Fantasiemos um outro Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa é unanimemente considerado um dos políticos mais capacitados em actividade, tendo um perfume de genialidade em resultado do prestígio como jurisconsulto e do brilhantismo como comentador. Acresce a famigerada reputação como mentiroso e gozão de alto coturno, que nele é donaire. Sendo um dos maiores especialistas a respeito da Constituição que jurou cumprir e defender, não precisa de explicações para perceber o que fez ao ministro das Infraestruturas, ao primeiro-ministro, e ainda ao Governo a que ambos pertencem, na comunicação da passada quinta-feira. Consistiu num boicote, ofendendo o estatuto, credibilidade e honorabilidade desses seus três alvos. Porque a direita domina monopolista a comunicação social, porque o Governo e o PS não podem responder directamente, e porque PCP e BE não querem saber do Estado de direito democrático quando se trata de causar danos aos socialistas, uma historicamente original violação dos deveres constitucionais por parte de um Presidente da República está a ser não só normalizada como legitimada — e até aplaudida.

Que levou Marcelo para esse abuso? Nada que tenha alguma relação com estratégia, sequer com inteligência. Foi antes o corolário dos abusos imediatamente anteriores: a nota acerca da recusa de Costa em cima das suas declarações e a chantagem via Expresso. E foi igualmente a consequência dos abusos ocorridos em crescendo a partir de Outubro de 2022. A martelagem no espectro da dissolução da Assembleia, chegando a causar incómodo público e apelos à sua cessação por figuras relevantes na direita, foi um abuso dos poderes que lhe foram confiados para ser um guardião da funcionalidade do Estado e da saúde da democracia. Em vez disso, introduziu incerteza, confusão e irracionalidade no ambiente político. Acabando por criar uma crise política muito grave e potencialmente catastrófica.

As causas para este comportamento indigno da posição que ocupa na hierarquia da República serão mais que muitas. Não ambiciono conhecer sequer a milionésima parte. Mas uma delas, incontornavelmente, está na sua obsessão com o editorialismo e com o comentariado. A retórica usada na declaração de 4 de Maio é paleio de advogado, não de estadista. Tudo consiste num argumento que coloca a “responsabilidade” como conceito bicéfalo, moral&político, cuja semântica plástica se estica a bel-prazer para incluir João Galamba, e depois se continua a esticar para incluir António Costa. Porém, porque estamos no domínio do sofisma e da farsa, o conceito deixa de ser esticado quando todos esperavam, na economia do texto, que chegasse ao próprio autor. Isto é, e logicamente, o Presidente da República é o responsável último pelo primeiro-ministro, o qual é o responsável último pelo ministro, o qual é o responsável último pelo adjunto, o tal fulano na origem da cegada. Se o escândalo é realmente como o pintou, estava no seu poder agir à altura da necessidade política. Donde, Marcelo tinha de se responsabilizar pela situação caso a coerência fosse uma cena que lhe assiste. Não é, tal como não assiste aos comentadores e editorialistas, só atrapalharia a sua prodigalidade. Foi para gáudio desta classe de artistas que Marcelo deu voz a um exercício de enxovalho, literalmente entregando-se à prática da “afronta” que os seus colegas comentadeiros agitaram como pecado mortal de Costa ao recusar a ingerência presidencial no Governo. O interesse nacional e o bem comum não foram servidos pela intervenção presidencial, exactamente ao contrário.

Fantasiemos um outro Marcelo, muito parecido com o que nos saiu na rifa mas com a diferença de ter recebido uma injecção de inteligência e estratégia algures nas 48 horas após a manifestação de autoridade constitucional e política de Costa. A sua reactiva declaração passaria a ser uma variante deste esboço:

«Muito boa noite,

Portugueses,

Duas palavras. Uma sobre o passado. Outra sobre o futuro.

Uma sobre o passado. Como sabem, ocorreram acontecimentos inadmissíveis na equipa do Ministro das Infraestruturas. A gravidade dos factos conhecidos, mais a dos que ainda falta apurar e esclarecer, levaram-me a enviar ao primeiro-ministro a minha preocupação com a credibilidade, confiabilidade e autoridade do Ministro, do Governo e do Estado.

Posteriormente, o Ministro entendeu pedir a demissão e o Sr. Primeiro-ministro entendeu recusá-la. Isto já é passado.

E uma palavra sobre o futuro.

Não compete ao Presidente da República escolher Ministros, demitir Ministros, interferir indevidamente na acção do Governo. A Constituição é muito clara a esse respeito. Mas compete ao Presidente da República ser um aliado institucional do Governo, coisa distinta de ser um aliado político. Como representante de todos os portugueses, a minha aliança política é com a República Portuguesa. Com essa jurada missão, tudo farei, sempre, para garantir o regular funcionamento das instituições democráticas.

Nesse sentido, apoio a decisão do Sr. Primeiro-ministro ao manter João Galamba como Ministro das Infraestruturas. E desejo a ambos, estendendo o voto a todo o Governo, que tenham sucesso na realização dos urgentes, complexos e cruciais processos e projectos executivos em curso e em planeamento. É dever de todos os responsáveis políticos contribuírem para que o Governo tenha as melhores condições para executar o seu programa.

