Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Lendo a Liberalosfera nacional

Alguns tópicos de moda:

– Salazar, esse exótico discípulo do capitalismo, das sociedades urbanas e da rule of law;
– A Monarquia do Sr. D. Carlos e o parto terrorista da República;
– A vida antes da vida do feto;
– A escravatura do ponto de vista econométrico.

No princípio, aconteceu o liberalismo. Na verdade, foi inventado. Individualista. Progressista. Internacionalista, nacionalista quando convinha. Chegou cá atrasado e o engenho luso foi às compras, adaptou-o, fê-lo nosso à nossa maneira. Castiço. Composto. Liberal, mas… conservador. Eis o Liberal Português. É como aquele velho anúncio da rádio que falava dos dois pólos, o pólo norte e o pólo sul…depois havia o polilon. Por cá, do liberalismo sobra-nos o polilon. Com algum terylene.

Para ler e encaixilhar

Grande texto, o do Rui Tavares, hoje no Público, «Não façam só alguma coisa, fiquem parados», sobre reformas na Educação. Para abrir o apetite, duas passagens. Esta

«O consenso é o de que o estado da educação em Portugal é catastrófico. Se Vasco Graça Moura diz mata, Vasco Pulido Valente diz esfola, Maria Filomena Mónica desmancha, Miguel Sousa Tavares incinera, António Barreto espalha as cinzas e recomeça o ciclo: os professores são ignorantes, os alunos são violentos, os ministros são dominados pelos sindicatos e os sindicatos sentem prazer em que na escola não se aprenda nada. Esta imagem absurda é de tal forma dominante que a ministra da Educação não hesita em tirar dela proveito para diminuir publicamente os professores. Só há um problema: não é verdade.»

E esta:

«As reformas verdadeiras fazem-se com as pessoas reais. É fácil imaginar reformas com as pessoas que ainda não existem e achincalhar as que existem. Mais difícil é reconhecer que, se queremos restaurar a autoridade do professor na sala de aula, alguma coisa teremos de fazer para restaurar o seu prestígio na sociedade. Se queremos que os professores ganhem autonomia e se adaptem aos alunos que têm pela frente, em algum momento teremos de lhes dar confiança. E, acima de tudo, teremos de perceber que é com estes professores que qualquer reforma se fará, e que entre estes (ou quaisquer outros professores, da Tanzânia à Tasmânia) os excelentes serão sempre uma minoria. Uma reforma é um exercício de realismo.»

10 de Junho

Ontem foi 5 de Outubro. A República e tal, mais Cavaco Silva a falar para uma praça quase deserta. Mas eu já só penso no 10 de Junho. Afinal de contas, fui pai duas vezes em menos de 20 meses (o Pedro nasceu faz amanhã 15 dias) e tendo em conta o que vai para aí de pânico com a baixa natalidade, mais os riscos de não termos quem nos pague as reformas daqui a uns anos, razão pela qual o Estado apela ao nosso instinto procriador enquanto um dos desígnios mais patrióticos que pode haver, tendo em conta tudo isto que não é pouco, enfim, sobretudo se lhe juntarmos os sacrifícios inerentes (das noites mal dormidas aos DVDs de que se abdica para comprar fraldas e Halibut), tendo em conta tudo isto, repito, e para não vos maçar mais, acho que já vou merecendo, sei lá, uma comenda ou outra medalhita qualquer.

O regresso do regedor

Jorge Coelho descobriu-se aterrorizado pelos projectos do seu partido para a área da Saúde. A ilustre eminência parda declarou mesmo “a maior das desconfianças dos tecnocratas a tratar de coisas que competem aos políticos”.
E tem toda a razão. Se começam a ouvir os técnicos acerca de questões tão claramente “políticas” como o número de maternidades necessárias a Portugal, onde é que isto vai parar? Não tarda nada, já um bom soba não pode distribuir mercês a bons amigos e clientelas úteis.
Evitar esse pesadelo é um imperativo de cidadania. Devolvam aos nossos excelentes políticos a inteireza das suas competências. Deixem-nos construir um hospital em cada paróquia, uma maternidade em cada freguesia. Mandem a co-incineração para o estrangeiro, plantem um apeadeiro do TGV de cem em cem metros, tragam aeroportos em barda. O país cor-de-rosa agradece.

