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Um livro por semana 91

«Os Narcóticos» de Camilo Castelo Branco (volume 2)

Camilo Castelo Branco subintitula este seu livro (uma miscelânea) como «Notas bibliográficas, históricas, críticas e humorísticas» e avisa os leitores: «O leitor não se assuste. Pelo facto de chamar-se Narcóticos o meu livro, abstenha-se V. Exa. da pretensão egoísta de abrir a boca logo que abrir o livro e estirar-se de papo acima numa regalada modorra cheia de roncos assobiados em cromática infernal pelas trompas nasais. Não pretendo ser mais opiado e calmante que outro qualquer livro nacional. Estimo que adormeçam mas devagar, com os espreguiçamentos usuais nas duas Câmaras e etiquetados com frascos na grande farmácia do Diário das Cortes».

Camilo comenta a sub-literatura, os direitos de autor, discorda de Alexandre Herculano e afirma: «A literatura-mercadoria, a literatura-agiotagem tem na verdade progredido espantosamente». Mais à frente, sobre a poesia, proclama: «A poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade».

As eleições de 1879 originam esta observação: «O Governo progressista de 1879 fez retroceder a liberdade do sufrágio a 1845, com a diferença que antepôs à violência da paulada o suborno das consciências com mais suaves pressões, exceptuando os dorsos que as sentiram duras».

A suspensão do «Boletim da Bibliografia Portuguesa» dirigida por Fernandes Tomás merece a Camilo este reparo: «A suspensão deste periódico é um dos sintomas da podridão que nos vai relaxando e acanalhando a um raso de desprezo das letras que não tem semelhante em parte do Mundo, onde, alguma hora, houvesse livros e civilização».

(Editora: Bonecos Rebeldes, Capa: Fernando Martins, Revisão: António Bárcia)

Gazeta 91

ESTRADA DE MACADAME – José do Carmo Francisco

XCI – «Todas as casas tinham o milagre de D. Fuas Roupinho»

A recente publicação do livro «Canto de mar – uma antologia de poesia sobre a Nazaré», organizada por Alexandre Isaac e Mário Galego, com capa de Mário Botas e publicada pela «Biblioteca da Nazaré» na sua colecção «Bico da memória», veio trazer-me à memória as minhas primeiras idas à Nazaré. Embora haja uma distância entre nós e a famosa praia pois temos primeiro que passar por Alcobaça, a verdade é que sempre senti a Nazaré muito próxima. Desde logo em Santa Catarina todas as casas tinham na parede o milagre de D. Fuas Roupinho ao lado do Sagrado Coração de Jesus ou da Pomba do Espírito Santo. Eram imagens compradas nas feiras de Rio Maior ou de Alcobaça quando não eram vendidas pelas quinquilheiras que apareciam às vezes por Santa Catarina à porta das casas de raparigas casadoiras. Tal como apareciam os ourives com a caixinha do oiro na parte de trás da bicicleta. Hoje já não há enxovais embora continue a haver casamentos. Aliás o que hoje não existe é a paciência que levava as pessoas a costurarem durante as longas noites de Inverno o enxoval de um elemento da família. Mas vejamos o livro de poesia sobre a Nazaré. Para além dos poemas deste obscuro poeta que se assina ao fim da página, integram este «Canto de mar» poemas dos seguintes autores: Afonso Lopes Vieira, Alexandre Isaac, António Borges Coelho, António Feliciano de Castilho, António Jacinto Pascoal, António Osório, António Sales Macatrão, Augusto Oliveira Mendes, Aurelino Costa, Casimiro de Brito, Epifânio Souza, Henrique Manuel Bento Fialho, Jaime Rocha, Joaquim António Emídio, Jorge Reis Sá, Jorge Velhote, José Antunes Ribeiro, José Luís Peixoto, José Soares, Levi Condinho, Luís Paulo Meireles, m. parissy, Manuel de Arriaga, Mário Botas, Miguel Torga, Murilo Mendes, Nicolau Saião, Nuno Rebocho, Paulo Reis Mourão, Pedro Silva Sena, Rui Serafim e Ruy Ventura.

