Velhos são os trapos e a juventude está num farrapo, vincam-nos desde o bibe. A idade como problema dá pano para mangas, alimenta o corte e costura nos corredores, é pesadelo dos colarinhos brancos. Mas as linhas com que se cose o envelhecimento são o resultado do tecido social que nos cobre, sujeito às modas dos estilistas da idade. As concepções do que é ser velho ou jovem, do que seja deixar de ser jovem ou começar a ser velho, têm como pano de fundo uma tábua de valores onde cada um engoma a sua camisa-de-forças. Sem surpresa, no pronto-a-despedir da indústria criativa procede-se à estampagem dos mais sombrios preconceitos relativos à produtividade do geronte. Romper com as limitações, rasgar os medos, desembainhar a ignorância, pede tesouras visionárias.
O decano
Ele mora – ao que me dizem – na mesma cidade que eu. Não sendo o burgo nenhuma metrópole, é ainda assim grande o bastante para que não nos cruzemos. Até hoje. Aqui. Na blogosfera.
José Rentes de Carvalho escrevia já no blogue de Rui Ângelo Araújo, o antigo director da Periférica, de nunca suficientemente chorada memória – a revista, entendem.
Pois foi no passeio (quase diário) a A Origem das Espécies que fiquei informado: Rentes tem um blogue dele mesmo, Tempo Contado, título já dum diário seu, aparecido há anos. Mas mais: sabe-se agora quem poderá ser o decano de todos nós, blogueiros. Mais importante ainda: ele é um dos nossos grandes prosadores vivos.
Sirva de engodo este curtíssimo post:
AMAR MENOS
Ela diz:
– Sinto que o amo menos agora do que há três anos,
quando voltámos para a Holanda.
Aceno compreensivo, mas no íntimo pergunto-me:
entre amar menos e já não amar, qual é a diferença?
Álvaro Cunhal não fugiu de Caxias
A revista tem Denzel Washington na capa e chama-se Certa – mas, pelos vistos, às vezes não acerta. É distribuída nos supermercados Continente, publicada pela Edimpresa e tem como director José Fortunato. Os seus temas-base são: TV, Beleza, Culinária, Moda, Saúde e Actualidade.
Dentro da actualidade, surge uma coluna com sugestões para a quinzena. São três os livros referidos em breves notas de leitura: Salva-me, A criança que não queria falar e Máscaras de Salazar. Pois aqui é que bate o ponto. Sobre este terceiro livro, de Fernando Dacosta, há um texto que termina deste modo: «O ex-Presidente do Conselho não caiu de nenhuma cadeira, conservou, escondidas, duas cápsulas de cianeto fornecidas por Hitler, a PIDE matou Delgado sem o seu conhecimento, foi ele que sugeriu a fuga de Cunhal da prisão de Caxias.» Aqui está um erro crasso. Álvaro Cunhal fugiu sim, mas de Peniche.
No dia 3 de Janeiro de 1960, lembro-me muito bem, estava o meu pai no Montijo a descansar, e veio um guarda dos Serviços Prisionais chamá-lo a casa (na Rua Sacadura Cabral) para ir com um grupo de homens montar guarda ao cruzamento de Pegões. O meu pai não era polícia, mas sim motorista assalariado do Ministério da Justiça. Lá teve que ir, mas a resmungar, pois não fazia nenhum sentido Álvaro Cunhal e os outros fugitivos do forte de Peniche irem aparecer no cruzamento de Pegões, onde se juntavam as estradas do Porto Alto, da Marateca, de Vendas Novas e do Montijo.
Salvou-se disso tudo um bom vinho branco que eles trouxeram de Santo Isidro de Pegões. Ainda hoje quando sou entrevistado, digo que o meu vinho preferido é o branco de Pegões. Mas não confundo Caxias e Peniche.
José do Carmo Francisco
Fórmulas do paraíso
‘Música das esferas’, ‘melodias celestiais’: terá a música a ver com a eternidade – ou, mais, terá a eternidade a ver com a música? Um dia, lá em cima, é um dizer, teremos nós um iPod de memória eterna?