Senhor Homero: dirija-se à Avenida de Berna, se faz favor

Ontem foi um dia histórico. Diria mesmo: um dia épico. Em pleno Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, Anne Sofie von Otter teve o descaramento de cantar, imaginem só, canções dos ABBA. Esses mesmo. Os ABBA. Os foleiríssimos reis da pop escandinava dos anos 70.
Consta que alguns dos frequentadores habituais da sala, em compreensível estado de choque, olharam para a mezzosoprano sueca como se ela fosse o imenso cavalo de madeira que um dia se aproximou, sorrateiro, das muralhas de Tróia.

Era uma vez no país dos checks and balances

Uma história “exemplar”

Howards was walking his 7-year-old son to a piano practice, when he saw Cheney surrounded by a group of people in an outdoor mall area, shaking hands and posing for pictures with several people. Howards and his son walked to about two-to-three feet from where Cheney was standing, and said to the vice president, “I think your policies in Iraq are reprehensible,” or words to that effect, then walked on. Ten minutes later, according to Howards’ lawsuit, he and his son were walking back through the same area, when they were approached by Secret Service agent Virgil D. “Gus” Reichle Jr., who asked Howards if he had “assaulted” the vice president. Howards denied doing so, but was nonetheless placed in handcuffs and taken to the Eagle County Jail.

The lawsuit filed today alleges that Howards was arrested in retaliation for having exercised his First Amendment right of free speech, and that his arrest violated his Fourth Amendment protection against unlawful seizure.

O Novo Paradigma

Na New Yorker, Jane Mayer ensaia um relato perturbador acerca das mentes legais que, sob a liderança de David S. Addington, suportam Dick Cheney, uma equipa que parece revelar uma notória incapacidade para governar em democracia sob o incómodo dos tais “checks and balances”:

“Known as the New Paradigm, this strategy rests on a reading of the Constitution that few legal scholars share—namely, that the President, as Commander-in-Chief, has the authority to disregard virtually all previously known legal boundaries, if national security demands it. Under this framework, statutes prohibiting torture, secret detention, and warrantless surveillance have been set aside. A former high-ranking Administration lawyer who worked extensively on national-security issues said that the Administration’s legal positions were, to a remarkable degree, “all Addington.” Another lawyer, Richard L. Shiffrin, who until 2003 was the Pentagon’s deputy general counsel for intelligence, said that Addington was “an unopposable force.”

Como se escreve um livro (quase) sem querer?

1. Entre amigos, inventamos um pequeno livro monotemático de BD;
2. escolhemos desenhadores a convidar, começando pelos consagrados óbvios e só acabando com alguns nomes nunca publicados;
3. primeira mina detonada com um pontapé sem tino: ofereço-me para inventariar alguns episódios e situações que possam dar motes úteis aos artistas;
4. erro letal: anuo ao primeiro convite para escrever um argumento completo;
5. meto a cabeça no cepo para escrever mais umas quantas historietas;
6. a páginas tantas, já vejo a coisa como minha e ofereço-me para terminar a empreitada;
7. seguem-se semanas de alterações, de cortes para adaptar o verbo excessivo à parcimónia dos desenhos, de revisões e emendas de última hora;
8. seis meses volvidos, a cria está entregue aos bons ofícios da gráfica e eu posso voltar a fazer de conta que tenho vida própria. Começando pelo descurado Aspirina B.

Altos, bonitos e espertos

Saberão as pessoas inteligentes que são inteligentes? É uma questão que me tortura. A razão é simples. A dar-se o caso de as pessoas inteligentes não saberem que o são, todo aquele entendimento acaba por ser um desperdício. E o mundo, esse, prova-se mais mal feito do que já supúnhamos.

Há um outro assunto, parecido, que também não me larga. Saberão as pessoas bonitas que são bonitas? É isso. Pergunto-me sempre se elas, mal rompe o dia, olham o espelho, e suspiram: oh que beleza! Questiono-me sobre se, quando na rua os outros, enlevados, as fixam, elas sabem ao certo do que se trata.

E há uma terceira ocorrência: a de perguntar-me se as pessoas altas sabem que são altas. Pode parecer, este último, um exagero de perplexidade. Mas é para mim uma obsessão quotidiana.

De acordo. Quanto a alturas, podemos presumir nos interessados uma certa noção. As portas, as camas, mesmo os tectos, andam concebidos para servir uma média humana, e não custa supor que alguns mortais reparem nisso, e nem sempre com tranquilidade. Em tais momentos, saberão que são altos. Ou aquilo a que chamamos assim, nós, os médios de corpo. Mas que se passa com os bonitos, quando sozinhos? E com os inteligentes, uma vida inteira?

