Aviso aos pacientes: este blogue é antianalgésico, pirético e inflamatório. Em caso de agravamento dos sintomas, escreva aos enfermeiros de plantão.
Apenas para administração interna; o fabricante não se responsabiliza por usos incorrectos deste fármaco.

Dominguice

O óptimo é inimigo do bom. Talvez este seja o ensinamento mais importante alguma vez descoberto pela humanidade (popularizado por Voltaire). Porque descreve na perfeição a lógica da evolução biológica, onde não existe estado final — óptimo — para um qualquer organismo, antes qualquer estado de cada ser vivo está sempre em precário equilíbrio com o efémero meio-ambiente. E assim inevitavelmente na sua descendência. Porque se aplica também perfeitamente à lógica da democracia, a qual pressupõe a inexistência de uma qualquer “verdade” política para além do próprio fundamento da democracia na liberdade e na lei. Daí propostas diferentes, até radicalmente contrárias, serem democraticamente legítimas — boas — caso respeitem a soberania do voto e do regime. E porque, afinal, pode ser um critério de saúde mental, guia para a criatividade prática, profiláctico contra ansiedades e depressões por igual.

O que é óptimo fecha, o que é bom abre.

Uma imensa Fox News

Sobre o caso do momento. O Frederico Pinheiro não podia levar o computador. Ponto. A partir daqui, o que interessa a hora das chamadas (feitas como se impunha que fossem), os membros do governo informados (como deviam ter sido), a entidade policial alertada (e foram alertadas várias) e outras questões ainda mais laterais totalmente irrelevantes para o caso, que mais ridículas se tornam na boca prolongada, e na desboca, dos deputados inquisidores?

A situação ocorrida no ministério foi insólita e inesperada, mas penso que muito clara para todos. O homem despedido quis levar o computador com ele (ainda não explicou porquê) e, encontrando resistência, forçou-o recorrendo à violência. As restantes assessoras e as funcionárias apenas podiam fazer uma de duas coisas: ficar a olhar para ele passivamente enquanto cometia o ilícito (tornando-se nesse caso cúmplices, pelo que também já estariam no olho da rua); ou impedi-lo de levar o computador: com as próprias mãos ou pedindo que as saídas do edifício fossem bloqueadas. Feito tudo isso, não é de esperar, obviamente, que o assessor corrido venha tecer elogios às ex-colegas ou ao ministro, muito pelo contrário, faz-se de vítima, e pouco mais haverá a dizer a não ser que se aguardem as conclusões do processo, sobretudo se houve interferências indevidas em documentos classificados, que tipo de informação não autorizada estava no computador e o tipo de sanção que será aplicada ao ex-assessor infractor. O ministro apenas o despediu, coisa que tinha todo o direito de fazer. Aliás, se me permitem um aparte, finda a geringonça, o que fazia ainda um militante bloquista no governo?

Por isso, a comunicação social já acabava com as suas inqualificáveis figuras, até porque já ninguém aguenta. Sobretudo ver jornalistas, praticamente todos (os mesmos que nos dão diariamente as notícias mais diversas), a tomarem os espectadores por acéfalos, a assumirem descaradamente o papel de opositores ao Governo, recorrendo, como disfarce e apoio, a todos os comentadores de direita ou de extrema-esquerda que puderem arrebanhar para a sua “causa”. A que propósito é que se põem a defender directa ou indirectamente através de insinuações várias o ex-assessor? Que tipo de imprensa e de comunicação social existe em Portugal? É tudo a Fox, a que na América está ao serviço do Trump, essa criatura deplorável? Uma, aliás várias “news network” em campanha permanente, escamoteando o óbvio ? A nossa comunicação social é, na Europa, uma vergonha. Jornalistas sem consciência profissional, uma ERC que não existe, ninguém que assegure um mínimo de pluralismo e isenção. Um circo, e de má qualidade.