A minha memória da Nazaré que surge nesses poemas é a de um tempo adulto mas em criança tudo aquilo me parecia mágico. O Sítio, a Praia, as Festas, os Círios, o Elevador, as palavras cantadas das mulheres, a voz rouca dos velhos pescadores, o Rancho Tá Mar, as touradas nocturnas. Havia uma ligação às touradas pela simples razão que a Filarmónica Catarinense era convidada de vez em quando para abrilhantar as touradas das Festas da Nazaré e por isso a primeira tourada que vi foi uma nocturna. Era no tempo da grande rivalidade entre o Manuel dos Santos e o Diamantino Vizeu sem esquecer outros como o Amadeu dos Anjos e o José Trincheira além de outros dois ribatejanos (Mário Coelho e José Júlio) que eu viria a conhecer em Vila Franca de Xira. Lembro-me perfeitamente de uma das pessoas que tinha ido connosco da minha terra às Festas da Nazaré ter dito nessa noite: «Olha entrou agora o capinha!». Não se dizia toureiro nem novilheiro nem matador mas sim capinha. São todas essas memórias do tempo da Estrada de Macadame que aparecem convocadas no meu espírito a propósito da alegria que foi ver os meus poemas numa antologia de homenagem à Nazaré, sua paisagem e seu povoamento.

Para mim é algo especial eu ter poemas meus publicados num livro que integra poemas de Afonso Lopes Vieira e de Miguel Torga. Se como dizem «toda a literatura é uma homenagem à literatura» então a prova está aqui neste livro. Eu que comecei a gostar de ler poesia no Ciclo Preparatório com dez anos de idade percebo que o facto de os meus poemas estarem lado a lado com esses dois clássicos (e de todos os outros, obviamente) prova que a literatura é (mesmo) uma homenagem à literatura.

Vinte Linhas 297

Uma tarde no banco de Marta

Estamos no meio de Novembro mas o sol permanece como se fosse Verão.

Há nove espreguiçadeiras ocupadas, cinco pescadores com seis canas de pesca e o mar que parece um espelho gigante com o sol a bater-lhe em cheio. Efeitos do anticiclone dos Açores, dirá um especialista. Mas o que conta para estas dezenas de pessoas aqui à volta é o usufruto do esplendor do sol, a quase ausência de vento, o ruído feliz das ondas a lembrar os primeiros sons do álbum «Bom voyage» de Vangelis Papathanassiou.

No banco de Marta estendem-se os jornais do dia, a vitória de Obama, o escândalo do Banco Português de Negócios, a polémica das arbitragens em Portugal provando uma vez mais duas coisas: depois de 1983 ninguém acredita em ninguém no futebol português e os estádios só não estão completamente vazios porque a paixão clubista ainda não morreu.

As conversas chegam aqui perto da âncora deitada que parece um enorme travessão no meio da tarde: uma senhora tem o cabelo fraco e precisa de acertar as pontas, a outra tem a filha no estrangeiro e já não a vê há largos meses. Além disso não sabe o que há-de fazer para o jantar neste sábado de sol. De súbito um fotógrafo de meia-idade e um jovem operador de câmara aparecem nas rochas, por cima dos antigos viveiros dos restaurantes e dos hotéis da Ericeira. Fotografam e filmam um rapaz e uma rapariga que parecem noivos em despedida de solteiro ou em ensaios para as fotografias do casamento de amanhã. Assim como apareceram os quatro desaparecem velozmente para o lado da praia dos pescadores. Só o sol e as gaivotas permanecem frente ao espelho luminoso da massa líquida do Oceano em frente ao banco de Marta.