Diz-se, e a gente lê-o, que a percepção da própria beleza pode, exactamente em indivíduos mais favorecidos, sofrer um desarranjo. Em gente assim, conta-se-nos, surgem problemas de auto-estima, reportando-se mesmo casos graves. E imaginamos, decerto com razão, que, em algumas pessoas muito bonitas, tais problemas sejam gravíssimos. Meu Deus, dirão, porque me fizeste tão bonita? Virgem Santa, suplicarão, faz-me acordar amanhã um poucochinho mais feio, sim? São, todavia, orações com pouca fé no resultado. Nós próprios, pouca esperança poríamos num pedido para, um destes dias, aparecermos por aí mais perfeitos de cara.

E há a questão, tremenda, dos inteligentes. A gente diria que, para eles, seria uma bênção se nada de especial em si descortinassem. Se, em plena inocência, andassem só belamente orientados neste confuso mundo. Sim, esse ignorar da própria inteligência poderia ser-lhes, afinal, uma suprema forma de auto-preservação. Porque, nisto não tenhamos ilusões, se houver problemas próprios deste género de pessoas, esses problemas terão de ser atrozes. E inomináveis. Literalmente inomináveis, já que nós, os mais limitados, nunca para eles arranjaríamos palavras. Mas inomináveis, também, porque, no momento em que o sobredotado pudesse ir dar-lhes um nome, nesse exacto instante perderia a razão. E não nos disseram sempre que a loucura é uma protecção, uma misericórdia, da mente contra si mesma?

Eu não queria – juro que não queria – tirar moral nenhuma desta história. Mas, aí está, pôr travão num raciocínio é coisa que a mediania do meu discernimento não permite. E aqui fico eu, com a moral da história diante de mim, iniludível. Esta: a de termos de ser gratos aos Céus por nos terem feito um bocadinho menos inteligentes do que acharíamos óbvio, um bocadinho menos altos do que julgaríamos prático, um bocadinho menos bonitos do que pensaríamos justo.

É isso. Foi uma indizível sorte termos nascido tal e qual sucedeu: um tudo-nada feiotes, um nadinha para o atarracado e, suma felicidade, um niquinhas lentos de percepção.

O facto é que, com isso, nunca saberemos ao certo o que se passa na mente dos belos, dos altos, dos perspicazes. Nunca saberemos, sequer, se alguma coisa lá se passa. Mas, se problemas lá houver, só hão-de encontrar a nossa mais sincera, mais natural, incompreensão. E assim se terá feito – não é? – alguma justiça.

Antes que os amigos das FARC me visitem

Aqui fica a atrasada boa-nova: como já por cá tinha sido anunciado, o Caderno de Verão fechou e do seu feio casulo saiu o borboleteante 5 Dias. Um blogue em que cada dia da semana é entregue a um escriba, que trata de convidar amigos, conhecidos e credores para animar os dias à malta. Não posso dizer muito mais pois a coisa é incompatível com o meu browser arcaico, não me permitindo grandes leituras. Mas, a ajuizar pelo naipe de artistas residentes — Nuno Ramos de Almeida, Rui Tavares, Ivan Nunes e António Figueira — aquilo promete. Ah; e a Joana Amaral Dias também por lá escreve.

A Arrojada Parúsia II

Arrebatados pela Segunda Vinda de Mestre Arroja, os Blasfemos andam imparáveis. Agora, descobrimos que a proposta de cedência remunerada de votos não era um improvável exercício de ironia. Afinal, era apenas uma forma de dar “ainda mais encanto ao fascinante mundo da especulação financeira”.
Claro que o importante é mesmo jardinar os tais encantos, não impedir que o poder político fique apenas ao alcance de quem tem capital para investir. Afinal, a fazer fé nos Blasfemos, já toda a gente vende o seu voto a troco de promessas mirabolantes, portanto nem iríamos dar pela diferença. Já que suportamos o Valentim, podemos bem passar a fazer dessa chaga vergonhosa a regra oficial.
Presumo que a venda antecipada dos proventos laborais futuros de crianças e adolescentes não seja ideia a deitar fora sem cuidadosa ponderação pelos auto-nomeados cardeais do pensamento ultra-liberal (nada mais natural, depois das vénias e do beija-mão a quem já se entreteve a gabar as virtudes económicas da escravatura, fechando o olho míope ao pequeno pormenor da liberdade dos envolvidos). Tudo a bem dos “encantos” da especulação mobiliária; mas desde que não envolvesse os rebentos dos liberais, é bom de ver. Essas coisas da compra e venda da consciência são mesmo próprias do povinho: gente ilustrada fica de fora, a intermediar e dirigir tais transações cheias de encanto.