Da presidência Santini à magistratura da pedrada

Marcelo poderia ter encontrado um meio de levar o PCP a aprovar o Orçamento para 2022, o Orçamento mais à esquerda de sempre. Bastaria que desse aos comunistas uma condecoração simbólica pelo seu patriotismo na forma de uma declaração pública de apelo e outra de aplauso. Jerónimo teria assim recebido a força para fazer valer a racionalidade na Soeiro Pereira Gomes. Só que tal cenário levaria Marcelo a um duplo escândalo, dupla traição para a direita: ficar como cúmplice voluntário e empenhado tanto do PS como do seu acordo com o PCP. Daí ter rapidamente optado por convocar eleições, talvez acreditando que nascesse uma qualquer conjuntura eleitoral que catapultasse o PSD para o poder. Saiu-lhe um pesadelo eleitoral, com a maioria absoluta do PS e o crescimento gigante do Chega.

Enquanto com um PS minoritário a aceitar políticas do BE e do PCP (depois de 2019, só deste último) o papel do Presidente da República assumia relevância estratégica para manter a estabilidade, salvaguardando um ambiente político onde o interesse nacional e o bem comum tivessem respaldo institucional, tal função desapareceu em 2022 com a estabilidade política a ser garantida exclusivamente pelo Parlamento. De imediato, Marcelo deu sinais de ter ficado desorientado, sem saber o que fazer com o resto do seu segundo mandato. Para agravar, a direita igualmente se tinha afundado numa nova fase da sua decadência com o fracasso de mais um líder do PSD, a fragmentação do eleitorado laranja tradicional e o crescimento brutal dos protofascistas do Ventura. Confuso, Marcelo achou, ou foi levado a achar, que sobre os seus ombros recaía a titânica incumbência de salvar o PSD e de se fantasiar líder da oposição (posto não existir oposição válida à direita, só incompetência e chungaria). E, portanto, começou a disparatar com cada vez maior insensatez ao longo dos meses. O corolário deste desatino cognitivo e deontológico aconteceu no passado dia 1 de Maio, noite dentro, quando deu a ordem para se chantagear o primeiro-ministro via Expresso. A crise política assim aberta poderia ter causado danos gravíssimos a Portugal e aos portugueses caso Costa não tivesse resistido à pressão de todos os lados, inclusive ao seu partido.

Ora, Marcelo é um dos melhores actores políticos da direita na actualidade, vai sem discussão nem carência de explicar aos néscios. Há até quem o considere o melhor de todos, incontestavelmente e a muita distância dos restantes. Quando uma figura deste calibre se revela uma ameaça ao regular funcionamento das instituições, em radical violação do seu juramento como Presidente da República, não é só o indivíduo que está em causa. É também o grupo de valores e interesses que ele representa, estendendo-se a responsabilidade a quem é cúmplice da sua ultrapassagem dos limites constitucionais e políticos como Chefe de Estado.

A cena pífia de estar numa homenagem à selecção de andebol em cadeira de rodas a deixar mensagens dúbias para os jornalistas destacarem como armas de arremesso político conseguiu ser superada negativamente pela cena patareca de ontem ter anunciado ir falar sobre não sei quê (leia-se: Galamba) e depois não falar mas afinal aparecer na rua em diálogo com os jornalistas só para dizer que nada tinha a dizer. É o retrato de uma pessoa que perdeu a noção do efeito das suas acções e omissões públicas, um político atarantado.

Que resta à direita? A legião dos editorialistas sectários, jornalistas pé-de-microfone, jornalistas militantes, comentadeiros linchadores e pulhas em geral. São a claque do Presidente que derrete a sua autoridade no desconchavo da verborreia e do Presidente que ameaça destruir São Bento com uma bomba que tem lá guardada em Belém — Presidente que depois passa os dias a abrir buracos na calçada da Constituição para oferecer pedras à turbamulta que faz pontaria ao Governo e ao PS.