Vinte Linhas 296

Eu fui o enviado especial à Nazaré em 15-7-1997

Todo este vendaval à volta da péssima arbitragem de Bruno Paixão no jogo Sporting-Porto para a Taça de Portugal fez-me recordar o dia 15-7-1997 quando fui como enviado especial ao jogo decisivo Boavista-Sporting para atribuição do título de campeão nacional de juniores. O jogo disputou-se no estádio Municipal da Nazaré e o árbitro foi Bruno Paixão auxiliado por António Godinho e Francisco Mendes. Pelo Sporting alinharam: Nuno Santos, Travassos, Caneira, Valente, Orlando, Gomes, Kakinda, Assis, Gabriel, Vargas, Simão, Nuno Moreira, Alhandra e Paulo Costa. Os «leões» marcaram primeiro por Gabriel mas o Boavista na segunda parte e só com 10 jogadores deu a volta ao jogo. Segundo A BOLA de 16-7-1997 «o Boavista, em inferioridade numérica, apelou a todas as suas reservas físicas e anímicas, para operar a reviravolta. Com alguma sorte e a ajuda do árbitro que lhe perdoou uma grande penalidade aos 85 minutos (braço na bola de Nuno Gomes).» Repare-se que o jornal A BOLA foi fundado por Ribeiro dos Reis, um reputado especialista em arbitragem e trata sempre as arbitragem com luvas mas este itálico na palavra «ajuda» diz tudo sobre o caso: Simão Sabrosa fintou Sérgio Leite e o defesa Nuno Gomes desviou a bola com o braço mas o árbitro marcou, heroicamente, um pontapé de canto. Lá no alto da tribuna de honra Valentim Loureiro sorria. Cá em baixo o treinador boavisteiro Queiró dizia ao treinador dos «leões» Rui Palhares, mesmo ao meu lado, quando me preparava para recolher as suas palavras: «Pensava que eras tu a trazer o árbitro mas fomos nós!». Conclusão: as pessoas não mudam e quando por acaso mudam, mudam mas para pior…

Um livro por semana 88

«Música de viagem» de Cristino Cortes

Neste conjunto de 77 poemas, nesta «sinfonia poética» (como lhe chamou António Salvado) o autor revisita poemas de Pasolini, Francisco Sá de Miranda, Almeida Garrett, António Nobre, Guerra Junqueiro, Pascoaes, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Florbela Espanca, Miguel Torga, Alberto Pimenta, Cesário Verde, Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Luís de Camões e Manuel Simões, em Veneza:

«Deusa vivendo da beleza própria e exterior, Veneza / A aumenta e mantém com seu perfume, invencível filtro / De amor atraindo o tempo e os deuses, os da música / Aérea e aquática fluindo em força da natureza».

Música de viagem porque viaja entre o «eu» e o «Mundo» mas também viagem ao lado de dentro da construção do poema:

«Em todo o sítio a encontro, nas viagens que abraço / Ou imagino, também entre as pregas da rotina / Desse fluir diário, qual face de vulgar esquina / Com ela vivo e decerto que bem pouco faço! / É uma inconsciência quase, específica forma / De respirar, um pressentimento, um vago aroma / Na atmosfera se evolando ou pressentindo, oh dona / De magia e mistério, sem fixar regra ou norma! / Ela é fado ou destino, uns dirão graça ou bênção / E outros, talvez, falha, falta ou maldição, depende / Da perspectiva, objectivos em que alguém se entende / – Estes anos em que por algo bate o coração… / Ando com ela, sou-lhe fiel, e não saberia / Fugir-lhe ou deixá-la, mistério, aragem esguia.»

(Edição: Papiro Editora, Capa: Ana Machado, Apresentação: António Salvado)

Um livro por semana 85


«Mataram o chefe de posto» de E. S. Tagino

Recém-chegado a Kimbali no interior de Moçambique, o alferes Ferreira compara as duas vivências depois de ser convidado a jantar com um casal: «Em Portugal tudo era acanhado, fechado, mesquinho. As pessoas espreitavam por detrás das cortinas. Comiam com a cabeça dentro da gaveta. Eram desconfiadas e maledicentes. Guardavam segredos que viravam boatos. Viviam e morriam enclausuradas, esfíngicas e indecifráveis. As mulheres não iam aos cafés nem sorriam a estranhos, das varandas das casas. As mulheres não andavam de vestidos claros. Na Metrópole as mulheres estavam recolhidas e só usavam vestidos pretos ou de cores escuras.» Em total oposição ao discurso político oficial, o chefe de posto explica com todas as letras que os militares portugueses não são bem aceites em Kimbali: «Você e os seus homens, como militares, desculpe a franqueza, não são nem nunca serão bem vindos a Kimbali. Esta é uma terra pacata que tem sabido desde sempre preservar a paz. A vossa chegada veio perturbar, perigosamente, o nosso quadro de serenidade e equilíbrio». O envolvimento geral em Moçambique é ainda mais complicado: «Em 21 de Julho de 1969 ocorre no Zambeze o maior desastre de toda a guerra colonial. Cento e um homens morrem afogados quando um batelão de transporte se afundou no rio. Com os militares perdeu-se também um número significativo de viaturas e diverso armamento que seguia para o norte de Moçambique. Exactamente no mesmo dia o General era nomeado Comandante do Exército de Moçambique. Esta extraordinária coincidência só podia profetizar um desastre ainda maior.» É neste teatro que se desenvolve a componente policial deste livro que recebeu o Prémio Cidade de Almada 2006. O moleque Formiga é o pregoeiro desse drama em que a morte e o amor se envolvem. A moral da história parece ser esta: a única resposta à morte é o amor porque só o amor constrói novas vidas, novas esperanças, novas apostas no futuro.

