O jogo da censura

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Os intelectuais hardcore andam felizes. O mundo tem destas coisas: de quando em vez, mais ou menos ao ritmo das aparições do cometa Halley, alguém presta atenção às querelas esotéricas e às escaramuças bizantinas de artistas, críticos e outros profissionais da cultura. Aí, é chegado o momento de celebrar.
Agora, é o affaire Handke/Milosevic. Para quem anda mais distraído, aqui fica um resumo da coisa: Peter Handke, escritor de ascendência parcialmente eslovena, é desde há anos uma das vozes incómodas que recusa o encerramento do dossier das guerras da Jugoslávia com o simplista veredicto da culpa exclusiva dos sérvios e de Milosevic. Para piorar tudo, lembrou-se de aparecer no funeral do bode-expiatório/ditador sanguinário (riscar o que não interessa), com um elogio fúnebre na algibeira.
Reacção: Marcel Bozonnet, director da Comédie-Française tratou de “desprogramar” uma peça de Handke, “O Jogo das Perguntas ou Viagem à Terra Sonora”, obra que nada tem a ver com a Jugoslávia. Logo estalou a polémica, com abaixo-assinados, insultos, barricadas e intelectuais que se imolam pelo fogo (bem; ainda não chegámos a tanto, mas é capaz de não tardar). Como peixes famintos de atenção que por fim são presenteados com umas migalhitas, também cá as hostes se abespinham e se erguem de verbo fácil e inflamado em riste. Por exemplo, no último número do “Mil Folhas”, Augusto M. Seabra e Jorge Silva Melo quase fazem eco um do outro, embora com algumas dissonâncias interessantes, mormente a propósito de uma espécie de abaixo-assinado do director do Centre dramatique national d’Orléans, Olivier Py. Silva Melo nessa prosa “um texto dilacerante” (será mesmo elogio?); por seu lado, Seabra exorciza o “indescritível manifesto” que ali lê.


Quanto a mim, “dilacerante” é a falta de lucidez demonstrada por Py. Não interessa agora ressuscitar discussões que já por aqui correram a propósito de Milosevic. Mas está na cara que Handke tem um conhecimento e um envolvimento com a questão que contrasta de forma cruel com o digest de ideias “toda-a-gente-sabe” de Py: “Les positions de l’auteur paraissaient il y a dix ans une erreur politique, une incompréhension d’un conflit, une lecture influencée par la propagande du régime de Belgrade. Aujourd’hui, ces crimes ne sont plus des suppositions, le génocide n’a plus besoin de guillemets, il est reconnu comme un fait historique par l’ensemble de la communauté internationale.” Não há lugar para matizes, nem espaço livre para que a menor dúvida se infiltre entre os tijolos das unanimidades argamassadas a títulos de jornal.
Mas o pior é a justificação do acto censório. Escreve Py: “On ne peut appeler ‘censure’ la volonté d’un homme de ne pas serrer la main d’un autre homme.” E que terá isso a ver? Há uns dias, Umberto Eco recusou encontrar-se com Dan Brown. Uma recusa pessoal, que não envolve instituições ou dinheiros do Estado, ao contrário da posição de Py, nem passa por castigar trabalhos do autor “mal comportado”.
E há mais: “La liberté d’expression n’oblige aucun directeur de théâtre à donner la parole aux idéologies criminelles contraires à la démocratie et aux droits de l’homme”; “La seule chose qui puisse séparer l’oeuvre de l’homme, c’est lorsque la première est affranchie du second, dégagée des contingences humaines. Il sera temps alors d’oublier les textes politiques de Peter Handke pour lire sereinement ses autres oeuvres.” Isto a propósito de uma peça desligada do contexto da polémica e encerrando com o patético conselho de esperarmos até que Handke esteja morto e enterrado para por fim podermos ler com “serenidade” as suas “outras obras”. Estarrecedor.
Eu também recusaria a apertar a mão a um pedófilo. Mas não deixo por isso de ler Walt Whitman e muitos outros. Sem que tal me faça cúmplice das suas bizarras inclinações sexuais.
Mas podemos sempre começar a construir um Index capaz de albergar todas as obras de autores que por isto ou por aquilo desafiaram o “politicamente correcto”, com ou sem razão. Ao que parece, há gente para aí virada: gente que até já propôs um ano de boicote a todas as obras de Handke. Em nome de uma certa ideia de “Europa”.

15 thoughts on “O jogo da censura”

  1. Diz esse tal de “Luis em maio” que se recusaria a apertar a mão a um pedófilo (pode contagiar!). Ler as obras de um pedófilo já não se importa, mesmo que contenham descrições pedófilas. É falso! Se fosse de todo o seu interesse e da sua conveniência pessoal, apertaria a mão ao pedófilo quantas vezes fossem necessárias. Não acreditem na sua pretensa superioridade moral, que não a tem. Não é mais do que um “politicamente correcto” que ele tanto condena. Farisaismos.

  2. Repudio a censura. Se a peça não tem nada a ver com as palavras ditas no funeral de Miloevic, se é uma obra digna de ser representada, não vejo motivos para a desprogramação.