Entretanto em Rilhafoles

«Não será só António Costa a tirar consequências da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP. Marcelo Rebelo de Sousa, que ontem avisou que “o prestígio das instituições é o mais importante” e que “tudo o resto depende disso”, acompanha em estado de alerta a sucessão de audições no Parlamento e da avaliação que venha a fazer dependerá em grande parte a decisão sobre se e quando ressuscitar a tese de dissolução da Assembleia da República.

“A falta de alternativa política ao Governo deixou de ser prioridade” nos cálculos do Presidente, confirma fonte próxima, explicando que o seu foco passou a ser outro: ava­liar a dimensão do ‘pântano’, e não será por acaso que colou as audições parlamentares de quarta-feira, recheadas de contradições e exuberantes pormenores sobre os incidentes no Ministério das Infraestruturas, ao aviso de que “fundamental” é o prestígio das instituições.

Politicamente, a convicção em Belém é que se o ministro João Galamba não resistir à comissão de inquérito, não é ele que cai, é o Governo. Mas é cedo para aferir, e o Presidente, para já, vai carregando na tecla dos argumentos de natureza institucional que o levaram a defender junto do primeiro-ministro que Galamba devia sair.»


Marcelo-expresso

Perguntas simples

Depois da tentativa de cerco à sede do PS, que não causou a mínima perturbação nos restantes partidos e demais entidades supostamente defensoras da democracia, Ventura já reuniu as condições para lançar a milícia paramilitar do Chega, devidamente fornecida de camisas castanhas?

Consigliere de Estado

«Luís Marques Mendes considera que António Costa cometeu o “pior erro político de todo o seu mandato” ao “declarar guerra” a Marcelo Rebelo de Sousa. No seu espaço de comentário habitual na SIC este domingo, o ex-líder do PSD sublinha que, ao manter João Galamba enquanto ministro, António Costa mantém um “cadáver político que ainda mexe”, mas que já perdeu a autoridade.»

Fonte

Esta personagem é Conselheiro de Estado por escolha directa de Marcelo. Aqui está ele na sua missão de emporcalhar o espaço público a partir de um canal de sinal aberto. Repete, prolonga, alarga o inconstitucional ataque do Presidente da República ao Governo em funções. Chafurda na raiva de boicotar um ministro. Expõe-se como agitador profissional para quem vale tudo na política. Caga d’alto no interesse nacional e no bem comum.

Mas o pior nem é o decadente papel a que se entrega, em conluio com quem lhe dá antena e alta influência. O pior é a direita actual não parecer ter quem pretenda ser respeitado pelo sua decência e coragem.

Revolution through evolution

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Conspiracy Theorists May Not Always Think Rationally, but They Don’t Generally Believe Contradictory Claims
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Dominguice

Platão e John Rawls. 2300 anos a separá-los, duas poderosas experiências mentais a uni-los no mesmo propósito: mostrar que a humanidade vem da comunidade, não do que a Natureza nos deu e para o qual nos puxa se a deixarmos. A primeira aparece na República, Livro II, através da lenda do “Anel de Giges”. Que faríamos caso obtivéssemos o poder da invisibilidade? Muita merda, da grossa, é a imediata conclusão sem carência de queimar as pestanas com gregos ou troianos. A outra está no A Theory of Justice, onde se reactualiza uma antiga questão que ganhou popularidade a partir deste livro graças à expressão “véu da ignorância”. Que regras escolheríamos para uma sociedade onde iríamos viver num futuro hipotético sem ter a certeza de qual seria a nossa distância ao poder, o nosso estatuto, a nossa riqueza, as nossas debilidades, as nossas carências, as condições concretas que viriam a condicionar a nossa existência? Tal desafio leva-nos a sair de nós próprios e a pensarmos como bondosos legisladores. Estamos no terreno da reflexão sobre o contrato social.

É avisado não ignorarmos o invisível dos outros, sábio vermos a ignorância em nós.