(Editora: Saída de Emergência Apoio: Câmaras Municipais de Almada e de Grândola)

Um livro por semana 86

«Tudo bem em Santarém e outros poemas menores» de Mário Rui Silvestre

A infância, sendo o tempo no qual nem as lágrimas nem os beijos têm preço, é o ponto de partida deste livro: «A casa às vezes enchia-se de gente / comigo no chão olhando em redor». Esta paisagem é povoada pelos heróis do «Mundo de aventuras»: «de lá guardarei as costas ao Zorro / que vai num galope pela pradaria / salvar dos bandidos o que resta da tarde». Nos intervalos da escola e da catequese, o pião e o berlinde: «azul e verde rubi sanguíneo / água marinha quartzo transparente / ametista irreal anil iridescente / os berlindes jogados no terreiro». Os ranchos da azeitona passam pela infância e ficam no poema («Finda a campanha / fazem a festa / da adiafa / regressam cantando / às suas terras / sempre tão pobres / como vieram») lado a lado com a poluição do Rio Alviela: «um cheiro a morte turva o dia / nojenta náusea paira sobre a vila / odor ao que o dinheiro corrupto exala / dos que à vida dos outros pouco ligam».

O poema-título não refere a infância mas o tempo do Liceu: «Terra dos Leões o clube de futebol regional / de vários campeões que gostávamos de imitar / nos jogos no campo da bola atrás de Santa Clara / um pouco depois das aulas e antes dos matraquilhos». Três autores povoam este espaço: Alexandre Herculano, Guilherme de Azevedo e Ruy Belo: «A melhor coisa que fez / a sua poesia aqui não jaz / pois vive inteira em quem a lê / glória ao autor que durma em paz». Um dos poemas acaba por desenhar o perfil do livro: «o desenho no caderno / linhas vivas num só plano / sangrento sol no poente / tens os olhos tens a mão / o desenho que principia / trémulo só no começo / o cigarro na sinistra / o fumo no olhar aceso». O caderno que o jovem pede à amada para não fechar é o livro que o adulto assina e não se fecha porque povoado de gente a amar e a morrer: «Vinte mil soldados miguelistas / agonizam de peste em Santarém / cercados por vinte mil soldados liberais / rotos famintos fartos de tanto sofrimento». O título é irónico: nem os poemas são menores nem está tudo bem em Santarém.

(Editora: Auctoris, Capa e design: Flávio Carlos Silvestre, Apoio: Fundação Comendador José Gonçalves Pereira)

Um livro por semana 90



«No vértice da noite» de Adalberto Alves

Nascido no Ocidente, Adalberto Alves desde sempre se deixou fascinar pelo Oriente. Não por acaso o título de um dos seus livros é «O meu coração é árabe».

O seu ponto de partida são as palavras: «há palavras / impossíveis de ser ditas / como corações / que nenhum peito comporta / são palavras sem nome / mudas / noites sem lua».

O seu ponto de chegada é o amor: «mesquinho é quem não soube amar / nem provou jamais a embriaguez do amor / ó tu que nunca amaste, como dás valor / ao ofuscante sol e à luz do luar?»

