Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Belas, inteligentes e anónimas

Boa lembrança a do Gibel. A SOCA tem um ano preenchido com blogoliteratura de gineceu. Nesse efémero feminino, encontramos a mesma dinâmica que em qualquer outro blogue, singular ou colectivo, com começos apaixonados e curvas descendentes de participação. O que se produziu neste ano de vida, porém, é material de inquestionável interesse antropológico, sociológico e psicológico — porque servido por um nível médio de qualidade de escrita que consegue notável compromisso entre o conteúdo e a forma. Não sendo um blogue com qualquer pretensão estilística, nem ideológica, habita num reino lúdico onde há cupidos e bestas furiosas em feminil harmonia. Encantador, pois.

Chamo a atenção para algo que transcende o projecto, e que é filão para editores que ambicionem vender o que publiquem (aspecto que deveria ser óbvio, mas que num País sem cultura capitalista se torna esconso). Trata-se da colaboradora Fox Trotter, recentemente desvelada como sofrendo de múltipla personalidade. Ela relata as suas experiências sexuais de um ponto de vista que os homens desconhecem por fatal limitação cognitiva, assim contribuindo para se continuar a desacreditar Freud e outros amantes de charutos. Com mais material reunido, era best-seller garantido. Cá vai um exemplo, com erro ortográfico charmoso e tudo a que temos direito:

Amorzinho, vai-te foder

Acordaste a minha líbido, que tanto demorei a silenciar. Eu, que nos dias em que fodia, fodia todos os dias. Não queria o grelo aos saltos e as mamas duras, a língua a tocar na aresta dos dentes em antecipação. Nem o torpor insensato nas depressões internas das coxas, enquanto sentia escorrer a vontade pelo eixo de simetria. Consegui deixar de me foder com os dedos porque estava farta de me vir sozinha.
Chegas, fascinas-me com palavras. A minha tesão com a tua voz. O teu cheiro, pele, as duas mãos. Rendes-me nua, viras-me de costas, do avesso, prendes-me o corpo à distância do teu. Prendes-me o corpo, presas as mãos (para que não te possa tocar). Dás-me finalmente a língua e penso que te vou ter. E então vais-te, levas-me o sono e deixas, em troca, uma cona a arder.

A Rivolta do bom esquerdista

O amigo Nuno angustia-se pela integridade da minha esquerdista pessoa, não vá eu ter sido substituído por um clone às ordens do João Miranda. Nada disso. Por estranho que pareça, não gosto de ocupações, não entendo a alegria festiva do sitiante e aborrecem-me de morte as tiradas grandiloquentes dos Defensores da Cultura que sempre sobem ao palco nestas alturas.
Até te dou, Nuno, uma dezena de motivos para achar esta ocupação “disparatada”:
1- Permite ao Rui Rio apresentar-se como vítima dos vândalos;
2- Tem a péssima consequência, em termos de imagem, de dificultar um concerto benemérito;
3- É iniciada por um grupo teatral com mau historial recente de público, abrindo o flanco à velha lengalenga da subsídio-dependência;
4- Não vejo razão para que um teatro não seja gerido por privados. Os melhores em Lisboa são-no;
5- Não estamos a contemplar a ideia de transformar aquilo num templo da IURD. Apenas de entregar a sua gestão ao vencedor de um concurso;
6- Este processo, se bem percebi, nem sequer tem ainda resultado anunciado;
7- O Rio foi eleito, logo tem legitimidade para investir em desfiles de carros velhos e não no Teatro, se tal não contrariar o seu programa eleitoral. Não gostam? Votem noutro;
8- Se tudo correr mal, o contrato será anulável ou acabará por caducar;
9- Aqueles okupas têm um ar deplorável;
10- E acima de tudo o mais, escreveram o poema “de intervenção” mais atroz que alguma vez li.

Need I say more?