O grito da selva

Na comunicação em que anuncia a recusa da demissão do ministro das Infraestruturas, o primeiro-ministro não fez qualquer referência explícita ao Presidente da República. Nem a podia fazer, posto implicar duas calamitosas consequências: (i) a violação da privacidade e sigilo institucional entre duas das mais altas figuras do Estado; (ii) o reconhecimento público por parte do primeiro-ministro de que o Presidente da República não respeita a Constituição e abusa dos seus poderes. Mesmo quando interrogado à queima-roupa sobre a pressão de Marcelo contra Galamba, Costa foi exemplar nas respostas que deu, usando de contenção magistral que fica como lição só possível de ser dada por um exímio estadista.

Aparentemente, toda a gente aceita que o Presidente da República saia incólume da violação dos seus deveres e limites presidenciais, do conluio com a imprensa para efeitos de chantagem política, e da atitude deplorável ao apelar ao boicote de um ministro e respectivo Governo. Toda a gente.

Não admira, então, que os mesmos que aqui aplaudem o desprezo pela Constituição, ou que se calam indiferentes, sejam os mesmos que aplaudem a utilização da Justiça como arma política, ou que se calam indiferentes.

Porque o princípio imoral na origem dos dois fenómenos é comum: a pulsão para trocar o Estado de direito democrático pela selva. Os que se sabem com força querem usá-la, consagram a lei do mais forte. A decência (ou o seu simulacro) pode esperar para quando tomarem o poder.

Duas ironias

O fanfarrão que ameaça repetidamente espancar alguém, e que depois ao ser confrontado foge logo com o rabo entre as pernas, desperta sonoras e sadias gargalhadas na assistência. Marcelo Rebelo de Sousa colocou-se nessa ridícula figura, arrastando no vexame toda a direita e a legião dos editorialistas e comentadores ao seu serviço. Só que o pesadelo está apenas a começar.

João Galamba foi transformado num superministro dado ter resistido à pressão máxima alguma vez registada na democracia portuguesa para a exclusão de um membro do Governo: pela primeira vez desde o 25 de Abril, o Presidente da República, em violação dos seus deveres constitucionais, anunciou pública e explicitamente que queria a demissão de um ministro. Recuperando o discurso de 2017 onde o mesmo Presidente deixou claro ao País que pretendia a demissão de Constança Urbano de Sousa, a essencial diferença está em não o ter explicitado. Usou uma fórmula retórica vaga — “valia a pena pensar se quem no plano da Administração Pública exercia funções que tinham conduzido a certo resultado eram as pessoas indicadas para a mudança” — nem sequer nomeando o ministério para que apontava o tiro de forma a manter a aparência de estar a intervir dentro das suas competências. Todavia, o contexto era óbvio quanto à exigência de lhe servirem a cabeça da ministra da Administração Interna. O que a ex-ministra e o primeiro-ministro aceitaram como inevitável — ou se calhar apenas ela.

Com Galamba, entrou-se em modo Feira da Malveira e foi o despautério completo. A húbris de quem sempre protegeu todos os abusos e perversões contra o Estado de direito democrático feitos pelo Cavaco da Inventona, então teorizando ser a Presidência uma cidadela invencível que se podia permitir atacar sem ser atacada, levou Marcelo a chantagear o primeiro-ministro recorrendo a um órgão de comunicação social dito de referência. Esse excesso ultrapassa a esfera do Galamba, Marcelo estava ofuscado com Costa, perdeu a cabeça e a dignidade presidencial. Mas agora vai ter de continuar a levar com os dois. Em crescendo de azia.

Desta cegueira e amadorismo, na origem da conduta do inquilino de Belém, nasceu uma dupla ironia que fica ao dispor do ministro das Infraestruturas. Começa por isso de Galamba estar agora blindado contra a chicana da oposição e o charivari dos impérios mediáticos da direita (onde se incluí a RTP). Antes da crise, eram uma fonte de pressão que se orquestrava com a insanidade das ameaças de dissolução. Após a crise, são cães que ladram e não mordem, limitam-se a ver o ministro ressuscitado a passar. E atinge a hilariante ironia de Galamba ser o monumento vivo, falante, actuante, quotidiano, horário da suprema lição política dada por Costa à direita decadente. Quão mais o perseguirem, mais forte ficará. Maior será o sofrimento e rancor dos impotentes.

