A polémica com a nomeação de Pedro Adão e Silva vem de uma peça do Porto Canal que tem tanto de inusitado (não se conhece outro caso de ataque político a outrance com origem nesse meio de comunicação) como de alarve: Editorial – Pedro Adão e Silva – comissário das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. A canalhice dedica parte generosa da sua duração a pintar o alvo como “socrático”, assim apagando a veemente e sistemática denúncia que o Pedro fez da conduta moral de Sócrates desde que este foi detido e admitiu ter uma relação com o dinheiro na sua posse que era causa para suspeitas legítimas de ilícitos. E chega ao ponto de ir buscar o blogue Câmara Corporativa como combustível da associação. Noutras réplicas deste modus faciendi onde tropecei, casos da Joana Amaral Dias e do João Miguel Tavares, a munição mais grossa continua a ser o carimbo “socrático” e igualmente se traz o Corporações à liça no exercício de tentar macular o Pedro. Significa isto que os caluniadores profissionais exploram a contaminação por proximidade no passado e valorizam como difamação poderosa qualquer ligação a esse blogue e/ou ao seu autor (que assinava com o pseudónimo “Miguel Abrantes”). Mas como é que um simples blogue – um blogue, foda-se caralho! – ganhou tal fascínio na pulharia? Há neste fenómeno algo que raia o mistério mas só até nos recordarmos que foi o Pacheco Pereira o principal responsável por uma diabolização que em 2021, a caminho dos seis anos depois de o CC ter acabado, continua a atrair tratantes e videirinhos.
É preciso recordar. Quando o CC começa a ser visita diária obrigatória para os direitolas da comunicação social e dos gabinetes políticos, algures em 2008, isso coincide com a vitória de Manuela Ferreira Leite no PSD (assim adiando a chegada do especialista em aeródromos). Tal tem duas consequências que se ligam directamente com o CC: (i) Cavaco inicia uma oposição aberta e desvairada ao Governo de Sócrates, a qual dará origem a sórdidas golpadas mediático-judiciais nunca antes vistas em democracia; (ii) Pacheco Pereira sobe a conselheiro-mor da Manela e alinha com o vale tudo cavaquista. Ora, eis a paisagem mediática ao tempo: Correio da Manhã e Sábado, Sol, Público do Zé Manel, Expresso do Monteiro, TVI do casal Moniz, SIC do Balsemão, do Crespo, do José Gomes Ferreira, do mano Costa, RTP da Judite de Sousa e do José Rodrigues dos Santos, DN do Marcelino e saco de passistas na redacção, TSF do Baldaia e seus editoriais, jornal i do Martim Avillez, e ainda o grupo Rádio Renascença. Fica de fora o JN e a imprensa regional, mas nem aqui se encontrava um alvo que permitisse complementar o que já se estava a fazer desde 2007 com os “casos” do primeiro-ministro, início da vingança da Sonae por Sócrates ter resistido à tentativa de tráfico de influência exercida directa e pessoalmente por Paulo Azevedo na OPA da PT. A direita dominava (como continua a dominar) todo o espaço mediático sem sequer se vislumbrar um oásis de apoio editorial socialista. Ter aparecido um blogue que conseguia desmontar as mentiras e manigâncias do PSD, CDS e sua legião de jornalistas, para mais tendo um autor que preferia usar um pseudónimo, era simultaneamente uma fonte de ódio e de êxtase. Ódio, porque se viam expostos como os reais trastes que eram (e são). Êxtase, porque a situação era perfeita para lançar as mais estouvadas teorias da conspiração. E foi exactamente o que o Pacheco Pereira consagrou, recebendo dinheiro da Cofina por tal, quando publicou A Frente da Calúnia. Só pelo que deixou assim no espaço público (embora haja toneladas de fruta podre igual lançada por si antes e depois deste condensado de alucinações), por vir de alguém com o seu trajecto e com a responsabilidade política de então (era deputado), merece a camisola amarela dos caluniadores profissionais em Portugal – o CC continua com acesso público aos seus conteúdos, desafio qualquer um a ir lá buscar uma calúnia.