Enquanto as perguntas ficam, fatalmente, no ar, vai-se fazendo o que se pode. E daunlôuda-se a doce engenhoca dos sonhos sonoros com uma eternidade aos pedaços. O meu aparelhinho, um Zen da Creative, permite repetir um número até um fulano cair de podre. Não se diga que não é, então, um reflexo da eternidade.
Esta tarde saí (o tempo começa a imitar a Primavera) e eternizei-me em All by myself. Não o de Celine Dion (mas podia ser, e daí a capa do CD), sim a versão instrumental de James Last com o piano de Richard Clayderman. O autor da peça, fiquei a saber aqui, é Eric Carmen. O que eu já conhecia era a paternidade de Rachmaninoff para o primeiro tema, o da ‘estrofe’. Ele é autor de algumas das mais – bom, digamos – celestiais melodias cá em baixo, e talvez só superado por Tchaikovsky e Mozart.
Absolutamente genial na versão Last-Clayderman é o coro feminino que irrompe quando menos se espera, e que ressoa como numa imensa catedral.
A música das esferas, portanto? Talvez. Celestial é.
Blogues que marcam (2)
Em Novembro publiquei uma reflexão motivada por post do Luis. Tive a sorte de receber vários comentários interessantes, mas um deles foi especial. Assinado pelo sharkinho, figura conhecida no circuito, resumia o essencial desta cultura dos blogues: alguém dá um espectáculo à borla, alguém o aprecia por acaso. É de graça, no seu duplo sentido. Este espírito de jogral, pantomineiro, farsista, é o que reconheço em mim, aqui onde tudo pode ser ilusão e delírio, e é o espírito que cultivo nas interacções.
O Fernando fez questão de assinalar o 1º milhão de page views. Foi uma excelente lembrança pela oportunidade de fazer uma homenagem já atrasada. Cumpre destacar duas pessoas nesta ocasião: o Luis Rainha, que fundou este projecto e o viveu a seu modo, apaixonadamente; e o Fernando, não menos apaixonado, supremamente generoso, que nos honra com o seu saber e o amor a Portugal e à Galiza, irmã que guarda parte da nossa herança comum. Foi por causa do Fernando Venâncio, num certo e secreto sentido, que o Aspirina B ainda não se dissolveu nas banais neuroses centrífugas.
Por enquanto, não há resfriado que resista a esta sopa de letras.
Borralho do Referendo — “impor uma moral”
Dos variados sofismas que construíram a lógica do SIM, um deles ganhou especial popularidade. Por ser de simples entendimento, e de entendimento dos simples. Consistia na tese de que a criminalização do aborto era de origem moral (o que está certíssimo), logo deveria ser vista como uma imposição ilegítima (o que é de doidos). Os do NÃO, malvados, estariam a querer impor aos outros a sua moral, eis a denúncia que encheu peitos, papéis e ecrãs. E, se atravessássemos as meninges desses arautos, veríamos seres absolutamente convictos de estarem a descobrir a pólvora — indiferentes aos archotes que agitavam frenéticos.
Para lá do aborto como questão moral, temos aqui a moral como problema cultural e cívico. O argumento que detecta uma moral malsã, por confronto com o suposto direito à amoralidade, requer um sofisticado processo de reflexão. Implica que se recolham primeiro as definições propedêuticas da Filosofia e do Direito, sem as quais tudo o que se diga a respeito será apenas um psitacismo, uma verborreia — uma tanga no país da mesma.
Ora, se é um facto que Portugal é o pedaço mais estúpido da Europa — onde acima de 75% dos habitantes não foram além do Ensino Básico, e os licenciados não chegam a 10% da população; sendo que a cereja no cimo do esterco é a taxa de abandono escolar, a mais alta da União Europeia (a 25!) —, como esperar que desta mole de cabeças duras viesse uma decisão inteligente em questão que até confunde doutores e sábios das mais requintadas, e requentadas, academias? Não veio, mas a grei não tem culpa. Os culpados são alguns dos 10% que burilaram um argumento primário — ópio feito de cravos.