Fantasiemos um outro Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa é unanimemente considerado um dos políticos mais capacitados em actividade, tendo um perfume de genialidade em resultado do prestígio como jurisconsulto e do brilhantismo como comentador. Acresce a famigerada reputação como mentiroso e gozão de alto coturno, que nele é donaire. Sendo um dos maiores especialistas a respeito da Constituição que jurou cumprir e defender, não precisa de explicações para perceber o que fez ao ministro das Infraestruturas, ao primeiro-ministro, e ainda ao Governo a que ambos pertencem, na comunicação da passada quinta-feira. Consistiu num boicote, ofendendo o estatuto, credibilidade e honorabilidade desses seus três alvos. Porque a direita domina monopolista a comunicação social, porque o Governo e o PS não podem responder directamente, e porque PCP e BE não querem saber do Estado de direito democrático quando se trata de causar danos aos socialistas, uma historicamente original violação dos deveres constitucionais por parte de um Presidente da República está a ser não só normalizada como legitimada — e até aplaudida.

Que levou Marcelo para esse abuso? Nada que tenha alguma relação com estratégia, sequer com inteligência. Foi antes o corolário dos abusos imediatamente anteriores: a nota acerca da recusa de Costa em cima das suas declarações e a chantagem via Expresso. E foi igualmente a consequência dos abusos ocorridos em crescendo a partir de Outubro de 2022. A martelagem no espectro da dissolução da Assembleia, chegando a causar incómodo público e apelos à sua cessação por figuras relevantes na direita, foi um abuso dos poderes que lhe foram confiados para ser um guardião da funcionalidade do Estado e da saúde da democracia. Em vez disso, introduziu incerteza, confusão e irracionalidade no ambiente político. Acabando por criar uma crise política muito grave e potencialmente catastrófica.

As causas para este comportamento indigno da posição que ocupa na hierarquia da República serão mais que muitas. Não ambiciono conhecer sequer a milionésima parte. Mas uma delas, incontornavelmente, está na sua obsessão com o editorialismo e com o comentariado. A retórica usada na declaração de 4 de Maio é paleio de advogado, não de estadista. Tudo consiste num argumento que coloca a “responsabilidade” como conceito bicéfalo, moral&político, cuja semântica plástica se estica a bel-prazer para incluir João Galamba, e depois se continua a esticar para incluir António Costa. Porém, porque estamos no domínio do sofisma e da farsa, o conceito deixa de ser esticado quando todos esperavam, na economia do texto, que chegasse ao próprio autor. Isto é, e logicamente, o Presidente da República é o responsável último pelo primeiro-ministro, o qual é o responsável último pelo ministro, o qual é o responsável último pelo adjunto, o tal fulano na origem da cegada. Se o escândalo é realmente como o pintou, estava no seu poder agir à altura da necessidade política. Donde, Marcelo tinha de se responsabilizar pela situação caso a coerência fosse uma cena que lhe assiste. Não é, tal como não assiste aos comentadores e editorialistas, só atrapalharia a sua prodigalidade. Foi para gáudio desta classe de artistas que Marcelo deu voz a um exercício de enxovalho, literalmente entregando-se à prática da “afronta” que os seus colegas comentadeiros agitaram como pecado mortal de Costa ao recusar a ingerência presidencial no Governo. O interesse nacional e o bem comum não foram servidos pela intervenção presidencial, exactamente ao contrário.

Fantasiemos um outro Marcelo, muito parecido com o que nos saiu na rifa mas com a diferença de ter recebido uma injecção de inteligência e estratégia algures nas 48 horas após a manifestação de autoridade constitucional e política de Costa. A sua reactiva declaração passaria a ser uma variante deste esboço:

«Muito boa noite,

Portugueses,

Duas palavras. Uma sobre o passado. Outra sobre o futuro.

