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Fala de Leonel Pontes a Cristiano Ronaldo

Tu comias uma banana dentro de um pão
E nunca paravas de jogar em toda a Ilha
Nos torneios diários de futebol de salão
Dando às equipas um toque de maravilha

Nas férias eu já não era o teu treinador
Mas o amigo sempre atento e preocupado
Procurando que te alimentasses com rigor
E seguindo os teus passos por todo o lado

Em Lisboa eu era então o teu motorista
E pronto a ir buscar-te a qualquer hora
Tu ligavas mal o avião chegava à pista
E nós ficávamos a falar pela noite fora

Agora tu fazes anúncios de publicidade
Não tens tempo para o treinador antigo
Mas nada destrói a força duma amizade
E nunca deixei de ser muito teu amigo

Rosa Luz

Há uma rosa a arder. Já não é lume
Apenas foco de luz sem combustão
No fósforo mal aceso deste ciúme
Só sobejaram os sinais da tua mão

A tua boca foi o botão anunciado
Os teus dedos o que ficou da haste
Procurei a tua voz em todo o lado
Mas foi na rosa ardida que ficaste

Vinte Linhas 256

Com que então «Digna-se estar presente» o Nobel

A Secretaria Geral do Ministério da Cultura enviou-me um convite no qual José António Pinto Ribeiro, o ministro da cultura, me convida para a inauguração da exposição «José Saramago – A consistência dos sonhos» organizada por Fernando Gomez Aguilera. Até aqui tudo normal. Mas a segunda parte do convite contém uma frase estranha «Digna-se estar presente o escritor José Saramago.» E digo estranha porque assim até parece que ele está num céu demasiado azul e demasiado alto de tal modo que se digna descer até nós. Vindo deste ministro que aparece a defender o acordo ortográfico como se dependesse dele a salvação do Mundo e que ainda há dias vi numa cerimónia protocolar na Biblioteca Nacional a impedir de modo hostil que um fotógrafo trabalhasse (fotografando o ministro) na entrega do espólio de José Cardoso Pires ao Estado Português, cheira um bocado a esturro. Ainda se o Nobel se dignasse estar presente para explicar porque fez desaparecer depois de 1992 os nomes das pessoas do Lavre que lhe contaram as histórias do livro «Levantado do Chão» e sem as quais o livro nunca teria sido escrito por uma pessoa que nunca viveu no campo mas sim na Penha de França… Além do nome da Isabel da Nóbrega, são estes os nomes suprimidos na dedicatória: João Domingos Serra, João Basuga, Mariana Amália Basuga, Elvira Basuga, Herculano António Redondo, António Joaquim Cabecinha, Maria João Mogarro, João Machado, Manuel Joaquim Pereira Abelha, Joaquim Augusto Badalinho, Silvestre António Catarro, José Francisco Curraleira, Maria Saraiva, António Vinagre, Bernardino Barbas Pires e Ernesto Pinto Ângelo. Mas não. Ele não se digna fazer isso. Tal como eu não vou lá pôr os pés. Safa!

Livros, gravuras, postais antigos

A porta que se abre na manhã fria
Vai revelar o mundo concentrado
Na altura das estantes da livraria
É possível viajar por todo o lado

Entre autores e títulos há viagens
Num mundo interior que perdura
Outros querem a luz das paisagens
Entre a cor e a sombra da gravura

Entre um livro raro e outro antigo
Entre a segunda mão e a novidade
Acabo por encontrar o que persigo
Para um texto sobre a minha cidade

Há muitos anos que Lisboa é minha
Quarenta e dois para ser mais exacto
Na livraria na estante mais sozinha
O teu olhar faz comigo um contrato

Sem notário ou registo de escritura
Sem cartório e testemunhas a assinar
No tempo de ansiedade e de procura
O teu olhar acende a bússola do lugar

Sonho de mulher na cidade de cimento

Teu corpo é uma planície pequenina
Onde eu sou um lavrador à procura
De fazer com a língua na tua vagina
Sementeiras de paixão e de ternura

