José Pacheco Pereira republica no Abrupto a sua crónica de ontem no «Público» sobre as gavetas literárias vazias. É um texto interessantíssimo, onde se comenta a correspondência, recentemente publicada, entre Sena e Sophia. Mas é a segunda vez (pelo menos) que JPP aborda o tema das gavetas. Quando o fez anteriormente, a 13.2.2003, no mesmo diário, escrevi no suplemento literário (dirigido por Vamberto Freitas) da revista «Saber Açores» a crónica abaixo. Parece-me, de novo, actual.
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O texto de José Pacheco Pereira, «Revisitando a censura em tempos de selvajaria», no Público de 13 de Fevereiro passado [2003], era um apontamento excelente. Sobre os nossos medos. Sobre as nossas ilusões. Sobre o nosso pouco remédio. Tudo autêntico, tudo triste. Mas havia, no meio de tanto acerto, uma afirmação algo desatenta. Era a propósito de obras ‘na gaveta’, por receio da Censura. O cronista escrevia:
«A verdade é que, depois do 25 de Abril, essas gavetas estavam vazias e não se conhece praticamente nenhum livro (com excepção do “Até Amanhã Camaradas”… de Cunhal), nenhum ensaio político ou filosófico, que tenha saído dessas gavetas».
Essas reticências são já problemáticas (não se sabe aonde apontam), e rasam mesmo o inconcebível na pena de um biógrafo do autor.
Mas a questão importante ficou naquele «não se conhece praticamente nenhum livro», e constatemos que essa precisão, «praticamente», é nítido favor. Só que, do ponto de vista da história literária, está aí uma afirmação leviana. E por isto: pelo menos quatro romances importantes estiveram realmente na gaveta, aguardando melhores dias.
Um foi O Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis, pronto para publicação desde 1970, mas arrastando-se na editora por alguma (de resto justificadíssima) inoportunidade política. Apareceu no Verão de 1975, no auge da confusão, passando quase despercebido. Um segundo foi Directa, de Nuno Bragança, romance que chegou a adiantados planos de impressão em Paris, para ser depois contrabandeado para Portugal, por mala diplomática. A revolução veio para esse livro cedo de mais. Quando finalmente surgiu, em 1977, poucos já conseguiam interessar-se por mais uma história da clandestinidade, e menos eram ainda a dar-se conta de que esta era a melhor de todas. O terceiro livro saído da gaveta foi Espingardas e Música Clássica, de Alexandre Pinheiro Torres, esplêndido romance, só aparecido em 1987 mas escrito em 1962, quase contemporâneo dos factos a que se reporta. Seria vítima, ele também, da saturação que atingiu as histórias da resistência. Só o romance póstumo Sinais de Fogo, de Jorge de Sena, de 1980, mas redigido nos anos 60, persistiu na memória dos leitores, possivelmente sensíveis aos excessos sexuais aí descritos, que sempre ajudam a salvar uma obra-prima exigente.
Que todas as quatro obras (ou as cinco, com a de Cunhal) tenham sido escritas e mantidas no estrangeiro, aí está o que pode, e deve, servir de estupefacção e humildade para os filhos que não deixaram a pátria. Porque a verdade acaba sendo esta: se havia coisas verdadeiramente importantes por publicar, era lá fora que estavam.
10.00 h
José Pacheco Pereira acaba de fazer uma nota com link para este post.