Nos dois meses que antecederam a segunda invasão da Ucrânia pela Rússia, os EUA avisaram que esse acontecimento estava próximo, estava para breve, estava iminente. Enquanto o Pentágono constatava não só que as tropas russas se aglomeravam perto da fronteira como toda a logística militar para a invasão desenvolvia-se em marcha acelerada, os russos negavam tal intenção, juravam que eram invenções “ocidentais” e que Moscovo pretendia negociar uma solução. Tantos foram os avisos da Casa Branca, inclusive chegando ao ponto de estabelecer datas precisas para tal, que a insistência gerou reacções de gozação no comentariado da esquerda antiamericana ao se constatar que as previsões falhavam sucessivamente. Para além do prazer em ridicularizar os americanos, os escribas (exemplos nacionais: Miguel Sousa Tavares, Francisco Louçã, Daniel Oliveira, etc.) também davam conta do aparente absurdo estratégico de tal eventual invasão. A tese que os enchia de confiança era a de que Putin não seria tão estúpido como Biden o pintava. Aquilo dos tanques e soldados russos à beirinha da Ucrânia, portanto, era só mais uma jogada provocatória de um mestre em geopolítica e, no fundo, ainda e sempre um agente racional.
A partir de 24 de Fevereiro de 2022, deixou de ser possível continuar a gozar com Washington e um vero dilema preencheu o bestunto dos antiamericanos: ou condenavam a invasão, ou justificavam a invasão. Ou seja, ou tomavam partido pela Ucrânia ou tornavam-se partidários de Putin, não existindo terceira via. Esta situação causou profundo sofrimento moral e graves obstáculos cognitivos, pois interferia com a identidade ideológica e pública de cada uma destas (muitas mais, não só as três citadas) personagens. Com impacto histórico, o PCP de imediato optou por Putin. Com ele, através do pior momento na carreira política de Jerónimo de Sousa (que borrou a pintura do que era até então um belíssimo quadro), os seus militantes e simpatizantes. Mas não só, personalidades insuspeitas de fanatismo, como o já referido Miguel Sousa Tavares ou Vital Moreira, entre muitas outras consideradas moderadas e intelectualmente sofisticadas no socialismo democrático e na social-democracia, tentaram colocar-se numa fantasiada posição equidistante que não passa de um putinismo suave. Isto porque qualquer argumento que remeta para putativas responsabilidades de países e organizações terceiras na decisão de invadir uma nação que não atacou a Rússia serão sempre hipócritas, sonsas e intelectualmente desonestas formas de justificar a decisão de Putin. A propaganda russa e as suas opiniões só divergem na retórica, não na lógica.
Obviamente, pode-se discutir com proveito qual o sentido e benefícios de ir admitindo na NATO países que outrora foram territórios da URSS ou que agora tenham fronteira com a Federação Russa. É uma problemática onde todas as posições são bem-vindas, e que até merecia mais debate público por estar em causa a segurança europeia. O que não é racionalmente admissível é comparar o crescimento de países numa coligação defensiva com a invasão de um país para fins de mudança de regime e conquista territorial. Tal como ensina Tucídides, os invasores têm sempre razão, a sua. Há uma qualquer narrativa agitada para consumo interno e externo pelo agressor. Podemos aferir da grotesca ilegitimidade desta segunda invasão da Ucrânia pelo absurdo gongórico usado como bandeira por Moscovo ao se agarrar a ameaças inexistentes (o ataque à Rússia pela NATO é algo impossível de acontecer sem um prévio ataque russo) e inexistentes realidades (o regime ucraniano é democrático, não é nazi). Estando esta propaganda moscovita a espalhar a pura alucinação, quem escolheu o lado putinista só podia ir aumentando o seu grau de irrealidade e desvario no tortuoso processo da dissonância cognitiva em que se afundaram.
Um dos locais onde este fenómeno putinista atingiu expressão maximalista é o blogue Estátua de Sal. Não conheço o seu autor, acho que nunca sequer trocámos palavra nas caixas de comentário, mas alguns textos meus foram lá parar durante alguns anos antes da invasão — por vezes também eu fazendo ligações para textos publicados aí. Pelo que conheço bem o que era a linha editorial do blogue até Fevereiro do ano passado, caracterizando-se por oferecer um panorama ecléctico de autores colocados no espectro político da esquerda, misturando-se estrelas consagradas com figuras sem projecção mediática, e ainda ilustres nulidades como aqui o pilas. Ora, tudo isso desapareceu, foi varrido, assim que os tanques russos começaram a avançar em direcção a Kiev. Em sua substituição apareceram justificações para os acontecimentos que punham o odioso da questão não em quem escolhera destruir e matar, sem ter sido atacado, mas sim em quem procurava defender-se e em quem estava agora a ajudar aqueles que se queriam defender. A evidente contradição de culpar a vítima precisava de cada vez mais delirantes e inumanas justificações para ser mantida, e foi nesse terreno que o autor do blogue quis erguer um bastião invencível. Trouxe, pois, a propaganda russa na sua versão acéfala, onde os “americanos”, o “Ocidente”, a “Europa” se transformaram em entidades fantásticas, mitológicas, que deviam a sua existência ao único projecto que lhes dava sentido: destruir a mãe Rússia num apocalipse nuclear. Chegados aqui, sendo este o alimento mental de que dependiam para proteger a identidade, não espantou assistir ao nível seguinte da demência. A aberta, consciente, intencional adesão à carnificina de militares e civis ucranianos, num primeiro momento. E o êxtase contemplativo face a uma ordem mundial onde a tirania criminosa de Putin conseguiria impor-se como modelo universal, acabando com as actuais democracias, eis o pináculo da alienação.
Vou dar um singular exemplo do que é o putinismo enquanto aberração cognitiva, aqui: Segundo a Senadora Diana Ivanovici Șoșoacă, os EUA provocaram o terramoto na Turquia e na Síria. Quem ler os comentários, confirmará que o autor do blogue não estava na reinação. Para ele, e para grande parte dos maluquinhos que agrega e congrega, os americanos lembraram-se de atacar a Turquia (aliado dos EUA) via terramoto. Como, porquê ou para quê? O putinista não perde tempo com esses pormenores. Ele sabe que para os americanos tudo é possível, só por serem americanos. Esses cobóis podem mandar terramotos, vulcões, maremotos, inclusive perigosíssimos arco-íris, para onde lhes der na mona. Há até quem garanta que foram os americanos que pegaram fogo ao Sol.
Que se pode dizer? Como contra-argumentar quando a perturbação mental atinge este estado? Aceitam-se sugestões.