É o Marcelo, estúpido

Que aconteceria se Marcelo no tal sábado após a conferência de imprensa de Galamba, já com metade do número de Costa marcado, tivesse um rebate de consciência e desistisse do telefonema? Isso implicaria não se ter feito o ultimato para a saída do ministro das Infraestruturas pela voz do Presidente, não ter aparecido no dia seguinte Carlos César e outras figuras gradas socialistas a preparar a saída de Galamba e eventualmente a de outros ministros, não se ter usado o Expresso para uma estouvada chantagem sobre o primeiro-ministro. A oposição, o editorialismo e o comentariado continuariam a berrar, a insultar, a difamar, a intrigar, a pedir sangue. Depois, Costa chegaria na segunda-feira à noite, declarava que o ministro tinha agido bem e que a culpa era do taralhouco do adjunto, remetendo para o fim da comissão de inquérito à TAP as consequências a retirar das conclusões respectivas. O comentariado, o editorialismo e a oposição continuariam a berrar, a difamar, a insultar, a intrigar, a pedir sangue. E o assunto seria engolido na voragem quotidiana após se descobrir que nada de especialmente grave, sequer irregular, ocorreu pela intervenção do SIS. O Governo tentaria chamar a atenção para os extraordinários resultados económicos. Marcelo seria convidado a repetir que tinha um superpoder que mais ninguém na Grei tem, o que faria com gosto, quiçá até mesmo sem esperar pela pergunta. Ou seja, viveríamos dias perfeitamente banais — posto que essa anormalidade no regime de vermos o Presidente a dissolver-se como autoridade política se tornou o novo normal.

Que aconteceria se Costa na passada terça-feira, com o Palácio de São Bento em fundo, anunciasse ter aceitado a demissão de João Galamba? De imediato a oposição, o editorialismo e o comentariado declarariam que tal não era suficiente. O Governo mostrava ser ingovernável, Costa assumia a sua incapacidade para liderar, seria o estribilho. A opinião pública constataria que o Governo dependia do Presidente da República para a sua legitimidade, já não da maioria no Parlamento. A chantagem tinha tido sucesso, a Constituição não passava de letra-morta, era a evidência. Marcelo seria pressionado para exigir a Costa uma remodelação tal que levasse, na prática, à formação de um Executivo de iniciativa presidencial, o qual teria como principal ou singular missão fazer a gestão da aplicação do PRR até que fosse conveniente haver eleições. Caso Costa recusasse, então a dissolução da Assembleia ocorria já e o PS ia às urnas com a acusação de ter sido o único culpado pela necessidade de se abrir uma crise política catastroficamente grave. A opinião pública ficaria perplexa, confusa, deprimida e assustada com o vendaval de irracionalidade a derrubar a credibilidade dos actores políticos da República. Ou seja, viveríamos dias perfeitamente caóticos, os danos à economia e reputação do País seriam monumentais, pois António Costa teria mostrado já não ser um primeiro-ministro no comando do Governo e o PS ficaria como um partido que jamais voltaria a merecer conquistar uma maioria absoluta.

Donde, a surpresa, mesmo choque, da resistência de Costa face a um Marcelo a pôr as fichas todas no irregular funcionamento das instituições foi menos heroísmo e mais profissionalismo. Na verdade, só havia uma solução patriótica para o tipo de crise em causa, constatamos em retrospecção. Sendo uma crise oportunista e anticonstitucional, a própria Presidência precisava de ser protegida de si própria. E isso levava a restaurar o espírito da Lei, na sua fundamentação e tangibilidade simbólica. Naquele que é o seu melhor momento político numa longa carreira de serviço à comunidade, António Costa falou de improviso, pausadamente, calmo, cristalinamente articulado como poucas vezes consegue ser. Espalhou confiança, racionalidade, liderança. Anunciou ao povo e aos poderes que ele representa o Estado de direito democrático e a soberania da liberdade. E rematou, para a História: sentia-se isolado, naquela crise, nesse papel.

Não, pá, esquece o Galamba. Do que se tratou foi de defender o Presidente da República do desvario de Marcelo Rebelo de Sousa.