Uma sobre o passado. Como sabem, ocorreram acontecimentos inadmissíveis na equipa do Ministro das Infraestruturas. A gravidade dos factos conhecidos, mais a dos que ainda falta apurar e esclarecer, levaram-me a enviar ao primeiro-ministro a minha preocupação com a credibilidade, confiabilidade e autoridade do Ministro, do Governo e do Estado.

Posteriormente, o Ministro entendeu pedir a demissão e o Sr. Primeiro-ministro entendeu recusá-la. Isto já é passado.

E uma palavra sobre o futuro.

Não compete ao Presidente da República escolher Ministros, demitir Ministros, interferir indevidamente na acção do Governo. A Constituição é muito clara a esse respeito. Mas compete ao Presidente da República ser um aliado institucional do Governo, coisa distinta de ser um aliado político. Como representante de todos os portugueses, a minha aliança política é com a República Portuguesa. Com essa jurada missão, tudo farei, sempre, para garantir o regular funcionamento das instituições democráticas.

Nesse sentido, apoio a decisão do Sr. Primeiro-ministro ao manter João Galamba como Ministro das Infraestruturas. E desejo a ambos, estendendo o voto a todo o Governo, que tenham sucesso na realização dos urgentes, complexos e cruciais processos e projectos executivos em curso e em planeamento. É dever de todos os responsáveis políticos contribuírem para que o Governo tenha as melhores condições para executar o seu programa.

A experiência, a prudência e a sabedoria do Povo Português serão testemunhas, e juízes, das vossas escolhas.

Muito boa noite.»

 

A asfixia mediática a sério e o Presidente

Já aqui falei nisto, já outros falaram, mas, francamente, os canais televisivos andam a bater no fundo há tempo demais no que respeita aos comentadores de política nacional para que os cidadãos fiquem calados. Não pode valer tudo para ganhar audiência ou para os senhores jornalistas se sentirem poderosos. Os jornalistas não são políticos (a menos que queiram copiar a Fox News, o que seria francamente mau e, no final, dispendioso para os patrões, como se viu na América, onde as mentiras e o excesso de trumpismo saíram caro). Também o comentário político não devia ser um espectáculo, em que, quanto mais malévolo ou maluco o comentador, mais palmas recebe. Nem tão pouco devia ser uma campanha de recrutamento de tropas da direita, com recurso aos reservistas e tudo, para o objectivo comum de deitar abaixo o Governo eleito não há muito tempo com maioria absoluta, ou justamente por causa disso. Não pode. As direções de informação não podem servir para subverter a democracia. Descaradamente. Não aqui na Europa.

 

Mas vamos a um exemplo de extrema maluqueira que pude observar ainda ontem, na CNN. No meio minuto que por lá me detive, por volta das dez e tal da noite, vi a Joana Amaral Dias a afirmar, cheia de si como sempre, da sua maquilhagem e do pau de vassoura que parece ter engolido, que o acordo que pôs fim às greves na CP, negociado pelo ministro João Galamba, tinha constituído uma “afronta ao Presidente da República” (!!!). É demais, não? Ainda ouvi de fugida o Bugalho a questionar, para meu espanto, “Como assim, uma afronta?”. E mais não vi. Se calhar, acabaram a concordar. Mas para mim bastou. Doida varrida. É verdade que o próprio Presidente também não anda lá muito bem. E isso, sim, devia ser comentado. Perdeu a noção dos seus deveres e das suas competências. É até penoso ver os que tentam tirar proveito desse triste facto. O Paulo Magalhães ainda ontem se mostrava ansiosíssimo, porque achava que Marcelo tinha que fazer alguma coisa mal viesse de Espanha, mais uns dias de espera estavam a matá-lo…

 