Por mais amor aos números e doutorandos que por ali andem…

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…o rigor passa sempre para segundo plano quando a cegueira ideológica ataca. Inacreditável: o Insurgente, pela pena de André Azevedo Alves, dedica-se a tentar desfazer o estudo da Lancet que concluiu pela ocorrência de mais de 600.000 mortes no Iraque atribuíveis às sequelas da invasão de 2003. Começando, logo no título do post, pelas aspas marotas com que adorna a palavra “científicos”. Depois, vem a prosa crítica de um suposto leitor que se anuncia médico. E que nos diz este? Necedades de toda a forma e feitio (mas nada que assuste o bom AAA). Começando por algumas questões que imagina difíceis: “Foram feitos inquéritos a famílias escolhidas aleatoriamente, mas onde? também nas zonas menos tocadas pela guerra? ou só nas mais violentadas?” Bastava ao incrédulo sr. dr. ter-se registado no site da conhecida revista médica para ver a sua angústia resolvida (1). Eis uma primeira abordagem que nos dá logo a certeza de que o comentador nem sequer pousou os olhos no estudo que quer demolir. Revelador.
Há também a velha ladainha de “os americanos têm sempre a culpa de tudo”, insinuando que os pobres ocupantes nada têm a ver com as lutas intestinas do Iraque. Uma linda ideia que contradiz, para começar, todos os tratados que regulam ocupações. (2)
Mas há mais: “Uma das mais óbvias desonestidades do ‘estudo’ tem aliás a ver com a amostra: comparar 14 meses antes da invasão (em ‘paz’) com 14 meses a seguir (e portanto na fase em que houve guerra mais intensa e generalizada no terreno), e extrapolar os ditos casos desses 14 meses para os 28 meses seguintes, inflaciona, e de que maneira, os números.” Só que nada disto é verdade: não houve no estudo qualquer “extrapolação” e quatro períodos são analisados: pré-invasão, Março de 03 a Abril de 04, Maio de 04 a Maio de 05 e Junho de 05 a Junho de 06. Aliás, na tabela abaixo (3) fica clara esta análise.

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Hôtel Costes (9) e um Aniversário

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Stéphane Pompougnac, o DJ neo-aristocrático urbano (juro! é o que lhe chamam alguns críticos e eu não vou desmentir), regressa com a nona série da sua selecção Hôtel Costes, de melhor música lounge e deep house. Gostei especialmente da versão de Emotional Rescue, de Mick Jagger, de Diferente, dos Gotan Project (porque gosto sempre de Gotan!) e sobretudo da Ballad of Sacco and Vanzetti, de Ennio Morricone, na voz de Linda Lee Hopkins. Como o melhor Blogue feminino nacional completa o primeiro aniversário, a dita balada vai todinha dedicada às meninas da SOCA.

«Traduzir galego»

No suplemento «Actual» do Expresso de ontem saiu este texto cá do Degas. Leia e trema.

Editar em português a literatura galega põe particulares exigências. A tremenda proximidade dos dois idiomas (ou das duas variedades de um só idioma) vem semear, a cada frase, escolhos ao tradutor. Muitos termos, muitas expressões, têm em galego um significado, ou um valor, ou uma carga, que não são os nossos. A própria morfologia cria problemas. O galego desconhece o nosso presente composto (em galego, «tenho lido» significa outra coisa), assim como ignora o mais-que-perfeito composto («tinha lido») e dá ao simples («lera») também sentido de perfeito («li»). Só o assíduo contacto com o galego escrito e falado pode guiar um tradutor.

Como se tal não bastasse, o galego actual, mesmo o literário, encontra-se repassado de castelhano. Tal como, um dia, sucedeu ao português. Mas as descoincidências connosco são inúmeras. Assim, um bom tradutor do galego tem de sê-lo, também, do espanhol. Esquecer isso é expor-se a riscos.

Li, recentemente, Ser ou Não, de Xurxo Borrazás (n. 1963), que a Deriva Editores, grande divulgadora entre nós das letras galegas, publicou. É um livro ousado, imensamente perspicaz, donde o mundo literário, o da escrita, mas também o do «marketing» e dos prémios, sai gostosamente desnudado.

A versão portuguesa é de Dina Almeida, com revisão de Isabel Ramalhete, mas o blogue do editor atribui à segunda a tradução, dizendo-a «rigorosíssima». Decerto, o português dela, ou delas, é nítido, desenvolto, a espaços brilhante. E a tradução do galego é, em si mesma, apurada. Mas labora num equívoco deprimente. Explico. Os galegos têm uma tolerância ao palavrão que nós desconhecemos e nos engana. Assim, e é um exemplo, o frequentíssimo «carallo» equivale, quase sempre, aos nossos «raio», «caraças», «carago», «diacho». Não mais do que isso. São, pois, imensamente inadequadas as passagens do tipo «um retiro do caralho», «A que caralho é que tu cheiras?», «a ti que caralho te interessa?», «Ao caralho! – exclamou o professor», e dezenas, dezenas de outras. O tradutor supor-se-á atrevido. Mas está apenas a ser ridículo.