Pelo meio uma viagem pelos mitos do nosso tempo; sejam eles do mundo da literatura como Lorca («Granada são meninos mouros / que o absurdo crescente devora / buraco de sete balas acordadas / um touro triste brame e espanta / o bando das bandarilhas ilegítimas») ou do mundo do futebol como Matateu: «deste cor azul à alegria / que há na finta e cada golo tem / no campo ergueste alto cada dia / o nome português e de Belém / chegaste de um terra quente / e foste acabar em terra fria / vives agora no coração da gente / que contigo aos domingos renascia / há um desafio que nunca finda / há corações batendo em sobressalto / no coro que se ouve e que te chama / está o jogo no momento alto / prá frente Matateu! um golo ainda! / todo um estádio se ergue e te aclama.»

(Editora: Argusnauta, Capa: Figueiredo Sobral, Retrato do autor: Luís Veiga Leitão)

Um livro por semana 52

«O calcanhar d´Aquiles» de Rafael Bordalo Pinheiro

Tem data de 1870 a 1ª edição deste álbum de caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro que, como refere Manuel de Sousa Pinto em 1915, representa o primeiro documento notável da caricatura portuguesa num tempo em que esta forma de arte era ainda em Portugal «raquítica e balbuciante». Tudo terá começado nas páginas do jornal «Revolução de Setembro» com a publicação de quatro sonetos mostrando o calcanhar de Aquiles de várias figuras das letras daquele tempo: Luís de Campos, Ramalho Ortigão, Manuel Roussado e Eduardo Vidal. Clemente dos Santos convidou Rafael Bordalo Pinheiro a conceber desenhos capazes de «pôr em evidência a parte vulnerável ou grotesca de cada cidadão caricaturado». É assim que surgem (entre outros) as figuras de Manuel de Arriaga, João de Deus, Alexandre Herculano, Mendes Leal, Pinheiro Chagas, Júlio César Machado, Bulhão Pato, Camilo Castelo Branco e António Feliciano de Castilho. Além de repetir o álbum de 1870 esta edição actual inclui vários desenhos preparatórios e esboços que estão no Museu de Rafael Bordalo Pinheiro. Como afirma Teixeira de Vasconcelos toda a caricatura tem uma filosofia: quando Pinheiro Chagas aparece travestido de Morgadinha de Valflor recebendo apenas coroas de flores enquanto o empresário recebe muito dinheiro, está indicada na caricatura a mesquinha proporção entre o modesto prémio dos homens de letras e os lucros avultados dos teatros. Ontem como hoje…

(Editora: Frenesi, Paginação: Paulo da Costa Domingos, Assistência editorial: Telma Rodrigues)

Vinte Linhas 295

O «pão-por-Deus» num dia de sol na Ericeira

Pois é, Marta. Ainda há terras portuguesas onde a tradição não se perdeu. No meu tempo de criança ia, quase sempre debaixo de chuva, com um saquinho de pano, pedir o «pão-por-Deus» a todas as casas da sede de freguesia entre os dois Paços que são pequenas capelas a marcar o fim da terra. Já nesse tempo toda a regra tinha excepção: do lado de cá íamos longe até à casa da tia Laura que tinha para nós as melhores nozes e do lado de lá íamos sempre à casa do tio Zé Ivo que tinha as melhores batatas-doces assadas.

A minha filha mais velha ainda andou no «pão-por-Deus», na minha terra tinha ela quatro anos. Aqui na Ericeira gostei de ver os miúdos mais pequeninos a entrarem nas lojas e nos cafés a pedirem «pão-por-Deus». Até a Junta de Freguesia colocou um empregado a oferecer bolachas e chocolates aos pequeninos no largo do Jogo da Bola. A mim, no T Zero, apareceram três miúdos tinha eu chegado há minutos e felizmente tinha nozes na mesa da cozinha. Lá me desenrasquei com o «pão-por-Deus». Nem tudo é igual. Aqui na Ericeira os miúdos pedem no dia 1 nas terras à volta e no dia 2 dentro da terra. Foi por serem tantos que o carro da Junta de Freguesia teve que ir buscar «reforços». Nada que uma chamada de telemóvel não resolva. Num mundo tão hostil onde o habitual é virem sacar o nosso dinheiro para pagar os desvarios dos outros, esta oferta de «pão-por-Deus» surge como um oásis de alegria convocada e reunida por uma tradição. Os olhos das crianças não mentem. E eu fiquei comovido pois até me parecia que o meu neto também andava por aqui, neste grupo que acaba de entrar no café Central a pedir «pão-por-Deus» com um saco meio-cheio de nozes, passas, figos secos e bolos com erva-doce.