Nós que não somos de vaidades
Ainda a noite é uma menina – e noutros lugares do Planeta ainda vai alto o Sol. Assim, é de supor que esta mesma madrugada o Aspirina receba o seu passante número 1.000.000. Diz-se «passante», e não «visitante». Há quem venha aqui ter porque busca a página, você por exemplo, mas também quem ande aí ó tio ó tio pela blogosfera, e caia aqui por engano. Tudo isso está nesse número respeitável.
Mas mesmo as visitas se aproximam dos 500.000. Isto, em um ano, três meses e quinze dias, tem a sua graça.
Passa pouco da meia-noite, o marcador indica exactamente 999,864 passagens.
Traduzindo em letras: Durma bem.
Actualização
Pois é, assim não dá gozo. Esta profecia era das fáceis.
Gabriel Alves já não vai pedir desculpa
Leio no Diário de Notícias deste sábado (10-3-2007) uma notícia: «Gabriel Alves deixa a RTP em litígio». Esta situação interessa-me, não pelo assunto pessoal em si, mas porque agora, fora de RTP, Gabriel Alves já não vai pedir desculpa. E tinha desculpas a pedir. Trata-se do seguinte.
Aqui há meses, a RTP transmitiu um documentário feito por ingleses e por brasileiros no qual Gabriel Alves papagueou umas palavras mentirosas sobre o que se passou em Julho de 1966 em Inglaterra. Dizer que um defesa português «arrumou» Pelé é mentira – e uma mentira, mesmo repetida muitas vezes, não deixa de o ser. Na verdade em 19-7-66 Morais não «arrumou» Pelé porque ele já estava arrumado desde 12-7-66. Nesse dia, o búlgaro Voutsov teve uma entrada violenta sobre o avançado brasileiro. Por isso, em 15-7-66, contra a Hungria, ele não jogou e foi substituído por Tostão.
Contra Portugal, em 19-7-66 o treinador brasileiro arriscou muito, pois, além de ter colocado Pelé (ainda lesionado) em campo, fez jogar vários estreantes: Manga, Fidelis, Brito, Orlando, Rildo, Denilson, Lima, Silva e Paraná. Quase uma equipa inteira num «tudo por tudo» que, como é natural, não resultou. Daí a provocação miserável de atirarem as culpas do insucesso para as costas dum jogador português chamado Morais.
Gabriel Alves papagueou sem hesitações esta mentira e agora pelos vistos já não vai a tempo de pedir desculpa. Não só a Morais, mas a todos nós que ainda temos memória e sabemos como as coisas se passaram. É que, segundo a notícia do Diário de Notícias, Gabriel Alves tem 60 anos. O mesmo é dizer,idade para ter algum juízo e saber a diferença entre a verdade e a mentira. Se eu tenho 56 e me lembro, ele tem a obrigação de saber o mesmo que eu.
José do Carmo Francisco
Quiromântico
Continuando de mãos dadas, eis um estudo que deverá ser agarrado tanto pelas senhoras como pelos respectivos.
Daltónicos
Ninguém se surpreenderá com esta notícia. Porque já todos sabemos dela. Porque só acontece aos outros. E lá longe, parece.
Será mais uma das áreas cinzentas da vidinha; cujos cinzentos, parece, chegam para nos deslocarmos diariamente, sem chocar nas esquinas, sem precisar de contrastes cromáticos, sem ferir os olhos na luz. Achamos que não nos devemos incomodar, com tanta coisa já em que pensar, com tanto com que nos preocupar. Parece.
Zen it, criativo
A ideia de aplicar os princípios do budismo Zen a uma agência de publicidade poderá parecer redundante, tendo em conta o número de criativos que já se consideram iluminados. Acresce ser a iluminação do criativo uma simulação perfeita do verdadeiro satori, estado em que se rompe com o pensamento lógico. Este é um fenómeno para o qual muito contribuem os briefings que recebe, repletos de absurdos, paradoxos e enigmas insolúveis — o que faz deles genuínos koans. Inevitavelmente, tal como na prática do zazen, um criativo tem de passar a maior parte do seu tempo sentado e a meditar sobre o vazio. Com sorte, com muita sorte, terá a ajuda de um mestre sempre atento à sua evolução, numa mistura de doçura e severidade; que no Japão dá pelo nome de Roshi ou Sensei, e que no mundo dos reclames é conhecido por Director Criativo. Até o espaço físico da agência em tudo simula um templo, com as suas zonas para o departamento de contacto e departamento criativo a demarcarem a separação entre o profano e o sagrado. Nem faltam os altares contendo as santas relíquias, estatuetas olhadas com devoção e de onde emana uma aura de pacificação cármica: os cobiçados prémios. De facto, o dia-a-dia numa agência está cheio de rituais e cerimónias, só compreensíveis para iniciados; como as compungidas conversas sobre a porcaria que as outras agências estão a pôr no ar ou a procissão de rostos em júbilo celestial aquando da aparição dos clientes.
Coisas infelizes numa revista chamada Happy
A revista chegou-me às mãos de modo gratuito, embora ostente na capa o seu preço, que é 1 euro e meio. Esse foi o primeiro aspecto insólito. O segundo foi o título em inglês, sendo a revista portuguesa.
O terceiro ponto insólito foi o editorial assinado por Carla Ramos, no qual recorda o dia 20 de Janeiro, dia em que o prédio onde esta revista é feita – o número 11 da Avenida António Augusto de Aguiar, em Lisboa – foi cercado. Escreve a directora que o prédio ficou «seteado» por ambulâncias, bombeiros e polícia. Sitiado é que é, mas passou. Está nos dicionários, mas pelos vistos a revista não tem revisor. Na página 160, surge uma reportagem com um título insólito, também ele: «Um farol no Oceano». Ora se o hotel aí descrito está em Cascais, não me parece que seja no Oceano. Quando muito vê-se do Oceano, que não é a mesma coisa. Mas, adiante.
Sobre o quarto que lhe foi destinado, a jornalista escreve: «Clean é a palavra que melhor define o quarto que me foi atribuído.» Clean, assim sem mais nem menos. Não aparece em itálico nem em negrito. Nem em comas. Segue-se uma frase curiosa: «O barulho do mar chama-me a atenção e ao espreitar vejo que estou a dormir mesmo em cima da rebentação das ondas.» Se está a dormir, não pode perceber o barulho que – deste modo – não pode chamar-lhe a atenção. Por fim aparece o nome e a morada da tal Estalagem do Farol, o telefone e o site na Internet, mas (ó inclemência…) sendo a morada de Cascais aparece a palavra Lisboa a seguir ao código 2750-461.
Não pode – como muito bem diz o Gato Fedorento imitando o professor Martelo. Não pode – tento dizer eu. Mas a minha voz é muito fraca e talvez não chegue lá. De qualquer modo, teimosamente, continuarei a dizer: Não pode. E a repetir: Não pode. Não pode.
José do Carmo Francisco
Morrer a cantar
Mas um dos servos do Sumo Sacerdote, parente daquele a quem Pedro cortara a orelha, disse-lhe: “Não te vi eu no horto com Ele?” Pedro negou Jesus de novo; e nesse instante cantou um galo.
João, 18:26
O galo estava num dos terraços do palácio. Todos os que se aqueciam ao redor das brasas, no pátio, olharam para cima, para os salões. O galo andava pela berma do terraço. Dava uns passos e inclinava-se para baixo, como se estivesse a pensar seriamente em saltar. Os servos diziam uns para os outros que nunca tinham visto um galo nos terraços. Os guardas trocavam piadas que misturavam ovos, fomes e as servas da cozinha. Pedro afastou-se do grupo e caminhou em direcção ao portão. Não queria ficar ali, mais, à espera de um homem que nunca tinha compreendido, em quem nunca tinha, sabia-o finalmente, acreditado. Ao sair, uma velha embrulhada na sombra, que Pedro não reconheceu, disse-lhe: “Aquele galo vale mais do que tu. Ele nunca mentiu, e quando morrer vai alimentar alguém.” Pedro respondeu: “Aquele galo não sabe mentir. Mulher, eu já só desejo morrer a cantar.”
Ironia e maiêutica socrática
Sócrates não tem rivais. Nem na política, nem na opinião publicada. Não há uma única alma que consiga sequer ser credível na crítica ao Primeiro-ministro, quanto mais relevante. É a primeira vez que esta situação ocorre em Portugal. E é uma sorte estar a acontecer.
Os cães ladram e José Sócrates passa, a correr. Isto resume o principal da sua estratégia de comunicação. O episódio de maior notoriedade na aplicação desta filosofia do douto silêncio foi durante a crise da falta de quórum na Assembleia, em Abril do ano passado. De Sócrates, triplamente responsável perante os eleitores e a Nação, nem um vagido foi escutado. Falaram, pouquíssimo, os lugar-tenentes, nem sequer os coronéis deram a cara. E tudo passou, e rapidamente. Uma das maiores vergonhas na política portuguesa pós-25, sintoma de outros vícios debilitantes e letais para a democracia e a Justiça, foi anestesiada e varrida para debaixo do tapete. Em Portugal, a culpa morre solteira, e virgem.
Mas ele faz bem. Aliás, ele faz bem e o povo gosta; que ele faça, mesmo sem saber o quê. A oposição nada faz, e ainda consegue fazer mal esse nada. Do CDS ao BE, o que se exibe é um paradigma onde ser Oposição consiste em tentar, sempre e por todos os meios, prejudicar a actividade do Governo. Para os envolvidos, o processo é viciante, alienante. Quem aponta falhas imagina-se justiceiro, missionário da Verdade e do Bem comum. Contudo, como as falhas apontadas são invariavelmente demasiado técnicas ou insuficientemente legítimas, o resultado é o de suscitarem respostas suficientes da parte dos responsáveis governativos ou não captarem o interesse público. Porque insistirá a Oposição no seu suicídio?
Quanto aos jornalistas e publicistas, não se safam melhor. As críticas à pose e ao modo de Sócrates são a prova da falência da análise, agarrando-se ao despiciendo, ignorando o essencial. E o essencial é isso de Sócrates ser um chefe político que se decidiu a ser gestor do País. Há muito que a ideologia foi enterrada, só os zombies é que o ignoram, e, por isso, nenhum romantismo o move. Conhece a falibilidade e miséria moral dos seus pares de profissão, está vacinado contra o cinismo paralisante das elites portuguesas, e tem a coragem de ousar decidir a seu favor, a favor do futuro. Ou seja, é o primeiro político do século XXI, o século em que a própria política foi metida na gaveta.
Já temos um Sócrates, esperemos pelo Platão, sem o qual a coisa não fica composta, e o qual irá educar Aristóteles. Mas não o procuremos na Oposição; nem no PS, agora que mandaram o Cravinho dar a grande curva. Esses, todos, só têm cicuta para despejar na Cidade.
A serpente cega nos dedos de Fernanda
E de súbito descubro o rosto de Fernanda na pequena multidão que cruza o Largo das Duas Igrejas, no Chiado. De um lado a Paroquial da Encarnação; do outro lado a igreja privativa dos italianos de Lisboa. Reparo numa serpente cega num dos dedos de Fernanda e lembro-me, de imediato, da Margarida, a heroína do livro Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio.
Margarida no convés de um navio em viagem entre a Horta e Lisboa a conversar com um dos Serpas que fez parte, em tempos, da melhor linha de backs do Fayal Sport Clube nas tardes sem fim do Relvão da Doca. O mítico lugar onde os pioneiros do futebol na Ilha lançaram as raízes do Sporting Clube da Horta, do Fayal Sport Clube e do Angústias. Este lugar onde nos encontramos e eu admiro a beleza da serpente cega num dos dedos de Fernanda, era ponto de passagem de João Garcia quando o jovem aspirante regressava do quartel na Junqueira e, depois de ouvir os últimos boatos nos vários cafés do Rossio, subia por aqui até à Rua da Rosa, ao quarto alugado por cima da capelista, sempre à espera de uma carta de Margarida.
Agora reparo que hoje é dia internacional da mulher. Não sei porquê, mas a verdade é que dos dedos de Fernanda sai um suave cheiro a massa sovada. Afinal já não estamos no Largo das Duas Igrejas, e sim dentro de um romance. Fernanda está com pressa, olha para o relógio e explica que tem que ir abrir as portas da sua livraria.
Eu tenho as minhas obrigações e os meus compromissos. Mas o cheirinho da massa sovada permanece como se tivéssemos os dois, eu e Fernanda, saído do lugar determinado do encontro no Largo das Duas igrejas e entrado logo a seguir nas páginas dum romance inesquecível.
José do Carmo Francisco
Pensamentos para o serão
Escrito a meio de ler «Como se morre, Adolfo?», poema de Jorge de Sena, de 1972, à memória de Casais Monteiro:
Um dia acordarás
dizendo esta coisa
«olha, estás vivo».
Será uma coisa nova
que nunca ninguém te havia dito.
E assim todas as manhãs.
Chuva ou sol.
Até ao dia em que
estupidamente
ninguém houver para
dizer-to.
8 de Março de 2007
Os limites do infinito
Estica-se o braço em direcção ao céu nocturno. Aponta-se ao calhas. E repara-se na porção coberta pela largura de um dedo, o mais à mão. Cabem aí 50.000 galáxias.
Não se sabe quantas galáxias há. Nem se sabe quantas estrelas tem cada uma. Fazem-se cálculos, tenta-se encontrar a média. As contas oscilam entre 200 a 400 mil milhões de estrelas por galáxia. Valor similar para o total de galáxias, 200 mil milhões delas, quentinhas. Se quiserem agora descobrir o número de planetas, façam favor, desatem a multiplicar estrelas por galáxias até que o pensamento saia fora de órbita. Nem deus, assessorado pelas legiões angélicas, conseguiria decorar os nomes dessas extraterras e respectivos apeadeiros.
Vertiginoso espaço cósmico. Dimensões que ultrapassam a nossa compreensão. A cultura ainda não enfrentou as consequências antropológicas e civilizacionais que resultam do conhecimento astronómico — ou do da física das partículas, que é simétrico na vertigem, no espanto. Mas existe no universo um fenómeno que supera em grandiosidade e mistério o conjunto dos átomos, estrelas e galáxias: é o aborrecimento. Aqueles que olham à volta e se sentem fartos ou vazios. Estupendos seres de fazer inveja às potestades celestes. Para eles, nem o infinito é suficiente.
Um idioma fascinante, mas sem comentários
Neste atribulado mundo em que somos forçados a viver, parece que já não há tempo para nada. O escritor Ruben A., que conheci através de José Palla e Carmo (meu colega no Banco Português do Atlântico), tinha sobre este assunto no final dos anos 60 uma expressão muito curiosa: «Uma pressa para coisa nenhuma». Parece que foi o caso, desta vez.
Então um texto do Fernando Venâncio, uma prosa bem aparelhada sobre um livro recente de Ivo Castro e intitulada «Um idioma fascinante», passou aqui pelo blog sem um comentário, uma observação, um desdém sequer. Nada. No momento em que escrevo, acabo de confirmar o facto lendo de novo o texto datado de 25 de Fevereiro próximo passado. Não sendo eu filólogo nem especialista nesta matéria, não posso (mesmo assim) deixar de assinalar o caso. Trata-se de uma injustiça. E como acabei de ler o livro D. Duarte, de Luís Miguel Duarte (uma edição do Círculo de Leitores), acabam por conjugar-se as coisas.
