Um rumor de água

Na voz de Fernanda há um rumor de água. Estamos na cidade, passa um eléctrico com turistas a descer uma das colinas de Lisboa, há um carro dos bombeiros sapadores com a sua pressa e as suas sirenes a subir a calçada, alguns jovens estudantes discutem em voz alta o seu pequeno mundo entre mochilas e telemóveis mas, ao mesmo tempo, na voz de Fernanda há um rumor de água. Será a água do Rio Távora, a que sobe no Inverno ao levantar uma neblina portátil quando as águas batem nas pedras gigantes das margens.

Se fosse Verão a voz de Fernanda teria a frescura das fontes onde ainda hoje se bebe por um púcaro de barro vidrado, uma água que mata as sedes mais antigas de quem secou nos lábios o pó dos caminhos para o trabalho e para a romaria.

Mas é Inverno. O sol não aquece os intervalos dos aguaceiros trazidos pelas nuvens mais escuras do lado do Oceano Atlântico. Duas turistas italianas, de mapa de Lisboa em riste, procuram uma livraria que venda partituras musicais. A vida acontece nestes encontros e desencontros. O Inverno teima em continuar como um calendário repreendido.

E a voz de Fernanda, com o seu rumor de água, liga de novo dois mundos separados pela solidão, pela distância e pelo tempo. Tal como numa prece ou num poema, Fernanda vai ligando de novo esses mundos separados. Há uma alegria convocada na Cidade pelo rumor da sua voz que veio das Serras. Assim, como se fosse a capa de um livro e não a realidade real da personagem desta crónica. «A Cidade e as Serras». Na pressa tantas vezes sem sentido da Cidade há uma voz que coloca de novo a funcionar a harmonia do Mundo das Serras. Na voz de Fernanda há um rumor de água.

6 thoughts on “Um rumor de água”

  1. jcf,
    Não sei se na voz dela havia rumor de água, mas vê-se que te matou uma sede d’alma. Valeu a pena a Fernanda, só por isso.

  2. Meu Caro, belíssmo poema em prosa, ou belíssima prosa poética. Tanto faz. E não sou como o RVN que quis logo bisbilhotar se a Fernanda existe ou não. Então para que servem os poetas senão para criarem a verdade até onde ela não existe?
    Só uma questão pessoal. Embirro solenemente com o abuso do verbo “colocar”, como se “pôr” já não servisse para nada. E, em vez daquele “coloca”, um “pôe” dava mais ritmo à frase.

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