Voltando à informação. Poder-se-ia invocar a preocupação dos OCS, perante uma crise institucional, com o pluralismo de opiniões, dando voz a diferentes tipos de pessoas, das mais ajuizadas às mais disparatadas, das mais marcelistas às mais constitucionalistas. Mas não é isso. Tirando uma ou duas excepções, o que vemos é um desfile de pessoas de direita, ou ex-PS, ou ex-governantes PS, azedos,, a fazerem críticas e ataques de sentido único e, como se já não bastassem as habituais picaretas falantes como o Marques Mendes, o Portas, a Ferreira Leite, etc., ainda vão desenterrar criaturas como o Relvas, o Luís Filipe Menezes, o Matos Correia e sabe-se lá quem mais para engrossar as hostes (poupei-me ao desfile completo, pelo que admito existirem outros desenterrados).

 

Também nesta matéria do assessor, juntam-se ao rol os bloquistas em peso a acusar o ministro Galamba e a pedir a sua demissão, não com qualquer argumento credível, mas porque sim. Embora todos saibamos que a verdadeira razão é o assessor despedido ser bloquista. E então temos um coro.

 

Claro que, se eu não quiser ver, não vejo. Parece que o público também não vê muito ou não é assim tão manipulável como muitos gostariam, a avaliar pelas sondagens. Mas esta bolha desestabiliza. A começar pelo Presidente da República que, com o seu historial de comentador, atribui uma importância desmesurada ao ruído desta espécie de galinheiro. E, como se está a ver, isso leva-o a atitudes preocupantes – ameaças de dissolução por tudo e por nada, propostas públicas de medidas governativas, matéria que não é da sua competência, birras por não governar nem escolher os governantes, crispação inevitável com o primeiro-ministro, enfim, um certo desnorte. Desnorte, porque não tem saída: abrir caminho a outra maioria absoluta do PS ou a um possível governo de coligação com o André Ventura, o “quarto pastorinho de Fátima”, que adora a saudação nazi, não lhe vai garantir um lugar feliz na História. De todo. Deve, por isso, esquecer os comentadores, esquecer que foi comentador, deixar de ver televisão para regularizar a respiração, e atinar.

É o Marcelo, estúpido

Que aconteceria se Marcelo no tal sábado após a conferência de imprensa de Galamba, já com metade do número de Costa marcado, tivesse um rebate de consciência e desistisse do telefonema? Isso implicaria não se ter feito o ultimato para a saída do ministro das Infraestruturas pela voz do Presidente, não ter aparecido no dia seguinte Carlos César e outras figuras gradas socialistas a preparar a saída de Galamba e eventualmente a de outros ministros, não se ter usado o Expresso para uma estouvada chantagem sobre o primeiro-ministro. A oposição, o editorialismo e o comentariado continuariam a berrar, a insultar, a difamar, a intrigar, a pedir sangue. Depois, Costa chegaria na segunda-feira à noite, declarava que o ministro tinha agido bem e que a culpa era do taralhouco do adjunto, remetendo para o fim da comissão de inquérito à TAP as consequências a retirar das conclusões respectivas. O comentariado, o editorialismo e a oposição continuariam a berrar, a difamar, a insultar, a intrigar, a pedir sangue. E o assunto seria engolido na voragem quotidiana após se descobrir que nada de especialmente grave, sequer irregular, ocorreu pela intervenção do SIS. O Governo tentaria chamar a atenção para os extraordinários resultados económicos. Marcelo seria convidado a repetir que tinha um superpoder que mais ninguém na Grei tem, o que faria com gosto, quiçá até mesmo sem esperar pela pergunta. Ou seja, viveríamos dias perfeitamente banais — posto que essa anormalidade no regime de vermos o Presidente a dissolver-se como autoridade política se tornou o novo normal.