Faço dos meus lábios uma charrua
Bem levada pela força dum tractor
E à noite quando vem a luz da Lua
Teu corpo é uma seara só de amor

Na tua boca-vulcão sugas o lume
Aceso na pele dos meus sentidos
Enlouqueço a pensar no perfume
Nos dias longe de ti tão perdidos

A tua boca é uma oitava maravilha
Pois concentra como em ninguém
A força impetuosa de uma filha
E a serena sabedoria de uma mãe

Continuar a lerSonho de mulher na cidade de cimento

O livro da minha vida – Dia Mundial do Livro

«Uma abelha na chuva» de Carlos de Oliveira

Ler «Uma abelha na chuva» em 1969 numa Lisboa temerosa, vagarosa e desenhada a preto-e-branco foi, para mim, a descoberta de um escritor e de um mundo. Carlos de Oliveira escrevia romances como quem escrevia poemas, sem excessos palavrosos, com uma carpintaria essencial. As personagens movem-se na Gândara, a região onde o autor viveu a sua meninice: «terra areenta, infértil, dunas, lagoas pantanosas, pinhais, casas de adobe». As duas figuras-chave do livro continuam ainda hoje para mim inesquecíveis – Maria dos Prazeres e Álvaro Silvestre. E o conflito entre a aristocracia decadente e a burguesia em ascensão: amor e desprezo, ciúme e prazer, ódio e ternura. Notável é neste livro de 1953 como o autor pressente (mais de vinte anos antes…) o regresso dos «retornados» e os seus conflitos pessoais e sociais. Eu tinha dezoito anos e a minha paixão pela literatura nascera no Ciclo Preparatório em Vila Franca de Xira com os poemas de Cesário Verde e com os contos de D. João da Câmara e de José Loureiro Botas. O primeiro dava-me o Mundo, o segundo dava-me a Cidade, o terceiro dava-me o Campo no Inverno e a Praia no Verão. Mais tarde as fotografias de Augusto Cabrita e o filme de Fernando Lopes com Laura Soveral e João Guedes nos principais papéis vieram dar outra visibilidade ao livro em cujas páginas a morte duma abelha pode ser também a metáfora da morte dum certo tempo português. E este romance é a perfeita memória descritiva dessa mesma morte. Porque tudo aqui funciona em harmonia, o tempo interior das personagens, seus sonhos e angústias, mistura-se de forma feliz, acertada e completa com o tempo geográfico, uma aldeia perto das lagoas pantanosas mas a dois passos do mar onde as ondas das marés vivas levarão de noite o corpo do cocheiro assassinado. «Uma abelha na chuva» é um excelente ponto de partida para alguém descobrir o autor de uma das mais importantes obras de poesia e romance do século XX. Ainda me lembro, tantos anos depois, das últimas palavras do romance depois de alguém num grupo de mulheres chamar o Dr. Neto porque a Clara em desespero se tinha atirado ao poço da olaria: «A abelha foi apanhada pela chuva: vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.»
Nota final – Só o facto de pensar que estas palavras possam vir a ser traduzidas para brasilês deixa-me, desde já, arrepiado.

Vinte Linhas 255

Atirados ao chão na Juventude da Galiza

No passado dia 3 o poeta Adalberto Alves apresentou o seu mais recente livro «No Vértice da Noite» no palacete da Juventude da Galiza ali ao Torel. Falou o editor enquanto por cima de nós uma gaita-de-foles não parava de tocar. Falou Elsa Rodrigues dos Santos e a gaita continuou. O actor João d´Ávila leu poemas do livro e a gaita não parou. O autor do livro agradeceu e a gaita subiu de tom. Luísa Amaro e António Eustáquio tocaram três pequenas peças (guitarra portuguesa e guitolão) e não tocaram mais porque a gaita-de-foles não parava de fazer barulho por cima de nós. Quando no Verão passado o José Saramago se saiu com aquela do «mais cedo ou mais tarde vamos ser integrados na Espanha» muita malta não percebeu o alcance. É que ele já estava integrado desde 1992 quando a espanhola o obrigou a apagar a dedicatória às pessoas do Lavre que lhe contaram as histórias do livro «Levantado do chão». Como essas pessoas foram apresentadas ao Nobel porque Isabel da Nóbrega apareceu no Lavre com uma forguneta cheia de livros (alguns da RDA e da Bulgária…) para a cooperativa local, a espanhola mandou apagar não só o nome da Isabel mas também o das pessoas que o escritor lá conheceu através da Isabel. Esta cena horripilante vivida na Juventude da Galiza com as gaitas-de-foles por cima das nossas palavras é um terrível exemplo da dita «integração» na Espanha avançada pelo Saramago. O poeta João Rui de Sousa a quem saudei na sala ficou quase apagado perante a barulheira da gaita-de-foles. Quando desci a calçada do Lavra direito aos Restauradores com os amigos Fernanda, Patrícia e Eduardo, a gaita-de-foles da Juventude da Galiza ainda não se tinha calado. Integração? Safa!

