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Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Abençoada blasfémia

O Ocidente é uma religião. É a religião do Direito. Tem templos, sacerdotes, teologias, livros sagrados. Responde a preces. Os seus concílios são abertos à participação de todos os cidadãos maiores de idade. Está em perpétua revelação. Tem raízes na filosofia grega, na tradição judaico-cristã, na civilização romana. Sabe-se friável, e nessa fraqueza vai sempre renovando a sua força. Corresponde ao império do Espírito da Lei, a Idade da Justiça.

Em boa hora, os simpáticos e pacholas dinamarqueses recuperaram a alma viking e deram um imprevisto abanão na modorra ideológica. Agora que aconteceu, até custa a crer que não tenha acontecido mais cedo. É que o ataque aos bonecos teve o condão de desenhar um novo mapa conceptual. De um lado, vemos uma vontade de poder obscura, manipuladora, que trata os seus como carne para canhão na busca de vantagens políticas, ganhos financeiros ou fruição de delírios sociopatas. Do outro, 2.500 anos de gesta heróica na procura da liberdade. Este é o tempo de assumirmos a nossa diferença, reclamarmos a memória de todos aqueles que deram as suas vidas por um ideal humanista, chamem-se eles Sócrates, Cícero, Cusa, Galileu, Thoreau, Marx ou Teresa.

A raiz etimológica de civilização remete para comunidade, referida a um complexo urbanístico complexo com estatuto de cidade. Implica uma ordem que rege a convivência, regula as transacções sociais, confere direitos e deveres, organiza o poder, autonomiza a política. Neste sentido, os conflitos com os terroristas, psicopatas e alienados que se reclamam defensores do Islão não configuram um choque de civilizações; pois estes infelizes não estão a desenvolver civilização alguma, apenas a ferir a deles e a nossa. Porém, o Islão tem uma questão para resolver: a secularização da sua política e respectivo edifício jurídico. Um Islão político é incompatível com o Ocidente, como se vê pela retórica e práticas dos fundamentalistas. Um Islão político não reconhece fronteiras nem o valor absoluto da vida humana, não admite laicismos nem direitos humanos. Mas um Islão cuja política e lei civil sejam seculares será no mesmo passo um humanismo. Foi precisamente isso que conseguimos fazer do cristianismo, e muito nos custou.

Aqueles que neste momento aproveitam para, mais uma vez, verter bílis contra o Ocidente têm a razão dos trapaças. Queixam-se de a obra não estar acabada, o terreno sujo e continuarem a morrer operários na construção. Enfim, é uma desculpa como outra qualquer para não estarem a trabalhar.

Sufi Ciente

Eis uma muito conhecida parábola de Jalal al-Din Rumi – místico e poeta sufi nascido no séc. XIII, no actual Afeganistão – que se grava facilmente no coração e à qual não nos cansamos de voltar, aqui transposta em versão livre:

Um homem vai visitar o seu melhor amigo. Bate à porta e ouve “Quem és?” Responde “Sou eu.” O amigo diz-lhe “Vai-te embora, não te conheço.” Magoado, o homem vai embora. Passado um ano, volta lá. “Quem és?” Responde “Sou tu.” O amigo abre a porta. E diz-lhe “Bem-vindo. Esta casa é tua.”

Enquanto os cães ladram, a caravana da história faz caminho. Para quem gosta de números, apostaria os meus rentes em como há centenas de milhões de muçulmanos cuja ambição é viverem em paz, conforto e harmonia com o resto do mundo. Quantas centenas de milhões? Vou arriscar uma quantidade: entre 10 a 12.

São pessoas condicionadas pelos poderes políticos, religiosos e culturais. Pessoas cuja voz não se faz ouvir, que talvez nem a si próprias se oiçam. Mas são aquelas que nós deveríamos tentar conhecer, apoiar, defender. Estão em todo o lado, aqui em Portugal. Costumam ser chamadas de “moderados”, o que não lhes faz justiça. Não pode haver moderação no combate pela dignidade. E dependemos delas para estancar a sangria, reduzir a loucura.

Começar por nos aproximarmos das comunidades islâmicas, não sendo remédio santo, já seria suficiente.

A alternativa Shakespeare

Eu até compreendo a raiva dos muçulmanos diante dos 12 cartoons injuriosos.
Mas näo compreendo, nem tolero, a sua resposta.
Bandeiras queimadas? Ataques a embaixadas? Embargos e ameaças de morte? Ódio generalizado ao ocidente, sem distinçöes? Eis a mais estúpida e apocalíptica das reacçöes, a meio caminho entre a loucura e a barbárie.
Se eu fosse um muçulmano indignado, deixava as pedras no chäo e citava Shakespeare.
Aquilo do Hamlet, sabem, sobre haver “algo de podre no reino da Dinamarca”?
Para além de ser mais elegante, era também mais verdadeiro. É que até pode haver algumas coisas “podres” lá para os lados de Copenhaga (os malfadados cartoons, por exemplo) mas o resto do país e os seus habitantes näo merecem levar por tabela.

Qualidade portuguesa

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Saber falar é uma arte. Saber ler também. Luís Gaspar, «locutor de publicidade», tem-nas, uma e outra. Podem ouvi-lo no seu audioblog ESTÚDIO RAPOSA (www.estudioraposa.com), eventualmente pela ligação no TRUCA (www.truca.pt).