Vinte Linhas 294

Os «Narcóticos» de Camilo num banco frente ao mar da Ericeira

Leio o volume II dos «Narcóticos» de Camilo Castelo Branco (Bonecos Rebeldes) no banco de Marta (blog laberintodepapel) frente ao mar da Ericeira. O sol de Outono ilumina as páginas: «O leitor não se assuste. Pelo facto de chamar-se Narcóticos o meu livro, abstenha-se V. Exa. da pretensão egoísta de abrir a boca logo que abrir o livro e estirar-se de papo acima numa regalada modorra cheia de roncos assobiados em cromática infernal pelas trompas nasais. Não pretendo ser mais opiado e calmante que outro qualquer livro nacional. Estimo que adormeçam mas devagar, com os espreguiçamentos usuais nas duas Câmaras e etiquetados com frascos na grande farmácia do Diário das Cortes». Camilo comenta os direitos de autor, discorda de Alexandre Herculano e afirma: «A literatura-mercadoria, a literatura-agiotagem tem na verdade progredido espantosamente». Mais à frente, sobre a poesia, proclama: «A poesia não tem presente: ou é esperança ou saudade». As eleições de 1879 originam esta observação: «O Governo progressista de 1879 fez retroceder a liberdade do sufrágio a 1845, com a diferença que antepôs à violência da paulada o suborno das consciências com mais suaves pressões, exceptuando os dorsos que as sentiram duras». A suspensão do «Boletim da Bibliografia Portuguesa» dirigida por Fernandes Tomás merece a Camilo este reparo: «A suspensão deste periódico é um dos sintomas da podridão que nos vai relaxando e acanalhando a um raso de desprezo das letras que não tem semelhante em parte do Mundo, onde, alguma hora, houvesse livros e civilização».

A Anabela trouxe das Caves de Gaia um Ramos Pinto de lei. Com ele, com as castanhas e os sonhos de abóbora da esplanada de Santa Marta poderíamos fazer um pão-por-Deus. Marta, se não sabes o que é um pão-por-Deus eu explico na próxima crónica.

Vinte Linhas 293

«Mata – um falar peculiar e outras curiosidades» ou uma monografia em 2008

Houve tempos em que as localidades portuguesas aspiravam a ter uma Monografia. José Cardoso Pires fez da Monografia da Gafeira personagem do seu romance «O Delfim». Este livro de Manuel Barata, publicado por Edições Alecrim poderia ser a «Monografia da Mata». Existe na Mata (Castelo Branco) um falar peculiar. Esse é o ponto de partida. Na Mata diz-se acajadar por guardar, apalamado por adoentado, arrezoar por murmurar, assedento por mau-olhado, baldão por desleixado, banquinha por mesa-de-cabeceira ou burra por picota. Seguem-se algumas expressões populares (como sardinha no ar em vez de levar um estalo) e as alcunhas, os ofícios e as profissões do campo. Depois surgem os lagares de azeite, as mercearias, as tabernas, os cafés, as forjas, as oficinas., os sapateiros, os alfaiates, os barbeiros, os talhos, as serrações, os moleiros. Noutro capítulo recorda-se a festa do casamento que incluía o cortejo, os rebuçados, o copo de água e a terrina de sopa para as crianças. Segue-se a memória das casas: «uma porta de entrada e um corredor, no início deste uma porta que dava acesso a uma salinha e esta dava comunicação a dois quartos, um destinado ao casal e o outro aos filhos e/ou às filhas.» Também a memória das festas e procissões, danças e cavalhadas. Por fim os jogos e a culinária, o posto da GNR, a prática religiosa e a difícil sociabilidade dos seus habitantes: «A Mata esteve isolada durante séculos. A construção da actual estrada, que liga a povoação à EN 240 ocorreu já nos anos cinquenta. A anterior ligação era de terra batida. A Castelo Branco ia-se ao médico quando a coisa não passava com os remédios caseiros e rezas ou para tratar de assuntos importantes».