«A Terceira Atlântida» de Fernanda Durão Ferreira

A história começa em 26-7-1880, quando o súbdito britânico Gordon Mason, viajando de Southamptom para o Rio de Janeiro, em escala técnica na Ilha Terceira, assiste com o imediato do navio «Santa Helena» a uma tourada na Vila Nova. Depois da tourada o lanche, depois do lanche a conversa e, chegada a noite, o amigo terceirense do imediato do navio emprestou dois cavalos e cedeu um criado para os acompanhar até Angra do Heroísmo.

No caminho, encontraram dez homens da «Justiça da Noite» que se dedicavam a derrubar um muro e um portão com marretas e cordas. Passado o susto inicial, com a preciosa ajuda do criado, o viajante (e o imediato) seguiram viagem e, já a caminho do Rio de Janeiro, ouviu a bordo um professor de História afirmar: «Esses e outros costumes são quase tão antigos como a própria Ilha. Ilha que há muitos, muitos séculos tinha um outro nome e possuía outra cultura.»

As touradas à corda são hoje uma prática igual à que foi descrita por Platão com os dez pastores a serem a memória dos dez reis da Atlântida. A «Justiça da Noite» que funcionou até à segunda metade do século XX é a memória da justiça dos dez reis da Atlântida, pois nesse tempo, como escreveu Platão, «o rei não era senhor de condenar à morte sem o assentimento de mais de metade dos dez reis.»

O próprio rei D. Afonso V, numa carta de mercê ao cavaleiro Fernão Teles de 10-11-1475, escreve o seguinte: «Faço mercê de quaisquer ilhas que achar, ilhas despovoadas, ilhas povoadas e ilhas povoadas que ao presente não são navegadas nem achadas nem tratadas por meus naturais.» Como se percebe pelas citações, este livro tem muito que se lhe diga sobre as raízes da tradição Atlante nos Açores. Mas ficamos por aqui, lembrando só o que Vitorino Nemésio escreveu um dia: «A Geografia para nós vale tanto como a História».

Editora: Zéfiro
Prefácio: José Fonseca e Costa

O José do Telhado não se chama João

Vivo em Lisboa desde 1966 e tenho tido sempre o meu trabalho e a minha casa por aqui: Rua do Ouro, Chiado, Camões, Bairro Alto, Santa Catarina. O mesmo é dizer livrarias, antiquários, editoras, leiloeiros, alfarrabistas. A Moraes, editora dos meus primeiros livros, era no Largo do Picadeiro e passou para a Rua do Século. O jornal onde comecei em 1978 (Diário Popular) era na Rua Luz Soriano. Mas ia nos alfarrabistas. Tem chegado gente nova ao ramo com os seus telemóveis, faxes, E-mails, blogs, sites, boletins. E alguma prosápia muito juvenil. Há dias tive nas mãos um boletim bibliográfico que, embora datado de Dezembro de 2008, é de Dezembro de 2007 até porque estamos em Janeiro de 2008 e ainda não chegámos lá. Um dos livros referidos é sobre a revolta militar da Ilha da Madeira em 1931 mas, por óbvio lapso, o autor refere que a dita revolta procurava «instaurar» a I República. «Instaurar» não; quando muito «restaurar» porque ela já tinha sido instaurada em 1910. Mas onde me pareceu que o absurdo se tinha instalado de armas e bagagens foi nas referências ao Zé do Telhado aqui referido como João do Telhado. Não, não pode ser. José Teixeira da Silva não se chamava João. Nascido em Penafiel no ano de 1816, José Teixeira da Silva veio a morrer em Angola (Sanza) para onde foi degredado pelos muitos assaltos da sua quadrilha formada em 1849. Antes tinha recebido a Torre e Espada por ter salvo a vida do Visconde de Sá da Bandeira. Pelo meio aparece ao lado de Camilo Castelo Branco nas cadeias do Porto e no livro «Memórias do Cárcere». Mas sempre como José Teixeira da Silva, nunca foi João. Por mais voltas que dê um qualquer boletim bibliográfico editado em Dezembro de 2007.