  3. Gosto de Peter Handke. Concordo plenamente com o texto que agora comento. Li os artigos em questão no Milfolhas e acho o mesmo: os autores estão sintonizados. Estranhamente de acordo, mesmo para quem tentou mostrar distanciamento nas variadas posições tomadas a propósito da cultura, naquele mesmo suplemento. Fiquei admirado com o termo «teatro para dentistas» que JSM utilizou para adjectivar o trabalho de Handke e notei um ressabiamento muito especial em Seabra por aquele se ter calado quando da crítica aos sérvios, há uns anos atrás. Acho pouco. Muito pouco para a questão que está em «jogo». Não se pode censurar nada. É este o problema. Parece que se esqueceu de dizer isto nos tais artigos. Nunca esteve em causa o trabalho de Handke que foi claramente insultado nos artigos em causa.

  4. «Para piorar tudo, lembrou-se de aparecer no funeral do bode-expiatório/ditador sanguinário (riscar o que não interessa)». Na minha opiniao ambas as ideias estao certas: Molosevic foi um DITADOR SANGUINARIO e um BODE ESPIATÓRIO e nao ha nada para riscar.
    Quanto a Peter: o motivo da censura foi pessimo e mostra o quanto na Europa se gosta de verdades unicas. Mas nao sera a censura a melhor forma de publicidade?

  5. “Mas podemos sempre começar a construir um Index capaz de albergar todas as obras de autores que por isto ou por aquilo desafiaram o “politicamente correcto”, com ou sem razão”

    E então, qual é o problema? Eu também não deixo de ler um autor pelos vícios ou vergonhas, públicos ou privados. Até porque alguns dos meus autores preferidos foram autênticos facínoras desumanos. Mas se alguém quiser promover um boicote a esses senhores, desde que não o pretenda fazer por meios violentos ou usando o poder coercivo do estado, qual é o problema? É um exercicio de liberdade tão legítimo como o do Handke. A única censura aqui seria impedir essas pessoas de não quererem ler Handke e de tentarem convencer outros a seguirem-lhes o exemplo.
    Já agora, a Sabine terá alguma razão: até ao momento nunca li Handke. Hoje, pelos motivos mais óbvios, comprei um livro do senhor.

  6. Já agora, o Py tem alguma razão no manifesto – não decorre aqui que a desprogramação seja legítima. Mas quanto à tese da negação da história, tem toda a razão. Francamente, não percebo qeu cambiantes ou matizes quererá o Luís ver infiltradas. Seria assim tão conciliatório com negacionistas do holocausto? E onde é que “está na cara” essa tal autoridade superior do Handke na matéria? Na cara, como? Literalmente? Estas defesas de fraudes e mentiras a la chomsky, baseadas numa suposta superioridade moral de quem “faz duvidar” e em tiradas ad-hoc, já começam a chatear.

  7. Cordobes,

    Tens essa cabecinha cheia de merda, menino. E não admira, pois dizes que alguns dos teus “autores preferidos foram autênticos facínoras desumanos”. Mas vais mais longe estipulando as regras do jogo: vale tudo menos métodos “violentos ou usando o poder coercivo do estado”.

    E estava eu aqui a lembrar-me dum grande filho de puta que controla uma rede de cadeias de televisão, estudios de cinema, editoras e jornais, muito convencido que ele consegue os seus objectivos políticos contra os interesses dos cidadãos dos paises envolvidos. Agora vens tu deitar-me abaixo essa minha querida opinião!

    Foda-se que há dias que não se pode sair de casa!

  8. Nanda

    Odeias a Censura?

    Então o que é que fazes no Blog mais Censor da Net?

    Eles aqui só admitem uma forma de pensamento. O resto é lápis azul para cima. Fica atenta. Há comentários que desaparecem constantemente. Até se perde o fio à meada!

  9. Álvaro Campos,

    Talvez o LR, com pena mais acerada que a minha, venha falar consigo. Por mim, fica já isto.

    Neste blogue, ninguém apaga nada que não seja «spam» ou mensagens ofensivas, explicitamente ofensivas, feitas só com o fito de ofender.

    Mas mesmo a essas eu as conservaria, se viessem com donaire, com arte, com um fio de vulnerabilidade. Temos é pouca sorte.

  10. A lenga lenga é sempre a mesma. Também a Pide dizia que determinados artigos nos jornais eram “ofensivos” para o país e passava-lhes o lápis azul.

  11. Gosto muito de muitos dos textos de Handke. Ele, com a sua história e a sua “consciência” achou por bem ir ao funeral do Milo, devo dizer que quando a coisa se passou achei um pouco surpreendente, pensamentos únicos há-os por todo o lado. Não tenham pena do Handke, o que ele escreveu vale mais que todas as censuras… sejam elas justas ou injustas.

  12. Há mtos anos fiz teatro. Lembro-me de uma adaptação de uma peça de Aristofanes ” A Revolta das mulheres”. “Eles” cortaram com o tal lápis azul a seguinte frase(para além de outras):” Deixei crescer os pelos das pernas para mais fácilmente me disfarçar de homem”. Ainda hoje não percebo o que se passava naquelas cabecinhas. Daí o meu repúdio. Quanto à frequência deste blog, vou observando. Sou novata na blogosfera.

  13. ó anonymous, tem boa solução: boicote aquilo que escrevo e os jornais, televisões e revistas desse senhor. Convença outros a faze-lo. Como já disse, desde que não use meios violentos nem queira que o estado legisle algo que me obrigue a calar, acho muito bem.

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