Aí se percebe como o nosso idioma – apesar do fechamento sonoro dos últimos séculos, que se vem acelerando – ainda tem sonoridades fortes e maviosas. Aí se aprende a ler aos outros: aos amigos, aquele poema que nos saiu esta tarde no café, aos miúdos, aquela história antes de adormecer. O efeito é o melhor. Os amigos ficam boquiabertos. As crianças não. Mas ficam crendo, para a vida, que o meu papá, a minha mamã, são os maiores.

A qualidade nunca esquece.

A liberdade não se encomenda

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Lars Refn foi o único cartoonista que, apesar do pedido do Jyllands-Posten, optou por não representar Maomé, o profeta, mas Mohhamed, aluno do 7ºA. O jovem aponta para um quadro onde se pode ler, em persa: «Os jornalistas do Jyllands-Posten são um bando de provocadores reaccionários».

Lars Refn usou da sua liberdade de expressão como queria e não como lhe foi ecomendada. O jornal, apesar de amar a liberdade de imprensa, não gostou da graça e escreveu, como legenda: «pensamos que Lars Refn é um cobarde que não entende a gravidade da ameaça muçulmana à liberdade de expressão». Parece que o Jyllands-Posten adora a sua liberdade, mas não convive bem com a liberdade dos outros. Insultar o jornal que lhe publica o desenho, isso sim, é ter tomates.

Caricaturas (2)

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A ideia de que o desenvolvimento científico e tecnológico implica um desenvolvimento ético, é falsa. Como se viu há uns anos na Libéria, é possível cortar um homem aos pedaços, castrá-lo, e matá-lo e filmar tudo com uma câmara Sony, para ser visto na televisão.
As câmaras de gás e os gulags são tão modernos como os atentados do 11 de Setembro.
O nazismo, o neoliberalismo, o estalinismo e o Islão radical são todos muito modernos.
Os fundamentalistas islâmicos de vários matizes, apesar de reivindicarem o seu suposto anti-ocidentalismo, são mais filhos do Ocidente do que do Islão tradicional. A convicção que une todos os modernos é a possibilidade de moldar a humanidade e o planeta a golpes de míssil ou de explosões de bombistas suicidas.
Quando o Financial Times , de 4 de Setembro de 2002, pela pena impoluta de Martin Wolf, garantiu que “o 11 de Setembro foi perpetrado por fascistas islâmicos” tinha toda a razão: de facto, como notou John Gray, o Islão radical é como o fascismo, principalmente por ser inequivocamente moderno. O fundamentalismo é um sintoma da doença da qual pretende ser a cura.
É muito interessante verificar, como escreve Amin Maalouf no “Les identités meurtrières”, que num passado recente os islamistas eram vistos, no Médio Oriente, “como inimigos da nação árabe e muitas vezes como espiões do Ocidente”. Foi o falhanço dos projectos de modernização nos países árabes que levou à expansão do fundamentalismo islâmico. A base de expansão, desse movimento, baseou-se em muitos dos desiludidos do socialismo e do nacionalismo nasserista. É nas universidades e com as centenas de milhares de licenciados desempregados, que o islamismo radical ganha forma.
Como escreve, um tal Kosrokhavar, citado por Castells: “Quando o projecto de constituir indivíduos que participem plenamente na modernidade revela o seu absurdo na experiência real da vida quotidiana, a violência converte-se na única forma de autoafirmação de um novo sujeito (…)A exclusão da modernidade adquire um significado religioso: de este modo a auto-imolação converte-se na via para lutar contra a exclusão.” (Castells, Manuel: “ La Era de la Information, Volume II, El Poder de La Identidad”, pag 43.

Caricaturas (ponto prévio)

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Leio no Guardian, de hoje, que o clérigo radical islâmico, Abu Hamza foi condenado, na Grã Bretanha, a sete anos de cadeia, por incitar o “ódio racial”. Parece que a célebre “liberdade de expressão” não funcionou com ele…
Nesta tempestade das caricaturas, a propalada “liberdade de expressão” é um fait divers. Segundo o Diário de Notícias de ontem, a história desta crise é edificante: um autor de um livro xenófobo propôs “pinchar o Alcorão com sangue menstrual” e queixou-se de não ter conseguido desenhadores para caricaturar Maomé. O jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que tem a propósito o belo facto de ter sido apoiante do nazismo, tomou o desafio em mãos e encomendou 12 caricaturas do profeta dos muçulmanos. Publicou, em primeira mão, o Guardian, que o mesmo expoente da liberdade recusou, recentemente, aceitar caricaturas de Jesus Cristo, sob a alegação que iriam “ofender as pessoas”. As cabecinhas bem pensantes cá do burgo, resolveram afunilar a questão das caricaturas para a liberdade de imprensa, como se cá no Ocidente e fosse um valor absoluto. É sabido que em Espanha o dirigente do Harri Batasuna vai ser julgado por dizer que o Rei de Espanha liderava “a camarilha” que manda; já foram proibidas caricaturas do rei da Bélgica, por “ultraje aos símbolos nacionais”. O sacrossanto mercado impede, em muitos países, a utilização do Tintin, Asterix e Rato Mikey nas caricaturas. No entanto, parece que Maomé com cabeça de homem bomba não vale um rato da Disney…
Talvez mais importante do que restringir a questão, à liberdade de expressão e liberdade de imprensa, seria analisar o conteúdo das ditas caricaturas e o que significa esta explosão das massas muçulmanas. No fundo, era interessante analisar onde nos levam estas dinâmicas tão caras aos apóstolos do “choque de civilizações”.

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