Um rumor de água

Na voz de Fernanda há um rumor de água. Estamos na cidade, passa um eléctrico com turistas a descer uma das colinas de Lisboa, há um carro dos bombeiros sapadores com a sua pressa e as suas sirenes a subir a calçada, alguns jovens estudantes discutem em voz alta o seu pequeno mundo entre mochilas e telemóveis mas, ao mesmo tempo, na voz de Fernanda há um rumor de água. Será a água do Rio Távora, a que sobe no Inverno ao levantar uma neblina portátil quando as águas batem nas pedras gigantes das margens.

Se fosse Verão a voz de Fernanda teria a frescura das fontes onde ainda hoje se bebe por um púcaro de barro vidrado, uma água que mata as sedes mais antigas de quem secou nos lábios o pó dos caminhos para o trabalho e para a romaria.

Mas é Inverno. O sol não aquece os intervalos dos aguaceiros trazidos pelas nuvens mais escuras do lado do Oceano Atlântico. Duas turistas italianas, de mapa de Lisboa em riste, procuram uma livraria que venda partituras musicais. A vida acontece nestes encontros e desencontros. O Inverno teima em continuar como um calendário repreendido.

E a voz de Fernanda, com o seu rumor de água, liga de novo dois mundos separados pela solidão, pela distância e pelo tempo. Tal como numa prece ou num poema, Fernanda vai ligando de novo esses mundos separados. Há uma alegria convocada na Cidade pelo rumor da sua voz que veio das Serras. Assim, como se fosse a capa de um livro e não a realidade real da personagem desta crónica. «A Cidade e as Serras». Na pressa tantas vezes sem sentido da Cidade há uma voz que coloca de novo a funcionar a harmonia do Mundo das Serras. Na voz de Fernanda há um rumor de água.

Varanda das meninas

No beijo que me deste nessa despedida
Ficou o teu tempo todo concentrado
Parte da tua alma, toda a tua vida
Em luz sem presente fez-se só passado

Havia a varanda das belas meninas
Vendo os mascarados, mimos no passeio
Depois de atirarem muitas serpentinas
Que à casa ligavam árvores do meio

O meio que agora já só tem asfalto
E os fumos dos carros, feio e doentio
Onde uma sirene me traz sobressalto
E onde chega a névoa que sobe do rio

Foi encontro breve, como de rotina
Chamavam tarefas do teu dia-a-dia
No beijo voltaste como a ser menina
E a Morais Soares foi a da Alegria

O teu cabelo

Mesmo quando adormeces tão cansada
O teu cabelo não repousa mas continua
Instala durante as horas da madrugada
Uma montanha no alcatrão da tua rua

Há nele toda a força dum compêndio
Transporta várias lições de geografia
Umas vezes tem o fogo dum incêndio
Noutras há nele a chuva e a neve fria

Tudo depende do estado da humidade
Os ventos, as altas e as baixas pressões
Entre madeixas que existem na verdade
E o relevo criado nas minhas emoções

Aos poucos o mundo passa ao cinzento
Tempo pleno de sombras e de segredos
O teu cabelo está sempre em movimento
Na carícia tenho o clima entre os dedos

Camilo nas Escadinhas do Duque

Quando há editoras a serem compradas em lotes, trata-se aqui de ler a certidão de nascimento de uma nova editora: Bonecos Rebeldes veio ao mundo num dos lugares mais bonitos de Lisboa – as Escadinhas do Duque. Mais em concreto no nº 19 A.