A situação parece ao alcance do entendimento de um bebé acabado de nascer. Se lhe pedíssemos para comparar o poder de influência política, social e eleitoral dos meios de comunicação social profissionais nas mãos da direita com o de um blogue lido por uns poucochinhos de carolas da blogosfera política, metade deles da direita e a outra metade de uma esquerda já com o seu voto cristalizado, o bebé desataria num choro desesperado, como é natural. E por dentro ficaria a pensar “Minha nossa senhora do Caravaggio, vim parar ao planeta dos taralhoucos!”. Porém, a diabolização do CC realmente pressupõe haver uma massa relevante de taralhoucos à disposição de figuras como o Pacheco Pereira, a Joana Amaral Dias, o João Miguel Tavares e as alimárias do Porto Canal que se prestaram ao infame serviço de tentar assassinar o carácter do Pedro Adão e Silva. Este registo importa como retrato da comunidade que somos, e especialmente importa por causa do que estamos a ver na escaramuça entre o JMT e o PP. É que podemos ler isto num desses episódios:
«[...] havia falsificações, fake news, com a publicação pela Legião Portuguesa e pela PIDE de documentos falsos, disfarçados de verdadeiros. Era uma prática muito comum, que abrangia panfletos com assinaturas falsas, exemplares falsos de jornais clandestinos e cartazes com imagens manipuladas, de que os que aqui reproduzo são meros exemplos. Desde Salazar, mentindo publicamente sobre o assassinato de Delgado, ao legionário da esquina, a falsidade era o corrente. A falsidade, a calúnia e a difamação como instrumento de ataque aos opositores.
Dos exemplares que reproduzo acima um é particularmente repulsivo, a “biografia” de Mário Sottomayor Cardia. Cardia é acusado de roubar dinheiro nos vestiários da Cidade Universitária para ir cear ao restaurante Mónaco, de onde saía embriagado, e de ter sido protegido pela PIDE por ter participado num atentado à bomba. Tenho a certeza, mas tenho mesmo a certeza, que haverá quem leia isto hoje e pense: “Se calhar era mesmo verdade.” Hoje, em 2021, porque quando este papel imundo foi feito quem o lia percebia que a PIDE ou a Legião estava a fazer o seu trabalho sujo. Do modo como as coisas estão, era mais inócuo lê-lo em 1969 do que hoje.»
Pacheco Pereira – A indústria de falsificações do Estado Novo
O nosso Pacheco viveu no Estado Novo como adulto, estudou o que foi o salazarismo, tem na sua extraordinária biblioteca os calhamaços essenciais sobre o que é o fascismo. Ele sabe o que é estar privado da liberdade, não ter direitos cívicos e políticos e sofrer a violência do Estado. Só por esta dimensão existencial, passando a viver num regime de Estado de direito democrático, qualquer alusão que fizesse a “mentiras”, “falsidades”, “difamações” e “calúnias” teria sempre de ser contextualizada pela comparação com o que no regime anterior se fazia e cuja citação do seu artigo que trago ilustra e dá exemplo. Acontece que ele traiu esse dever de consciência, essa deontologia de historiador e cidadão, ao se apaixonar por Sócrates e fazer desse transe um duelo que o arrastou para a ignomínia. Não só Sócrates (ou algum governante de governos socialistas) nunca atentou contra qualquer valor democrático, bem ao contrário, como vimos o Pacheco a mentir, a lançar falsidades, a recorrer a difamações e a cair na calúnia. Porquê? Porque havia algo para ganhar em cima da mesa, ele queria provar a sua virilidade como guerreiro, um papel onde descobria a cada embate com Sócrates que não lhe chegava aos calcanhares em talento político. Daí só ter encontrado um sossego resignado quando, usando e abusando do seu cargo de deputado, se fechou numa saleta da Assembleia da República para ler sôfrego e febril as escutas aos telefonemas entre Sócrates e Vara. Saiu desconcertado para a frente das câmaras a dizer que tinha encontrado muitos crimes mas que não iria fazer nada a respeito. E com esse número voyeurístico, finalmente, encontrou um pouco de alívio para o seu sentimento de inferioridade.
Com o João Miguel Tavares também há algo para ganhar na sua perseguição a Sócrates e ao PS mas com este profissional da calúnia é apenas dinheiro o que está em cima da mesa, ele não quer sujar as mãos na porca da política que depende do Zé Povinho e dos votos. Por dinheiro, pelo encanto babado de meter o Ricardo Araújo Pereira em sua casa para mostrar aos filhos quão famoso é o papá, está disposto a fazer qualquer coisa; como branquear o Estado Novo, conviver com fachos e promover o Ventura para tentar dar a Passos mais uma rodada para ir além da Troika. Todavia, este Tavares é tão-só um arrivista, não tem um passado que valha a pena conhecer nem uma obra que valha a pena conservar. É por estas antagónicas biografias que, quando ambos recorrem à mesma decadência para atingirem os seus fins, um deles tem desculpa por lhe ter calhado o destino de ser um asco ambulante, e o outro não tem perdão por ter usado a liberdade para empeçonhar a liberdade.