Que aconteceria se Costa na passada terça-feira, com o Palácio de São Bento em fundo, anunciasse ter aceitado a demissão de João Galamba? De imediato a oposição, o editorialismo e o comentariado declarariam que tal não era suficiente. O Governo mostrava ser ingovernável, Costa assumia a sua incapacidade para liderar, seria o estribilho. A opinião pública constataria que o Governo dependia do Presidente da República para a sua legitimidade, já não da maioria no Parlamento. A chantagem tinha tido sucesso, a Constituição não passava de letra-morta, era a evidência. Marcelo seria pressionado para exigir a Costa uma remodelação tal que levasse, na prática, à formação de um Executivo de iniciativa presidencial, o qual teria como principal ou singular missão fazer a gestão da aplicação do PRR até que fosse conveniente haver eleições. Caso Costa recusasse, então a dissolução da Assembleia ocorria já e o PS ia às urnas com a acusação de ter sido o único culpado pela necessidade de se abrir uma crise política catastroficamente grave. A opinião pública ficaria perplexa, confusa, deprimida e assustada com o vendaval de irracionalidade a derrubar a credibilidade dos actores políticos da República. Ou seja, viveríamos dias perfeitamente caóticos, os danos à economia e reputação do País seriam monumentais, pois António Costa teria mostrado já não ser um primeiro-ministro no comando do Governo e o PS ficaria como um partido que jamais voltaria a merecer conquistar uma maioria absoluta.

Donde, a surpresa, mesmo choque, da resistência de Costa face a um Marcelo a pôr as fichas todas no irregular funcionamento das instituições foi menos heroísmo e mais profissionalismo. Na verdade, só havia uma solução patriótica para o tipo de crise em causa, constatamos em retrospecção. Sendo uma crise oportunista e anticonstitucional, a própria Presidência precisava de ser protegida de si própria. E isso levava a restaurar o espírito da Lei, na sua fundamentação e tangibilidade simbólica. Naquele que é o seu melhor momento político numa longa carreira de serviço à comunidade, António Costa falou de improviso, pausadamente, calmo, cristalinamente articulado como poucas vezes consegue ser. Espalhou confiança, racionalidade, liderança. Anunciou ao povo e aos poderes que ele representa o Estado de direito democrático e a soberania da liberdade. E rematou, para a História: sentia-se isolado, naquela crise, nesse papel.

Não, pá, esquece o Galamba. Do que se tratou foi de defender o Presidente da República do desvario de Marcelo Rebelo de Sousa.

Revolution through evolution

Married couples who merge finances may be happier, stay together longer
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Evidence of conscious-like activity in the dying brain
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Exercise increases the number of cancer-destroying immune cells in cancer patients
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Viewing art can improve our mood and well-being
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Sharing positive feelings may ease loneliness-based negativity
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Chimpanzees combine calls to communicate new meaning
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Too much water can make whiskies taste the same
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Dominguice

Para Aristóteles, naquele que é o primeiro tratado de ciência política conhecido na História (vou aqui fingir que A República de Platão não conta), um rei e um tirano são muito parecidos à distância, e radicalmente distintos quando nos aproximamos deles. Porque um está ocupado com a cidade, o outro consigo próprio. Um faz do serviço à comunidade o critério da responsabilidade, o outro serve-se da comunidade através da sua irresponsabilidade. O primeiro rege-se pela moderação, o último é excessivo. E pode acontecer que um rei se transforme em tirano, adverte. Sendo que, pensava o mestre de Alexandre, não há melhor para a comunidade do que um rei que tenha a vocação da acção honrada — isto é, que se realize como protector dos que o quiseram como rei, sendo então a monarquia o regime que permite chegar às melhores decisões políticas.

Já não queremos monarcas, obsoletos pela complexidade sempre crescente nas sociedades mais desenvolvidas económica, científica e legalmente. Precisamos da complexidade complementar da democracia para ir a par da evolução da cultura. Mas continua, para todo o sempre, a ser válido o tal conselho a aplicar nos dias soalheiros: “Abdica / E sê rei de ti próprio.”

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