A Arrojada Parúsia

Nem vale muito a pena glosar pela milésima vez as fantasias alucinadas do regressado Professor Arroja, agora aclamado como santo padroeiro da Liberdade, nem mais. Do insigne combatente contra a tirania, recordo uma intervenção na TSF, já há um ror de anos, em que ele defendia o futebol como sendo a indústria de maior êxito, mesmo internacional, do nosso piolhoso país. Vai daí, bom, bom seria aplicar os seus métodos de gestão ao governo e convidar o supra-sumo dos empresários de sucesso, Pinto da Costa, para nos capitanear.
Não riam, que a coisa é verídica e séria. Para uma legião de académicos sem contacto com as realidades do nosso país, é mesmo boa ideia deixar os empresários lusos em roda livre. Que a coisa redunde quase sempre em conluios, cambalachos e outros arranjinhos limitadores da concorrência e da liberdade de escolha, é uma minudência sem qualquer interesse. Importa é o lindo mundo da teoria, onde o futebol joga com toda a lisura, sem fugas aos impostos nem corrupções, onde um pacote de sal tem o preço escolhido pelo mercado e onde figuras como Pinto da Costa e Valentim Loureiro são faróis a iluminar o nosso destino glorioso, entregues à Mão Invisível.
A liberdade de sermos dominados por quem pague mais. Eis o arrebatador programa destes génios incompreendidos.

Pode o Direito ser a alternativa à cegueira de uma Guerra Perpétua?

Douglas Burgess, na Legal Affairs

TO UNDERSTAND THE POTENTIAL OF DEFINING TERRORISM as a species of piracy, consider the words of the 16th-century jurist Alberico Gentili’s De jure belli: “Pirates are common enemies, and they are attacked with impunity by all, because they are without the pale of the law. They are scorners of the law of nations; hence they find no protection in that law.” Gentili, and many people who came after him, recognized piracy as a threat, not merely to the state but to the idea of statehood itself. All states were equally obligated to stamp out this menace, whether or not they had been a victim of piracy. This was codified explicitly in the 1856 Declaration of Paris, and it has been reiterated as a guiding principle of piracy law ever since. Ironically, it is the very effectiveness of this criminalization that has marginalized piracy and made it seem an arcane and almost romantic offense. Pirates no longer terrorize the seas because a concerted effort among the European states in the 19th century almost eradicated them. It is just such a concerted effort that all states must now undertake against terrorists, until the crime of terrorism becomes as remote and obsolete as piracy.

But we are still very far from such recognition for the present war on terror. President Bush and others persist in depicting this new form of state vs. nonstate warfare in traditional terms, as with the president’s declaration of June 2, 2004, that “like the Second World War, our present conflict began with a ruthless surprise attack on the United States.” He went on: “We will not forget that treachery and we will accept nothing less than victory over the enemy.” What constitutes ultimate victory against an enemy that lacks territorial boundaries and governmental structures, in a war without fields of battle or codes of conduct? We can’t capture the enemy’s capital and hoist our flag in triumph. The possibility of perpetual embattlement looms before us.

If the war on terror becomes akin to war against the pirates, however, the situation would change. First, the crime of terrorism would be defined and proscribed internationally, and terrorists would be properly understood as enemies of all states. This legal status carries significant advantages, chief among them the possibility of universal jurisdiction. Terrorists, as hostis humani generis, could be captured wherever they were found, by anyone who found them. Pirates are currently the only form of criminals subject to this special jurisdiction.

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Futebol: crueldade e ironia

Como se não lhe bastasse ter conduzido o Gil Vicente para os labirínticos meandros jurídicos do tristemente célebre Caso Mateus, o inenarrável presidente Fiúza insistiu, durante semanas, numa estratégia de tudo ou nada, que passava pelo recurso sistemático aos tribunais e por consecutivas faltas de comparência aos jogos da Liga de Honra. Esta semana, um tribunal de Lisboa indeferiu a última esperança legal dos gilistas e o clube lá teve que se deslocar a Vila do Conde, para defrontar o Rio Ave e evitar males maiores. O jogo foi ontem. O resultado: uma derrota por 1-0. E como é que aconteceu essa derrota, após vários meses de inactividade? Com um auto-golo, sempre humilhante e traumático. Um golo na própria baliza, depois de todos os tiros nos pés. Deve ser a isto que se chama justiça poética.