Um livro por semana 53

«Poemas de um livro rasgado» de Fernando Botto Semedo

Depois de «Transparências» em 2006 e «Poemas simples» em 2007, Fernando Botto Semedo surge com este «Poemas de um livro rasgado». Uma vez mais a busca da infância: «Poemas escritos por abismos sem fim / na minha alma, através da luz das minhas / lágrimas, buscando a infância velha». Só que, a juntar às lágrimas do poeta, existem as lágrimas de Deus: «Poemas do meu desgastado rosto / poemas levantando voo pela minha infância / cheia de lágrimas de Deus». Entre o precário da vida e o inevitável da morte, a única resposta é o amor: «A primavera das palavras teria chegado / com o teu rosto de uma inacessível beleza / ó vestal desconhecida que bailas sem corpo / nos confins do meu sangue gasto.» Noutro poema se faz essa visita ao passado («Na minha infância as palavras eram queimadas») para, logo a seguir, um outro poema proclamar o amor: «Ó música que oiço cantando no interior / de um sol íntimo da minha alma emparedada / ó rostos inclinados para o fim – ó meu amor / para sempre alienado no tempo!» Perante um mundo hostil («asfixiando o rosto de um Deus da patinagem artística / da televisão por cabo, entre o ardor dos / anjos do vazio e as lágrimas de todas as crianças») o paraíso perdido do poeta está na infância guardada em molduras de prata: «Via as fotografias coloridas da sua infância / espalhadas por molduras de prata líquida / na casa da alegria fictícia – ó sangue / das lágrimas de uma primavera soterrada / num campo infinito da arqueologia de Deus.»

(Capa: Fernando Botto Semedo, Impressão: Gráfica 2000)

Um livro por semana 54

«A Terceira Atlântida» de Fernanda Durão Ferreira

Este livro começa em 26-7-1880 quando o súbdito britânico Gordon Mason, viajando de Southamptom para o Rio de Janeiro, em escala técnica na Ilha Terceira, assiste a uma tourada na Vila Nova com o imediato do navio «Santa Helena». Depois da tourada o lanche, depois do lanche a conversa e, chegada a noite, o amigo terceirense do imediato do navio emprestou dois cavalos e cedeu um criado para os acompanhar até Angra do Heroísmo. No caminho encontraram dez homens da «Justiça da Noite» que se dedicavam a derrubar um muro e um portão com marretas e cordas. Passado o susto inicial, com a preciosa ajuda do criado, o viajante (e o imediato) seguiram viagem e, já a caminho do Rio de Janeiro, ouviu a bordo um professor de História afirmar: «Esses e outros costumes são quase tão antigos como a própria Ilha. Ilha que há muitos, muitos séculos tinha um outro nome e possuía outra cultura.» As touradas à corda são hoje uma prática igual à que foi descrita por Platão com os dez pastores a serem a memória dos dez reis da Atlântida. A «Justiça da Noite» que funcionou até à segunda metade do século XX é a memória da justiça dos dez reis da Atlântida pois nesse tempo, como escreveu Platão, «o rei não era senhor de condenar à morte sem o assentimento de mais de metade dos dez reis.» O próprio rei D. Afonso V, numa carta de mercê ao cavaleiro Fernão Teles em 10-11-1475, escreve o seguinte: «Faço mercê de quaisquer ilhas que achar, ilhas despovoadas, ilhas povoadas e ilhas povoadas que ao presente não são navegadas nem achadas nem tratadas por meus naturais.» Como se percebe pelas citações, este livro tem muito que se lhe diga sobre as raízes da tradição Atlante nos Açores mas ficamos por aqui lembrando Vitorino Nemésio que escreveu um dia: «A Geografia para nós vale tanto como a História».

(Editora: Zéfiro, Prefácio: José Fonseca e Costa, Grafismo: Sofia Vaz Ribeiro)

Vinte Linhas 292

«A Batalha das Lágrimas» que só agora começou

Pode parecer insólito mas gostaria de sugerir a leitura de uma livro que ainda não acabei de ler. Ainda vou na página 63 mas pareceu-me importante abrir uma excepção. O livro é «A batalha das lágrimas» de Joana Ruas, edição Calendário das Letras. Estou fascinado com este livro. Trata-se de um romance que conta as histórias da História e cujo pano de fundo é a vida em Timor entre 1870 e 1910, em pleno Ultimato britânico. Nesse tempo o governador repetia muitas vezes: «Estou aqui para governar e governar é submeter!».