Depois, há o material espanhol, já não questão de gosto mas de informação. Há centos de termos enganosos, os «falsos amigos», a pedirem cuidado. Que faltou a este livro. Aí damos com «apenas» (por «mal», «quase não»), «traje» (fato), «tópicos» (clichés), «compasso» (bússola), «Venha!» (Vamos a isso!), «noiva» (namorada), «chatear» (fazer um «chat»), «logro» (conseguimento), «colónia» (água-de-colónia), «prata» (dinheiro), «corrida» (ejaculação), «ovos» («tomates»), «por certo» (aliás), «escaparate» (montra), «torpe» (desajeitado), e mais, bastantes mais. Para quem recear um estado de coisas em que o espanhol desestabilizou definitivamente o português, este livro é um pesadelo.

Entenda-se-me bem. É importante conhecer espanhol, falá-lo com segurança, transmitir nele, com garbo, a cultura portuguesa. Mas, também, não ceder um milímetro do nosso idioma.

E quanto ao galego, mais isto. Tente conservar-se, onde for adequado, a coloração lexical ou idiomática do original. Não para que a absorvamos. Mas para que, tal como a brasileira, ela venha tocar-nos, serenamente, os sentidos e o entendimento.

Etiqueta Dadá

Leitura
Hábito mais característico de algumas comunidades do que de outras. Quando se viaja, tem-se uma boa oportunidade para tomar contacto com este acto, em transportes colectivos, em viagens mesmo curtas, pois certas pessoas vão a ler, enquanto outras olham para o ar. O mesmo se nota em salas de espera. Os tempos mortos podem ser aproveitados para a leitura, já que nem todos têm vida que permita cultivar-se. A leitura de bons livros é enriquecedora e desenvolve a nossa inteligência. As classes altas preferem memórias e biografias. Os livros de arte ficam bem nas mesas das salas. É importante cultivar este hábito junto das crianças desde tenra idade.

Entrada do Dicionário de Etiqueta da venerável Paula Bobone.

Vamos dar um ataque de nervos aos nossos amigos liberais?

Pelas bandas do “Blasfémias”, anda tudo em alerta vermelho com mais uma malfeitoria da França. O motivo (como se fosse mesmo preciso) é a aprovação de uma lei que criminaliza a negação do genocídio arménio.
Imaginem agora como é que os Blasfemos vão ficar quando descobrirem que também em Portugal a “negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade” é acto “punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.” Trata-se, imagine-se, de um dos “Crimes Racistas” descritos pelo Código Penal, através do seu artigo 240º.
Esta legalização da conformidade de pensamento já fizera correr muita tinta, a propósito de julgamentos de negadores do Holocausto. Mas, no entanto, não desculpa que o Gabriel Silva equipare uma lei francesa que proíbe o negacionismo com o preceito legal turco que o torna obrigatório. Há que manter, mesmo quando se casca na nossa bête noire preferida, alguns neurónios a funcionar.

Trailer

Uma Espanhola que afinal era Italiana. Um ataque terrorista ao roque negro. Sangue, suor e lágrimas no tabuleiro. Não perca O Cerco Fatal, com Garry Kasparov e José Mário Silva, uma tragédia em 35 lances. Brevemente num blogue perto de si.

Deixem lá o Leo Strauss em Paz

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Não concordo com o Prof. Pedro Arroja. Não foi o brilhantismo de Leo Strauss (Ena tanta gente a ler Leo Strauss por essa blogosfera afora e a conferir com o check-list de lugares-comuns da cartilha já decorada!) que inspirou o neo-conservadorismo, nem sequer leio o straussianismo dessa forma. O neo-conservadorismo da trindade de incapazes que governa a Casa Branca, com o mais que declarado desprezo da elite norte-americana, só pode pretender emular mentes mais simples e prosaicas: as conduzidas pelo timoneiro Edmund Blackadder, teorizador da estratégia “como-é-que-a-malta-se-safa-por-hoje-até-ser-hora-de-jantar” e que de forma singela alinhavou o mais explícito discurso neo-con anti-deterrence:

Baldrick: No, the thing is: The way I see it, these days there’s a war on, right? and, ages ago, there wasn’t a war on, right? So, there must have been a moment when there not being a war on went away, right? and there being a war on came along. So, what I want to know is: How did we get from the one case of affairs to the other case of affairs?

Edmund: Do you mean “How did the war start?”

Baldrick: Yeah.

George: The war started because of the vile Hun and his villainous empire- building.

Edmund: George, the British Empire at present covers a quarter of the globe, while the German Empire consists of a small sausage factory in Tanganyika. I hardly think that we can be entirely absolved of blame on the imperialistic front.

George: Oh, no, sir, absolutely not. (aside, to Baldick) Mad as a bicycle!

Baldrick: I heard that it started when a bloke called Archie Duke shot an ostrich ‘cause he was hungry.