Aspirina V

Assim de repente, Fernando, não imagino este blogue sem a tua prosa refinada, a tua candura, a tua generosidade, as tuas provocações e o teu bom senso. Vê lá isso.

PS – Se a pré-despedida for apenas um estratagema para tirar da toca os colaboradores tresmalhados, já viste que acertaste na mouche, pelo menos na parte que me diz respeito.

Assinatura ilegível

Lisboa. Sexta-feira, 29 de Maio de 1986

Pela primeira vez neste país, está estampada, visível, na capa de um semanário de grande tiragem, a expressão ‘bancos de esperma’. Ouço o miúdo perguntar ao pai: ‘Ó pai, o que é esperma?’. Está o pai com visitas, está o pai na cervejaria, no estádio, está o pai com a mãe sentado no sofá. E este pequeno frémito do pai resume uma civilização.

Lisboa, 3 de Agosto de 1986

Querida Kárin,

Foi com certo contentamento e uma mais certa incredulidade que li a tua carta que ontem me chegou. Dentro de menos de três meses – se bem fiz as contas – o teu bebé irá nascer. E eu passo desde ontem o tempo a segredar, que digo eu, a gritar a mim próprio que eu nada tenho a ver com isso. Que o problema e, neste caso, também a alegria são exclusivamente teus. Quiseste de mim esse filho, agradeceste-mo com gentileza que eu jamais pensei me coubesse em sorte. Mas, com isso, estavam as contas saldadas.

Quiseste que o teu filho fosse meu. Desculpa, exprimo-me mal. Quiseste que o filho que tivesses achasse em mim o progenitor. Progenitor, sublinhaste – não ‘pai’. O que até (acrescentaste, como prevendo reservas minhas) nada tinha de original, pois umas amigas tuas tinham tido pouco antes um filho ‘pelo mesmo processo’.

O processo era simples, pude convir. Um boião esterilizado, um termómetro e um homem. O termómetro indica o dia azado, o homem produz, o boião transporta. O transporte devia fazer-se rápido, mas eram só dois quarteirões. Nada de listas de espera, nada de médicos e enfermeiras, nada de milhares de coroas para as clínicas de Estocolmo. Eu tocava à porta, tu abrias, um beijo furtivo, e reentravas na solidão. Que era só para a quebrares que nela agora te fechavas.

‘Descansa, ele há-de saber quem foi o progenitor’ – asseguravas. E eu ria-me intimamente de tantas garantias. Podes crer: tanto se me dava. Tinha achado engraçada a proposta que me fizeras, e havia em toda aquela andança certa aventura. E nem a gratidão de que afiançavas estar repleta conseguia enternecer-me. Pensava, sim (e quem mo levaria a mal), que o ‘processo’ era, como dizer, passível de simplificação. Dispensava-se o boião, as distâncias encurtavam grandemente. Mil vezes me propus fazer te essa contraproposta, com delicadeza suma. Mas mil vezes me dei conta de que nada indicava que só a mim me surgissem tais espertezas. Era evidente que isso não te estava nos propósitos. E não era já excelente elogio o que me fazias?

Porque, disso estou certo, não era só pelos meus olhos verdes ou pelo alourado dos meus cabelos que me pediras colaboração. Tu sabias que eu nunca te humilharia ao ponto de te lembrar, nem logo nem jamais, que também havia para essas coisas processos mais simples.

Agora a criancinha vai nascer. Crescerá sueco ou sueca. E um dia, daqui a muito tempo, perguntar-se-á, perguntará: Quem é o meu pai? Agora sou eu que to peço: Diz-lhe.

Teu do coração,

(assinatura ilegível)

de «Um Selvagem ao Piano»

Então é assim

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Nos tempos mais próximos, irei colocando aqui alguns textos – recentes uns, mais antigos outros – que tiveram pouca difusão. Quando achar que não há mais, ou que já não os há apresentáveis, ou que já chateei o suficiente, partirei. A vida é alhures, já dizia o outro. Em francês. Com outro chique.

O Aspirina, esse, continuará. Há mais marés que marinheiros. Quem sabe, leitor e amigo, os grandes dias que ainda o esperam aqui.

Este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório