Zen it, criativo

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A ideia de aplicar os princípios do budismo Zen a uma agência de publicidade poderá parecer redundante, tendo em conta o número de criativos que já se consideram iluminados. Acresce ser a iluminação do criativo uma simulação perfeita do verdadeiro satori, estado em que se rompe com o pensamento lógico. Este é um fenómeno para o qual muito contribuem os briefings que recebe, repletos de absurdos, paradoxos e enigmas insolúveis — o que faz deles genuínos koans. Inevitavelmente, tal como na prática do zazen, um criativo tem de passar a maior parte do seu tempo sentado e a meditar sobre o vazio. Com sorte, com muita sorte, terá a ajuda de um mestre sempre atento à sua evolução, numa mistura de doçura e severidade; que no Japão dá pelo nome de Roshi ou Sensei, e que no mundo dos reclames é conhecido por Director Criativo. Até o espaço físico da agência em tudo simula um templo, com as suas zonas para o departamento de contacto e departamento criativo a demarcarem a separação entre o profano e o sagrado. Nem faltam os altares contendo as santas relíquias, estatuetas olhadas com devoção e de onde emana uma aura de pacificação cármica: os cobiçados prémios. De facto, o dia-a-dia numa agência está cheio de rituais e cerimónias, só compreensíveis para iniciados; como as compungidas conversas sobre a porcaria que as outras agências estão a pôr no ar ou a procissão de rostos em júbilo celestial aquando da aparição dos clientes.


A associação entre o Zen e o advertising atinge o paroxismo naquele criativo que mais discípulos inspirou, o divino William Bernbach. Talvez não seja por acaso que um publicitário dado a arriscar sentenças de cariz esotérico — como estas: In this very real world, good doesn’t drive out evil. Evil doesn’t drive out good. But the energetic displaces the passive. — seja também o responsável máximo pelo headline mais Zen da história, o carochiano Think Small. Estávamos em 1959, e o Ocidente ficou em estado de choque ao descobrir que a síntese das doutrinas religiosas do Oriente cabia num anúncio de imprensa americano para um automóvel alemão. São do Bill as seguintes palavras, Logic and over-analysis can immobilize and sterilize an idea. It’s like love — the more you analyze it, the faster it disappears. Os mestres Zen não dizem outra coisa, mesmo aqueles que não falam inglês.

Também do Bill o seguinte aviso que será avisado não repetir muitas vezes à clientela, Research can trap you into the past. No Zen despreza-se o passado, mas os consultores de marketing descobriram que as empresas, se pudessem, viveriam eternamente de costas voltadas para o futuro. Entende-se facilmente porquê: o passado pode ser descrito com números, o futuro tem de ser intuído com palavras. É estupidamente simples contar opiniões, é demasiado complexo criá-las. Assim nasceu uma indústria florescente que consiste em descobrir o que já se sabe, oferecendo às equipas de marketing a desculpa perfeita para não terem de arriscar; pois, qual será o gestor que se permite ir contra a “opinião dos consumidores”? — isto é, contra a opinião dos 20 ou 30 que participaram no focus-group, que tanto pensam uma coisa hoje como outra amanhã, que tanto desejam uma coisa amanhã como a esquecem depois de amanhã, que foram auscultados numa situação que em nada se relaciona com a experiência de consumo e que são capazes de comprar produtos de marcas cujas campanhas podem eventualmente vir a censurar prévia e publicamente?…

O nosso Bill passou a vida a tentar converter os clientes, saboreando a fortuna de ter vivido numa época em que os publicitários eram adorados. Foi um tempo em que se podia dizer, sem se ser excomungado pelo director de marketing, Rules are what the artist breaks; the memorable never emerged from a formula. Nestas duas orações está toda a mística da criatividade; como qualquer mestre Zen poderá atestar, entre uma chávena de chá e um sorriso trocista.

Porém, estas analogias são caricaturais e fortuitas. Por mais que o Zen, na sua versão comercial, se tenha tornado uma moda, um hambúrguer de pseudo-sabedoria oriental adaptado ao consumismo rápido, as agências não procuram nele inspiração ou soluções. Aliás, as agências em Portugal não procuram soluções em lado nenhum, antes preferindo continuar a perpetuar um modelo organizacional conservador que data de 1949, e agora esgotado da alegria que foi imagem de marca de um outrora feérico mundo da publicidade. O resultado é um ambiente de trabalho disfuncional, a estagnação intelectual dos profissionais, o culto provinciano da suposta genialidade. Maleitas que o Zen pode curar, por ser uma escola de atenção ao essencial.

Se alguém vier a fundar ou a gerir uma agência de publicidade de acordo com a sabedoria Zen, terá uma dupla garantia logo à partida: por um lado, essa agência fará tanto dinheiro como qualquer outra, pois o dinheiro é apenas uma consequência da falta de ética ou do bom trabalho (escolher cada uma das vias com o máximo cuidado — tudo se paga e com juros imprevistos…); por outro lado, vai viver com mais saúde, indo para a agência com o entusiasmo com que se vai para férias. A coisa não se faz por menos, senhoras e senhores. Está em causa admitir que a publicidade é uma profissão perigosa, e que o perigo maior está na perda do respeito pelos outros e por si próprio, essa imbecilidade que consiste em envenenar a comunicação e destruir a confiança — voragem de uma ambição cega que tenta transformar criativos em máquinas e agências em fábricas; isto é, que torna infecto o local de trabalho.

E desenganem-se os que esperam incensos enjoativos, frases “a la oriental” nas paredes, decorações minimalistas e jardins de areia ao entrarem numa agência Zen. Isso seria um kitsch “zen”, e não pode estar mais longe do que se pretende. Uma agência Zen reconhecer-se-á pelo seu espírito — que o mesmo é dizer, pelos sinais reveladores do invisível, pequenos nadas que dizem tudo: a inexistência de relações hostis, por palavras ditas ou por falta delas; a facilidade com que se solta o riso, mas o riso que aproxima e nasce da proximidade; o orgulho com que se conta a amigos, familiares ou estranhos que se trabalha lá, sem se conseguir decifrar a satisfação ou ter necessidade de a explicar. É só isto. Fácil de resumir, impossível de encontrar (??), e a cultura ideal para actividades criativas; tanto as profissionais como as pessoais, que sem destas não temos o aperfeiçoamento daquelas.

A palavra zen quer dizer meditação, um estado subjectivo que pode ocorrer em qualquer situação, não importando qual seja. Consiste em deixar a realidade preencher a consciência, acolhendo os dados exteriores com a mínima interferência psicológica. Quão mais puro for o material recebido pela consciência, mais moldável e resistente será o que a inteligência fizer com ele. A meditação é o ouro alquimista da criatividade. Zen it, criativo.

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Nota: texto publicado na revista ALICE, do Clube de Criativos de Portugal.

12 thoughts on “Zen it, criativo”

  1. Valupi,

    “A meditação é o ouro alquimista da criatividade”. (O Paracelso escreveu mais de cem obras mas nunca se lembrou dessa).

    Da criatividade e de muito mais. De facto, ninguém sabe o que acontecerá depois de tanta meditação. Podes apanhar com um sorriso seráfico a prometer paraisos ou levares uma espadeirada no pescoço. O mito da meditação Zen, e do Budismo em geral, sempre me fascinou, mas foi só até ler há uns anos atrás descrições de quando eles andam às cabeçadas uns com os outros para se aleijarem.

    O “Zenismo” foi um dos grandes apoiantes do militarismo de Sua Majestade Imperial nipónica e hoje está com uma boa reforma, modernamente passou do governo à Corporação e todos se dão muito bem com a fórmula de capitalismo meditativo que funciona tão bem como no tempo dos samurai e dos monges guerreiros.

    Mas és capaz de ter razão: o sector publicitário com falta de ética foi sempre muito agressivo. Venha Zen com fartura que não destoará.

    És um brilhante expositor, Valupi, mas este produto não to vou comprar. Mas amigos como sempre, here and in Osaka. E a Alice que desculpe.

    Dou a palavra ao Jorge Candeias, mas se ele se armar em burro e cretino e paspalhão e idiota a chamar nomes aos outros, serei eu próprio que convocarei o Terminator do planeta Kripton para lhe coçar o pelo. Ou a Françoise, se ela ainda andar por aí.

    TT

  2. O teu apelo, que demonstra sublime e absoluta destreza no domínio da Katana, soa à ‘voz’ de um Samurai que autoriza o seu inimigo a cometer Harakiri na impossibilidade de conseguir chegar à vitória.
    Morte honrosa!
    Mais! Que o faça e evite tornar-se num Ronin!

    A criativa forma de o dizeres, harmoniosa também, que nos faz sentir, é que é Zen e levam-me a acreditar que te podes tornar num Daimyo ou até mesmo num Shogun.

    Pausa para um chá?

  3. é como nas outras áreas que lidam com a criatividade: quem não a tem, sente-se mais seguro com aquilo que já conhece. então defende-se ideias de sucesso garantido – porque já o tiveram – e aposta-se nas ideias em segunda-mão, ou na reciclagem técnica. quem não é criativo tem medo de arriscar; mesmo quando tem discernimento não confia nele.

  4. Compadre TT

    Então, mas nem o coitado do Zen escapa à tua sanha conspiracionista?!… ‘Tou feito contigo.
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    py

    Concordo.
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    sininho

    Um chá é sempre bem vindo. Em especial se for verde. Ou, ainda melhor, branco. Enfim, leonino.
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    susana

    É isso. Exactamente.

  5. estás a concordar comigo? faltava a referência zen no meu comentário! então concordo com o py: hum…

  6. Ia sugerir verde mas no momento de postar recuei e… deixei em… branco.

    Branco sim mas leonino!? hum…

  7. Valupi,

    Não é “sanha”, menino, é mais um vício de gostar de chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes.

    “Zen At War” … (a book by a Zen Soto priest about) “a long and ultimately painful process of reflection on the meaning of Zen”.

    Check it out: Brian Victoria, Zen Budhism

    And good luck with the rest of non-conspiracionists.

    TT

  8. TT

    Muito boa sugestão de leitura, sim senhor, a de Brian Victoria. Mas, o que ela revela, é um fenómeno universal. No contexto japonês da época, e tendo em conta a história do Zen, a cumplicidade pareceu inevitável e bondosa. Hoje, parece escandalosa. Só que o Zen não é apenas o que com ele se faz num dado tempo e numa dada sociedade.

    Enfim, é mais uma demonstração da diferença entre religião e espiritualidade.

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