Afinal o D. Duarte não foi só o primeiro rei que sofreu de uma depressão nervosa e que sobre o mesmo assunto escreveu. Ele foi também o introdutor na língua portuguesa de alguns latinismos que se tornaram, depois dele, vocábulos aceites por todos: fugitivo, evidente, sensível, abstinência, infinito, circunspecto e intelectual. Além do mais, este rei melancólico analisou os campos semânticos de diversas palavras, como previsto, percebido, avisado, saudade, desprazer, pesar, aborrecimento, nojo ou tristeza.
Já sei que me poderão dizer «Quem anda à chuva molha-se», significando que quem publica um texto num blog sujeita-se a não ter comentários. Mas se nós não nos interessarmos pela nossa língua, então corremos o risco de a perder. E depois começamos a falar inglês como nos computadores? Será esse o futuro? Bem eu gostaria que não fosse.
José do Carmo Francisco
Desportos juvenis
No metro de Amsterdão, não há sequer meia hora. Quatro adolescentes portuguesas e um moço de catorze anos (cálculo meu), sul-americano esse, vão sentados uns bancos adiante.
Grande galhofa. As miúdas ensinam português ao rapaz. «Vai-te foder!» E o miúdo, bom aluno, dá sonoridade latina à frase, audível em toda a carruagem. Ele ainda pergunta: «Pero qué quiere decir?» Mas as companheiras são cruéis. E passam à Lição 2: «És paneleiro?» E o rapaz, com graciosa pronúncia, vai repetindo.
Ninguém na carruagem os entende. O português é aqui língua desconhecida – embora procurada por alguns escolhidos, ao fim e ao cabo o meu ganha-pão.
Que fazer? Isto é: há que fazer alguma coisa? Estorvar a inocência? Infundir vergonha a duas ou três gerações da minha? Eu teria feito sucesso, sim, passando por perto deles e dizendo ao moço – que não me entenderia – «Giras, as miúdas, hã?» Podia fazê-lo, tenho cara para isso. Mas não fiz. Chegava a minha estação – e eu abandonei aquela aula, selvagem, da mais bela língua do mundo.
Saí eu, sem sucesso. Seguiram elas, sem vergonha.
«A Terceira Atlântida», de Fernanda Durão Ferreira
Em www.aterceiratlantida.com, a Editora Contraponto publica o mais recente trabalho de Fernanda Durão Ferreira, jornalista, investigadora e sócia da Sociedade Portuguesa de Geografia – secção de História.
A conexão da Ilha Terceira com a Antiguidade poderia parecer forçada, mas não é. Já Vitorino Nemésio tinha escrito: «A Geografia, para nós, vale tanto como a História.» A partir de textos de Platão que descrevem a Atlântida e de uma observação no terreno sobre algumas tradições terceirenses, a autora chega a uma conclusão: «as culturas tradicionais transformam-se; não desaparecem». As touradas à corda, a justiça da noite, o sangue cozido nas festas tradicionais terceirenses, o azul, o açor e o próprio nome da Ilha são aqui estudados à luz da relação entre os textos de Platão e a realidade real da Ilha Terceira.
O nome da Ilha pode ter uma relação directa com as ideias de Joaquim de Fiore para quem a idade do Pai compreendia o tempo desde a criação do Mundo até Moisés e a idade do Filho era o tempo desde Moisés até Jesus Cristo. A terceira idade, idade do Espírito Santo, era uma resposta à corrupção que grassava na hierarquia da Igreja do século XIII. Outra hipótese é o nome Terceira derivar na verdade de outro facto: depois das primeiras (Cabo Verde) e das segundas (Madeira e Porto Santo) as ilhas açorianas seriam as Ilhas Terceiras.
Um aspecto igualmente curioso e fascinante neste texto é a semelhança claríssima entre o mapa da Ilha de S. Miguel e a parte inferior do chamado painel do Arcebispo pintado por Nuno Gonçalves. O Infante D. Pedro, filho de D. João I, era o donatário de S. Miguel e as cordas estão dobradas numa semelhança quase total com o recorte da Ilha de S. Miguel. Na Net ou em papel, um texto fascinante.
José do Carmo Francisco