A experiência, a prudência e a sabedoria do Povo Português serão testemunhas, e juízes, das vossas escolhas.

Muito boa noite.»

 

14 thoughts on “Fantasiemos um outro Marcelo”

  1. A segunda parte só seria possível se Marcelo não fosse o Marcelo o comentador inveterado que comenta tudo e um par de botas ,Costa teve de lhe dizer que o primeiro Ministro é ele e quem escolhe os seus Ministros é ele , Marcelo meteu a viola no saco mas tal como o gasolineiro esperemos pelas próximos capítulos .

  2. Valupi
    Apreciei o seu post quando “fantasiou um outro Marcelo”.
    Realmente o PR-Marcelo é um “fantasista” quanto aos poderes do Presidente da República previstos na Constituição (CRP). Por mais que argumente em contrário, a CRP consagra um sistema parlamentar em que o Governo não depende do PR, mas da Assembleia da República, conforme Vital Moreira (um dos pais da CRP e um dos mais reputados constitucionalistas portugueses) têm sucessivamente chamado a atenção para o exorbitar por parte de Marcelo dos poderes presidenciais:
    https://causa-nossa.blogspot.com/2023/05/o-que-o-presidente-nao-deve-fazer-36.html
    https://causa-nossa.blogspot.com/2023/05/o-que-o-presidente-nao-deve-fazer-35.html
    https://causa-nossa.blogspot.com/2023/04/nao-e-bem-assim-14-pr-nao-pode-demitir.html
    https://causa-nossa.blogspot.com/2023/03/o-que-o-presidente-nao-deve-fazer-35.html
    Pedro Feytor Pinto, Director de Informação de Marcello Caetano, em entrevista de 2019, referia que Marcelo Nuno (MRS) sempre foi manipulador, muito inteligente, muito culto, um criador de factos políticos.
    «Está a falar de Marcelo Rebelo de Sousa?
    Há dias, numa reunião com jornalistas, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que começou a ser jornalista em 1975. Quando na realidade tinha uma coluna no “Expresso” que era temida por toda a gente, escrita com um pseudónimo, intitulada Veja. E escrevia também n”O Diabo”, a contradizer o que tinha dito no “Expresso”. Marcelo Nuno sempre foi manipulador, muito inteligente, muito culto. Um criador de factos políticos. O grande objectivo dele é divertir-se. E diverte-se. Mas para quem tem memória histórica é profundamente irritante. Ele jantava todos os fins-de-semana em casa do professor Marcello Caetano, ajudava a escrever as “Conversas em Família”. Depois vinha e dizia tudo ao contrário. E o professor Marcello Caetano gostava tanto dele — porque se sentia responsável por ele. O pai do Marcelo Nuno quis que o professor Marcello Caetano fosse padrinho do filho. Mas Marcello não aceitou porque o padrinho substitui o pai caso este desapareça e ele era muito mais velho. Mas levou a senhora D. Maria das Neves no carro ao casamento. “Ai, o Marcelo Nuno, o que ele escreve… Pode falar com ele?”, pedia-me. Mas ele, Marcello, nunca o chamava lá. E encontravam-se em casa. Mas depois dizia-me: “Peça ao Balsemão que cá venha…” E lá ia o Balsemão.»
    O que bem demonstra o carácter do actual inquilino de Belém!!!

  3. !ai! que riquezinha, havia de ser sempre assim: o Valupi a aconselhar – e redigir – o Marcelo. e assim seria o Marcelo a acabar com a cegada deixando para trás esse Marcelo coturno que cheira a chulé

    palminhas muitas

  4. Boa fantasia, bem construída, à volta de um homem de direita, mas o que contará, para quem pensa à esquerda, é que Costa seja consequente com a decisão que tomou e consiga demarcar-se, nomeadamente, na luta pela paz. Olhemos, por exemplo, para o Presidente Lula e para o recente episódio da sua passagem por Portugal, nas comemorações do 25 de Abril, para fantasiarmos outras vias para o destino colectivo da lusofonia. Deixemos, pois, Marcelo com as suas “traquinices”, agora potencialmente diminuídas por acção de AC.

  5. «Quando na realidade tinha uma coluna no “Expresso” que era temida por toda a gente, escrita com um pseudónimo, intitulada Veja. E escrevia também n”O Diabo”, a contradizer o que tinha dito no “Expresso”.»