O regicídio e João Franco de Rocha Martins foram a aposta na área da História. Depois surgiram três livros de poesia: O livro da pobreza e da morte de Rainer Maria Rilke, A árvore seca de Alexei Bueno e Sortilégios da terra de Zetho Cunha Gonçalves. No campo da prosa temos Daniel Defoe com Diário da peste de Londres, e de novo Rilke com O pintor de nuvens e outros contos. Estão disponíveis no catálogo desta editora três livros para jovens leitores: A caçada real de Zetho Cunha Gonçalves e A dama de ouros e O paraíso dos cães com os heróis Bob e Bobette. Sem esquecer O Príncipe Valente e o Tarzan de Russ Manning numa edição que utiliza as matrizes originais, é impressa em papel couché e tem esmerados textos informativos.

Por fim chamo a atenção para a edição de Os Narcóticos de Camilo Castelo Branco, um escritor que é de todos os tempos. Vejamos apenas algumas linhas sobre a perseguição aos judeus no tempo de D. João III: «A Inquisição foi uma fatalidade necessária então. Talvez que a perseguição actual aos judeus da Alemanha não tenha outra explicação e, por isso, ao senhor Fernando Palha e a nós se nos afigura monstruosa. Aproximemos D. João III de 1536 do imperador Guilherme de 1882 e vermos à distância de trezentos anos os mesmos quadros revoltante e uma bandeira religiosa hipocritamente desfraldada e espadanada de sangue.»

O Aspirina B é um dos padrinhos desta nova editora. Aqui foram divulgados alguns dos seus projectos. Hoje a editora é uma realidade.

Um fliscorne para Laurent Filipe

A Fundação Oriente tem na Rua do Salitre os seus escritórios e os seus jardins. Uma mensagem no telemóvel alerta-me para um concerto com Laurent Filipe, acompanhado ao piano por Pedro Sarmiento. Num jardim da Fundação.

Laurent Filipe toca trompete e fliscorne, mas no programa aparece trompete e flugelhorn. Até parece que não há em Portugal palavra para este instrumento. Tivesse eu notas de cinco euros como de vezes vi o meu avô José Almeida Penas trocar a sua trompete (não o bocal, só a trompete) com o fliscorne do Vítor Freire na Filarmónica de Santa Catarina! Quando para se fazer um coreto nas festas se juntavam dois carros de bois e se colocava um estrado por cima… Um erro destes só pode ser ignorância. Ou então um certo novo-riquismo cultural de que valoriza tudo o que vem de fora.

Isso foi no passado dia 4. Agora, a 11, estava escrito que o barítono Emilien Hamel é diplomado pela Université de la Sorbonne. Como se não houvesse equivalente. Mas, para não ficar por aqui, as meninas da Fundação trouxeram a tradução das «Histórias simples» de Brahms. Como a maior parte das pessoas não sabe alemão, compreende-se. Mas já não se compreende que, depois de traduzirem «Der Schmied» por «O Ferreiro» e «Der Jager» por «O caçador», ´traduziram´ «Sommerabend» por «Summer evening» e «Sonntag» por «Sunday», finalizando alegremente com «Ständchen» transformado no portuguesíssimo termo «Serenade».