Edmund: I think you mean it started when the Archduke of Austro-Hungary got shot.

Baldrick: Nah, there was definitely an ostrich involved, sir.

Edmund: Well, possibly. But the real reason for the whole thing was that it was too much effort *not* to have a war.

George: By God this is interesting; I always loved history — The Battle of Hastings, Henry VIII and his six knives, all that.

Edmund: You see, Baldrick, in order to prevent war in Europe, two superblocs developed: us, the French and the Russians on one side, and the Germans and Austro-Hungary on the other. The idea was to have two vast opposing armies, each acting as the other’s deterrent. That way there could never be a war.

Baldrick: But this is a sort of a war, isn’t it, sir?

Edmund: Yes, that’s right. You see, there was a tiny flaw in the plan.

George: What was that, sir?

Edmund: It was bollocks.

A segurança social no inferno liberal

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O Insurgente André Abrantes Amaral explica-nos, em três penadas, os malefícios da segurança social e o precipício que separa o bruto socialismo do preocupado liberalismo.
Em primeiro lugar, defende uns tais “mais novos” que não desejam que parte do seu salário vá parar a um “bolo comum, que não é rentabilizado”. Depois, AAA retoma a conhecida cantilena “os pobres, esses madraços” com uma tirada eloquente: “Para quê poupar se depois teremos uma reforma ‘digna’?” É que “as pessoas têm direito a reformas não apenas porque trabalharam, mas também porque tiveram certos cuidados. Acreditar que apenas devido ao trabalho já temos direito a tudo, é errado.” Passa-se aqui, sem esforço evidente, do desejo de uma reforma digna a um luxuriante “tudo”. Não me parece que vivamos na Holanda: por cá, muitos pensionistas têm de se contentar com um pecúlio que talvez os impeça de passar fome. Foram por certo preguiçosos, descurando os “certos cuidados” que AAA tem por indispensáveis.
Eu, por mim, até invisto algum dinheiro num esquema complementar; mas isto porque quero mais do que uma reforma “digna”, gostaria mesmo de desfrutar de uma velhice repleta de vícios. Mas estará esta salvaguarda ao alcance da maioria? Duvido.

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Autocronologia

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Num filme com alguns anos, vemos imagens de uma rua numa cidade qualquer. Como adivinhamos num segundo a década em que tais planos foram colhidos?
Simples: olhamos para os automóveis.
O design automóvel é um datador mais fiável do que qualquer isótopo de Carbono. Patilhas vão e vêm, a moda dá voltas infindas aos mesmos eixos, a Arquitectura é duradoura demais para cronometrar com precisão a passagem de meras décadas.
Surge a questão: será que as linhas dos nossos veículos evoluem apenas pela pressão dos mercados e dos túneis de vento (Marketing e Ciência por fim juntos…) ou existirá mesmo um impalpável “ar do tempo” que os estilistas do automóvel devem prever?
A evolução no reino da Biologia opera segundo vectores comparativamente simples: os organismos que conseguem sobreviver ao seu meio ambiente proliferam e passam genes às gerações seguintes. No automóvel, as recompensas ao sucesso também existem: se um dado pormenor estético cai no goto dos compradores, por certo que vai arranjar forma de surgir até em máquinas de outros construtores.
Mas cada marca deve também, ano após ano, lançar novas versões, “actualizadas” dos seus modelos. E a obsolescência programada é uma bela arte: quem tem um BMW do ano passado deve ser levado a pensar que o seu automóvel já é “velho”. Não por carecer das últimas soluções técnicas ou por estar senescente, mas apenas porque já anda na estrada uma versão do mesmíssimo modelo com um look muito mais “moderno”. E ninguém quer ficar para trás, pois não?
Assim voltamos à cisma inicial: serão as antenas dos designers do ramo sensíveis às ínfimas vibrações do tal “futuro”? Estarão, neste preciso momento, encerrados em mosteiros budistas a antecipar o que vai ser o gosto dos automobilistas de 2012? Ou a coisa é ao contrário e são os seus caprichos sem tino que moldam a aparência das nossas cidades e, por extensão, a nossa ideia de “actualidade”?
Se a tal ciência mística existe mesmo, é de uma precisão arrepiante: basta ver modelos recentes da BMW, Mercedes, Opel ou Renault para lobrigar tendências comuns evidentes. Os planos despidos, quase ascéticos, de anos anteriores, estão a dar lugar a relevos ainda suaves, como se uma lenta cristalização operasse por debaixo das superfícies esculpidas pelos túneis de vento, erguendo sob essa pele metálica a ossatura de uma nova rispidez de ângulos e arestas.

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