8 thoughts on “É o Marcelo, estúpido”

  1. que imaginação , fantástico.
    um pobre atarantado, focado unicamente nos seus interesses , alçado a herói nacional. absinto logo de manhã
    não é saudável.

  2. excelente: defender o profissional, enquanto representante máximo no seu papel social e nas respectivas implicações para todos nós, do homem mesquinho e astutamente raivoso – daí Costa ter sido o primeiro a ajudar Marcelo a terminar o seu mandato em condições de salubridade cognitiva. mas não deixa de ser triste, muito triste, quando o homem não é em si mesmo um excelente profissional. não serve. e não serve porque as características de carácter, na base, são as mesmas.

  3. o verdadeiro risco como toda a gente com dois dedos de testa percebeu imediatamente é se se dá o caso da CPI não apurar “que o ministro tinha agido bem e que a culpa era toda do taralhouco do adjunto” ou que “nada de especialmente grave, sequer irregular, ocorreu pela intervenção do SIS”.
    se isso acontecer que conclusão tiramos?

    Que “António Costa teria mostrado já não ser um primeiro-ministro no comando do Governo e o PS ficaria como um partido que jamais voltaria a merecer conquistar uma maioria absoluta”?

    é que me parece que é mesmo essa a razão para “no dia seguinte Carlos César e outras figuras gradas socialistas a preparar a saída de Galamba e eventualmente a de outros ministros”
    ou será que estas figuras socialistas, às quais podemos juntar o rui tavares e o paulo pedroso, nos querem fazer crer que “a Constituição não passava de letra-morta”?

    mas admito que desta vez foi um bom esforço! pelo menos já não chamam agressor de mulheres ao moço, sem quaisquer evidências. o que é um avanço civilizacional neste blogue

  4. valupi,

    aproveita e mostra-nos aí qual é o artigo legal que fundamenta a actuação do SIS neste caso, à revelia e até passando por cima da autoridades policiais com competências na matéria.
    é que de toda a gente que defende a actuação do SIS e por isso também a do ministro ainda não ouvi ninguém a apontá-lo. desde já obrigado.

  5. António Costa apreciado a este nível, quem havia de dizer! Não esqueço o tempo em que era integrado naquela parte do PS (mais de 80% creio eu) que não prestava para nada, logo acrescida dos restantes setores da sociedade portuguesa que também não prestavam para nada, a saber: o PCP e o BE, os convencidos que só eles teem razão e que só eles representam o povo, e a Direita decadente. É só fazer as contas, como dizia o outro, para saber quem era a parte da sociedade que prestava e que ia levar Portugal aos píncaros.

  6. Os direitolas criam as narrativas à sua maneira e, a seu favor logo, o comentariado avençado
    agarra nas “iscas” e, toca de tentar fazer a cabeça ao bom Povo, com a adjectivação usada pe-
    lo PR, para querer que o PM demitisse o Ministro João Galamba e, assim provocar um “rom-
    bo” no Governo!
    Tudo não passa de “espuma” da frustação que sentem, por verem o Pote a fugir-lhes por efei-
    to da acção do Governo que dizem não governar … lamentável é que ainda se mantenha uma
    direção de informação na RTP que, entra no mesmo jogo seja, na escolha dos comentadores
    ou na forma de abordagem dos assuntos ou temas!!!

  7. É uma pena que este blog oscile entre a análise sólida e racional da realidade política nacional e o desvario, sempre que se fala de geopolítica, nomeadamente da guerra na Ucrânia.
    Esperemos, agora, que Valupi tenha razão, que AC seja “profissional”, interiorize o seu “isolamento” e parta para outra, defendendo em todas as circunstâncias os interesses do povo português. Só assim este seu enfrentamento com Belém terá sentido útil para a comunidade. Para já, aclararam-se as águas turvas em que vivíamos, no que tange a cada um dos Órgãos: PR e Governo. E isso é, em si mesmo, muito positivo.

  8. o desvario geopolítico que é a invasão da Ucrânia por Putin envergonha-se de si e de outros putinistas, JA, chantrões do absurdo sangrento. ide dar graxa ao cágado.

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