Ora bolas. A Fundação Oriente, como instituição de utilidade pública, devia preocupar-se também com a língua portuguesa. Os concertos foram óptimos, matei saudades do fliscorne. Mas…

«O livro da pobreza e da morte» de Rainer Maria Rilke

Escrito em Paris no ano de 1903, quando Rilke (1875-1926) preparava a monografia sobre a obra de Rodin, neste livro o autor rejeita as grandes cidades: «Porque as grandes cidades, Senhor, / estão desagregadas e perdidas; / na maior parte delas germina o pânico dos incêndios / para elas não há perdão nem alívio / e os seus pobres dias estão contados.» Coloca o campo em oposição à cidade: «Há os que são ricos e aspiram ao triunfo / mas os ricos não são ricos. / Eles não são como esses grandes pastores / que atravessam as planícies verdes e claras / seguidos da massa confusa dos seus rebanhos / como as nuvens passam no céu da manhã.» A cidade é o lugar do medo. Rilke escreve um poema que é uma oração: «faz que eu seja a voz do novo Messias / aquele que diz a palavra e que baptiza / Porque a minha voz cresceu em duas direcções / fez-se perfume e fez-se grito / E faz que ambas as vozes me acompanhem / se de novo me lançares na cidade e no medo.» A cidade não é o lugar do homem («As cidades só pensam em si próprias / e arrasam tudo na sua corrida») e nelas os sem-abrigo, que andam pela noite como mortos, esperam una voz: «E se houver ainda uma voz para os defender / faz que seja forte e persuasiva». A obra de Francisco de Assis é a resposta: «Onde está esse que dos seus bens e do seu tempo / soube tirar forças para a sua grande pobreza / para se despir das suas roupas na praça / e surgir nu diante das vestes do bispo. / Veio da luz para uma luz mais profunda / e a alegria habitava a sua cela. / E quando ele morreu, leve e sem nome / foi repartido.» Uma nova editora, uma nova colecção de poesia, um livro a descobrir em português mais de cem anos depois da sua primeira edição.

Editora – Bonecos Rebeldes
Tradução – Ana Diogo e Rui Caeiro
Prefácio – Rui Caeiro
Capa – José António Coelho

José do Carmo Francisco

Camilo no Canadá ou o Nero da Trafaria

Releio o Perfil do Marquês de Pombal de Camilo Castelo Branco na edição da Porto Editora. Está em bom estado, tal como o apanhei no balcão do alfarrabista da Travessa de São José nº 1 – ali à Praça das Flores – mas veio de longe.

Tem colado na primeira página um papel branco com os dizeres «Papelaria Livraria Portugal 220 Ossington Ave. Toronto Ont. – Phone (416) 5373730». Sobre este livro apenas duas notas. A primeira sobre Pombal e os garfos. Um tal John Smith, secretário do Duque de Saldanha, publicou em 1843 as «Memoirs of the Marquis of Pombal». No capítulo XIII lá aparece «I tis perhaps not generally known even in Portugal, that Pombal was the first person who introduced the use of forks into that country.» Segundo este autor, Pombal trouxe os garfos em 1745 da Corte de Londres. Explica Camilo que já em 1611 o Dicionário Português-Latim de Agostinho Barbosa regista garfo para o latino fuscinula. Mais refere um livro sobre D. João IV onde se recorda que o prato do Rei tinha faca, colher, garfo e guardanapo. Por sua vez D. João III em 1554 entrega à camareira seis garfos, quatro de cristal e dois de prata sem esquecer o dote de D. Beatriz em 1522 com doze garfos de prata pequenos.

Resumindo: John Smith não tem razão. A segunda nota é sobre o massacre da Trafaria em 24 de Janeiro de 1777. Pombal sabia que na praia da Trafaria viviam cinco mil pessoas – pescadores, suas mulheres e crianças. Mas sabia também que ali vivia uma centena de rapazes que fugiam da vida militar. Pombal ordenou a Pina Manique que levasse 300 soldados em faluas do Tejo. Na madrugada desse dia os archotes dos soldados fizeram romper um terrível incêndio nas choupanas que não poupou nada nem ninguém: doentes, velhos, mulheres, crianças, víveres. Os poucos que escaparam levaram consigo apenas fome e nudez. Por isso Camilo chamou a Pombal o Nero da Trafaria.

O Mundo e o Tempo de Maria José

O modo como desenhas o teu sorriso no passeio desta avenida, entre a pressa sem sentido e o vazio projectado pelo caos do movimento do trânsito, cria, no meu olhar, um outro espaço como se, de súbito, nascesse uma serra por detrás da Fonte Luminosa. A tua serra. O teu espaço. A tua geografia. O teu lugar onde o tempo respira mais de acordo com o sol, com a água e com a terra.