    Talvez isto seja retirado do livro do Tí’ Balsemão, não sei, ou d’outro lado qualquer, pois, já não compro livros que não ensinem acerca da história das ideias mas apenas de manigâncias e jogos de poder entre políticos que usam da manha por falta de qualidades ou inteligência .
    Contudo, a transcrição acima revela o carácter bipolar do intratável Marcelo a quem, infelizmente, sempre foi dado e continua a dar-se-lhe crédito para continuar nas suas parvas e intratáveis palermices. Porque o problema maior da política por cá (e provavelmente pelo mundo atual) é, precisamente, devido ao facto das pessoas explicitamente apanhadas a mentir e aldrabar em política serem tratadas não como incompetentes incapazes e enviadas para a respetiva prateleira dos irresponsáveis donde não devem sair mas, ao contrário, achar-se muita graça a tal tipo de comportamento que rapidamente passa a esperteza, a sageza e de seguida a manifestação de inteligência. Só que tal inteligente vai continuar, sempre em crescendo, a marrar contra o bom senso até à revolta deste.
    Assim, podem e continuam sempre a afirmar tudo e o seu contrário, podem ser condenados em tribunal, podem entrar como pobres-diabo para governos e, em pouco tempo, sair do poder como banqueiros ou com bens de fortuna exorbitantes sem explicação e, sobretudo, sem sequer qualquer revolta moral ou ética da comunidade. O jornalismo, além dos políticos, é caso exemplar neste aspeto; podem ser condenados em tribunal por mentir descarada e propositadamente, podem ser apanhados em inventonas contra-revolucionárias, podem mentir obstinadamente por apoio ideológico, podem atacar, por interesse próprio, o carácter carismático de um adversário político relegando-o para a prateleira da inutilidade o lugar próprio desse jornalista, podem fazer todo este tipo de jogo sujo que, contudo, jamais, perdem o seu estatuto de gente séria que se repete e repete e repete, sem parar, na nossa frente a receitar-nos doses de moral e ética que deviam ser-lhes receitados como um xarope a eles próprios.
    Se uma dose certa deste xarope lhe fosse aplicada logo à primeira vez que ludibriam a comunidade, certamente, muitos batoteiros políticos e jornalistas não infernizavam a nossa vida durante toda a vida deles.

  6. “A Rússia, onde os jornalistas críticos do regime aparecem mortos a balas sem nunca a polícia encontrar os culpados, ou encontrados suicidados sem motivo plausível, e os jornais independentes do poder político são encerrados em nome da liberdade, é a Rússia que lamenta a morte de um jornalista por um rocket russo na Ucrânia. Não lamenta coisa nenhuma, puta que os pariu.
    Por cá tivemos tivemos do lado de lá da trincheira um alegado jornalista, por coincidência e só por coincidência militante e candidato autárquico pelo partido pan-eslavista português, que todos os dias encontrava um exemplar do Mein Kampf e uma bandeira com a suástica em cada alegada base ucraniana tomada pelo glorioso Exército Vermelho aos azoves do Batalhão, enquanto lamentava a parcialidade da imprensa ocidental por não mostrar o lado de lá que, para grande infelicidade do Kremlin, não é mostrado por causa dos assassinados e suicidados jornalistas e assim tem de recorrer a estrangeiros desempoeirados.

    Isto já nem é uma questão de liberdade de imprensa variável consoante a ideologia ou a latitude mas uma questão de palhaço útil.”

    In Os terroristas atacam os faZedores de paZ

  7. Tempo de bufos e nazis:

    https://observador.pt/opiniao/a-universidade-de-coimbra-e-o-apoio-a-russia/# (10 mai. 2023, Viacheslav Medvediev e Olga Filipova, Ativistas ucranianos, “A Universidade de Coimbra e o apoio à Rússia” – “A mais antiga e honrada Universidade de Portugal é um espaço para transmitir a propaganda imperial russa e a cultura que criou a Rússia moderna”)

    Tempo de capados:

    https://rr.sapo.pt/especial/pais/2023/05/10/reitor-da-universidade-de-coimbra-despede-professor-russo-pro-putin/330767/ (“Reitor da Universidade de Coimbra despede professor russo pró-Putin”, 10 mai, 2023 – 13:34 • João Carlos Malta • Acusações de ativistas ucranianos levaram Amílcar Falcão a despedir Vladimir Pliassov, que liderava o Centro de Estudos Russos.)

  8. tentar defender os valores ocidentais da ucrânia sem defender nazis e a supressão da liberdade de expressão ou dizer que na rússia é pior challenge! (impossible!)

  9. não sei quem anda a empurrar o tó zé para as presidenciais , mas é uma péssima ideia. espero que não caia nessa. andará aborrecido com a vida de todos os dias? porque entrar outra vez na política com palermices não lhe vai trazer nadinha de bom , nem a ele nem à família. mais jeito faria de presidente na autarquia de residência…o santana não acha um desprimor , e não é, de todo. o principio de peter ao contrário -:) small is beautiful |

  10. Não votei e jamais votaria num comentador para inquilino do Palácio de Belém. Mas fizeram-no e criaram o Comentador da República. Agora só nos resta tirar o máximo partido possível da cómica situação, divertirmo-nos com estas “graves questões” que se sucedem umas às outras. É a Política, estúpido!

  11. o mal do marcelo é estar preocupado com rankings e audiências. levou problemas de comentadeiro televisivo para a presidência. concordo mesmo com o avenavios.

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