que tenho do conseguimento alheio. «Você nunca dá chances a ninguém», rosna-me o Luciano. É a pura verdade. E pior seria – mas isso não o adivinha ele – se eu não fizesse o arrasante esforço de acompanhar, aqui e além, o miúdo passo dos meus semelhantes.
Mas se possível ainda mais doloroso é este contacto tão directo, que é o meu, com o íntimo dos autores. Vê-se a milhas que passaram meses afeiçoando um psicodrama ou um ajuste de contas. Ou os dois, já que o ajuste se faz às vezes com o agreste passado que lhes calhou. Não são os mais legíveis, não são seguramente os mais recreativos. Além disso, e sou o primeiro a compreendê-lo, este exercício de honestidade e de exposição deixa-os susceptíveis em extremo, quase intratáveis. Vejo então como missão minha protegê-los contra si próprios. Nem sempre com êxito.
E é assim que – exemplo ao acaso – ando, há bem quatro anos, nas mãos de uma loura escrevente, que eu venho estilisticamente medicando, e é senhora de um psiquismo vertiginoso. «Você aponte o que quiser, o problema é seu», lançou-me uma tarde destas a Úrsula Magno. Uma voz sonora e bem timbrada que, pobre de mim, tanto mexe comigo. «Mas não se muda nada, senhor. Cada palavra, ouviu, cada palavra sai-me muito daqui.» E estrafegava o peito, com uma auto-imagem de todo invejável. Em termos velados mas audíveis, ameaçara há tempos, ela também, ir bater a outras portas. Não foi o que fez agora. «Para mais, e o sôr Gildo sabe isso muito bem, a crítica tem apreciado os meus livros.» Quando outros argumentos falham, ou a vontade de produzi-los, é fatal o dizer dos críticos. Neste caso, nem era muito verdade. Tirando a desaforada Natália Rosas, do Mundo, já poucos recenseiam, e ninguém com entusiasmo, as novelas anuais da pseudónima Úrsula. Mas, exactamente, eu não quero, nem sequer com as minhas reservas, animar um jogo perverso. Não são os júbilos ou os desprazeres da crítica o que salva um livro ou lhe rouba as qualidades. Mesmo as obras que eu tornei apresentáveis não foram sempre descobertas, e, se descobertas, ponderadas o suficiente. Respeito a crítica, sei a espiga que é ler certas produções, mas não aceito chantagens. Simplesmente, a Úrsula não me era interlocutora, como nunca me serão interlocutores esse mediático Rafael Sirais, ou a premiadíssima Antónia Fontouro, ou o misterioso, e por isso, tão requerido Olavo Junqueira, os pilares da casa. «Mas, ó Gildo», atira-me o dr. Cícero, «você não acha mesmo um piadão a eles?» Eu não consigo dissimular quão módico alvoroço me infundem. E o dr. Cícero não recupera da desolação.
Mas não há crise, evidentemente. Já aprendi a usar de brandura com os semideuses, e chego ao ponto de cometer a maior das abominações: dar-lhes o benefício da dúvida. Não mo apreciam, isso também eu o vejo, como não apreciariam se não se lhes endireitasse aqui um acento, além um género gramatical. Eles querem ter a certeza de que são lidos. Mesmo por alguém desprezível como eu.
A esperteza, isto foi-me contado, já deu a um ou outro para a sugestão, gratuita, mas sucesso seguro à mesa do café, de eu ser o que se esperava: um escritor falhado, ciumento, mau perdedor. Revolta-me a aleivosia, porque nunca poderei provar que se enganam, que nem uma fibra em mim lhes cobiça os descomandos, ou sequer as proezas. Dou por mim, é certo, a divagar, a entrever situações, ou ditos, ou peripécias, que dariam um conto, um romance, mas não saberia como descrevê-los, nem a urgência de tal me acode. Gosto de ver as coisas já meio feitas, quando outros as começaram, e por isso, sim também por isso, tenho tanta satisfação no que ainda deixam para mim. Amo esse discreto acréscimo à façanha alheia. Gosto de amanhar, de mondar, de evidenciar o bom e disfarçar o imperfeito, diverte-me pôr no papel o que o outro queria dizer, e diria, se tivesse feito um esforço, se fosse mais capaz. Mas sei que por nada do mundo – nem sequer para dar uma valente resposta à mesquinhez – eu pegaria da caneta e me poria a forjar uma história. Fiz um filho. Plantei algumas árvores. Um livro, não há hipótese.