Há no teu sorriso uma espécie de antecâmara de um mundo equilibrado entre silêncios e canções, entre frio e calor, entre fogo e água. Depois do sorriso vem a voz, hoje como sempre juvenil. Voz de menina em corpo de mulher. A empurrar as sombras, as tristezas desenhadas, os quartos e os corredores povoados pelo vazio e pela saudade. Sempre que tu trazes um garrafão com água da tua terra, eu sei e sinto que é tudo, todo um mundo, aquilo que trazes na água.

A água propriamente dita, o pó suspenso no ar depois da passagem de um automóvel veloz, a terra húmida depois da chuva, as pedras gigantes da serra, as pequenas ermidas onde os devotos vão entregar garrafas de azeite para alumiar a imagem da padroeira, o silêncio da noite, o escuro lençol que tudo tapa quando o sol dá a sua dádiva de luz aos que vivem do outro lado da terra. Todo o teu modo e todo o teu tempo. A tua geografia e o teu pensamento interior.

Um dia comerei contigo essa sopa feita com a água da tua terra trazida para Lisboa num garrafão. Para então poder apontar num poema de circunstância essa tua tão própria e pessoal arte do encontro. Ou seja, a tua capacidade para fazeres de uma refeição o lugar do encontro entre dois mundos separados pelas convenções, pelas conveniências e pela pressa sem sentido do nosso quotidiano citadino.

José do Carmo Francisco

Num tempo sem blogs…

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Recebemos o texto abaixo, que com prazer reproduzimos, de Ana Francisco Sutherland, arquitecta e autora de Personagens para um Lugar Memorável (Black Sun Editores, Lisboa, 2003), livro sobre que, no saudoso Blogue de Esquerda, se falou com admirado enlevo.

Em 1935 é publicado um anúncio pessoal na revista “Nursery World”, no Reino Unido:

“Can any mother help me? I live a very lonely life as I have no near neighbours. I cannot afford to buy a wireless. I adore reading, but with no library am very limited with books… I have had a rotten time, and been cruelly hurt, both physically and mentally, but I know it is bad to brood and breed hard thoughts and resentments. Can any reader suggest an occupation that will intrigue me and exclude “thinking” and cost nothing! A hard problem, I admit.”

Este pequeno “recorte”, banal e perturbador ao mesmo tempo, é o catalisador para o início do CCC ou Cooperative Correspondence Club, uma iniciativa que durou 55 anos e acompanhou a vida de mais de 20 mulheres. A história do CCC foi recentemente escrita por Jenna Bailey e publicada pela Faber & Faber em Inglaterra, com o título Can any mother help me?.

Em resposta ao pedido de ajuda, várias mulheres decidiram começar a corresponder-se de um modo regular e assim, resolver a solidão da jovem mãe. E definiram uma séria de regras: de 2 em 2 semanas cada membro escreve um texto (sobre actualidades, eventos familiares ou outro qualquer interesses pessoal) e envia-o para a “editora” que compila os textos recebidos e os encaderna com uma capa (de linho e bordada). No dia 1 e 15 de cada mês envia o número completo para a primeira leitora da lista e através dos correios, a revista circula por todos os membros do club. A leitora final lê não só os textos originais, mas também os comentários que foram acrescentados nas margens, e devolve a revista à “editora” que por sua vez redestribui cada artigo às autoras originais.

Falta acrescentar que as mulheres decidiram usar pseudónimos (apesar das identidades reais serem evidentemente conhecidas) o que permitia maior liberdade na escrita. Algumas das “identidades” escolhidas foram: Ubique (do latim “em todo o lado”), Ad Astra, Cotton Gods (homenagem ao pai, trabalhador na produção de algodão), A Priori, Accidia (derivado do latim “accidie” ou preguiça), Sirod (reverso de Doris), Angharad (nome de um parque natural galês), Elektra (dos clássicos – apaixonada pelo pai e de más relações com a mãe) e Rosa (inspirada por uma personagem de Charles Dickens que ”precisava de saber tudo”).

Ana Francisco Sutherland

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Nova livraria, livro excêntrico e piada sobre holandeses

Soube por acaso, mas foi bom saber. Depois de a zona onde vivo ter perdido duas livrarias (Romano Torres em São Mamede e Diário de Notícias no Chiado), gostei de saber que nasceu uma nova livraria entre São Bento e o Príncipe Real, mais em concreto na Travessa de S. José, nº 1.

Foi também por acaso que nela descobri o livro Dicionário Excêntrico , de Amadeu Ferreira de Almeida, uma edição da Portugália. Organizado (como é natural) de «A» a «Z», este livro tem uma entrada curiosa em «Idade»: «Não se deve confiar nunca na mulher que nos diga a sua verdadeira idade. A mulher que o faça é capaz de dizer tudo.» O autor é Óscar Wilde. O mesmo autor surge em «Mulheres»: «As mulheres foram feitas para serem amadas, não para serem compreendidas.»

Já na entrada «Vinho», trata-se de um provérbio holandês que diz o seguinte: «O primeiro copo para a sede, o segundo para o alimento, o terceiro para o prazer, o quarto para a loucura.» Sobre «Poesia», há uma frase de Camilo Castelo Branco: «A poesia não tem presente; ou é esperança ou saudade.» A propósito de «Falar», surge esta frase de Samuel Johnson: «Um francês tem sempre que falar, quer conheça o assunto quer não; um inglês fica contente e calado quando não tem nada que dizer.»

Sobre a palavra «Açúcar» temos esta história engraçada: «Um convidado ao tomar o chá, pede açúcar à dona de casa. Se ela é irlandesa, entrega o açucareiro. Se é inglesa, pergunta: ‘Uma pedra ou duas?’ Se é holandesa, diz: ‘Mexeu bem? O açúcar está no fundo’». O texto aparece como ‘anónimo’, mas a minha surpresa é devido a não serem habituais piadas sobre holandeses. É curioso. Fui ver a data do livro – é de 1961. Tinha eu 10 anos. Cedo para ler livros excêntricos.

Não se pode chamar madeirense a um clube da São Miguel

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Não bastava ao Sporting Clube de Portugal ter um director de jornal que aparece sempre de braços cruzados e se assumiu como director de comunicação pouco tempo antes de serem divulgados em praça pública os ordenados dos jogadores da equipa «A».

Agora surge uma notícia errada chamando madeirense ao Marítimo Sport Clube de Ponta Delgada. É ver o site «www.sporting.pt» para ler o texto do enviado especial do site e do jornal à Academia em Barroca de Alva no dia 25-3-2007 para ver como designam como madeirense a equipa açoriana. Na página 10 do jornal de 27-3-2007 o erro surge repetido e percebe-se porquê: nem o redactor nem ninguém leu o texto errado que assim passou do site para o jornal.

Ora a Calheta é uma freguesia muito especial em Ponta Delgada e diz muito aos sportinguistas. Ali nasceu Mário Jorge, jogador leonino e internacional que nunca esquece de referir o facto de ter nascido na Calheta. Esta confusão de atribuir um bilhete de identidade diferente ao clube micaelense tem a ver com uma questão que é transversal à sociedade portuguesa actual: os jovens nunca perguntam – nem quando sabem nem quando não sabem. Bastaria ter estado atento à maneira de falar das pessoas do banco dos suplentes pata perceber que eram dos Açores.

Eu próprio vi jogar essa simpática agremiação desportiva no dia 18-3-2001 em Alcochete num jogo cujo árbitro foi Luís Rato, o treinador Rui Palhares e o delegado António Atanásio. O resultado foi 19-0 e marcaram os golos: Bruno Severino (1), Miguel Veloso (1), Emídio Rafael (1), Zezinando (2), Bruno Filipe (3), João Moutinho (1), Bruno Soares (4), Vítor Farinha (3), Amílcar Pinto (1) e Ricardo Dias (2). Qual madeirense qual carapuça…