Um viajante recém-chegado define assim o território: «Timor não tem uma biblioteca, nem um grémio, nem um teatro, nem um bilhar, nem uma orquestra, nem um meio qualquer de distracção do espírito». Resta fazer política: «Fazer política aqui reduz-se a discutir se se é pelo governador ou contar o governador». A diversidade religiosa é complicada: «Há quatro religiões aqui: a animista, a católica, a islâmica e a budista. E há a considerar a pressão do calvinismo a partir do Timor Ocidental».

A autora explica o que entende por povo de Timor: «Esta sociedade incaracterística, sem tradições definidas, invadida e perturbada pela massa de estrangeiros que a explora e abandona, continha muitas raças sem que houvesse um povo».

Poderia chamar-se este livro «O governador e a rainha» mas não. Primeiro esqueceria o papel de João Maurício, o brasileiro que liga habilmente os diversos fios da narrativa. Depois não poderia esquecer que «A batalha das lágrimas» é o nome que ficou para sempre nos relatórios escritos dos militares portugueses e na memória dos habitantes de Timor. O recado está dado: espreitem este livro, amigos e amigas. É um acontecimento…

Um livro por semana 55


«Cal» de José Luís Peixoto

A cal que dá título ao livro pode ser a cal da vida («a casa é caiada ano sim, ano não») ou a cal da morte, a do caixão dos mortos. Vida e morte, amor e ódio, vazio e esperança – são estes os limites das narrativas, dos poemas e da peça de teatro que integram este volume. As crianças correm pelas ruas da vila: «O céu das hortas é maior que o mundo: / a vila apresenta ruas calcetadas para / homens de sapatinho fino, mulheres / sozinhas e cachopos: eh, cachopo de má raça. / Vamos aos figos e passamos a vida: / a vila às vezes é desenhada por esta aragem que é o lápis de um carpinteiro.» Os velhos recusam a velhice («sentia-se tão velha como se tivesse nascido no primeiro dia do mundo») e às vencem conseguem vencer o tempo: «Nem o homem nem Ana tinham um único cabelo branco.» Também recusam a realidade servida pela televisão: «só mostram este homem a falar, bem podiam mostrar uma praia ou um casamento.» Também recusam a solidão e o vazio: «Porque chora vossemecê Ti Carlota? Já não presto para nada. Não diga isso, Ti Carlota, a gente gosta muito de si.» A peça de teatro tem cinco protagonistas, todos com mais de 70 anos. A partir da solidão da aldeia («às vezes até me parece que isto tudo é uma espécie de sonho») chegam à esperança: «Tanto que eu esperei por isto, meu amor bendito. Agora podemos descansar, temos a vida toda à nossa frente.» O autor não precisou de chegar aos 80 anos para entender a sabedoria da vida que interessa, a do amor: «Em natais, festas de aniversário com pão-de-ló ou em casamentos, as mulheres de 80 anos reúnem uma assembleia de afilhadas solteiras e explicam-lhes que a vida é transparente e que o passado, fechado em armários que rangem durante a noite, brilha às vezes, como as pratas dos chocolates que entregam nas mãos das crianças.»

(Editora: Bertrand, Capa: Vera Braga)

Vinte Linhas 291

Jorge Bretão – o sacerdote da liturgia da memória

Os telemóveis não paravam de avisar na quinta-feira cheia de sol: morreu o Jorge Bretão. Assim de repente, esta notícia. Ele, jornalista sem jornal e poeta sem livro publicado, deixava de contar histórias e entrava para a história. Açoriano e Terceirense apaixonado, fez parte de duas das mais curiosas tertúlias de Lisboa. Uma semanal na Sociedade de Geografia e outra mensal com Dulce Matos na Valenciana em Campolide.

Almoçar ou jantar com o Jorge era ter direito a todas as memórias. Ele era um sacerdote que as celebrava com fervor. Podia ser uma viagem a Buenos Aires, uma tourada em Vila Nova, um certo teatro de Viena ou uma ilha de Veneza onde as mulheres ficam a repetir nas rendas o quadrado branco das redes dos pescadores da laguna. Ou podia ser uma procissão, um tremor de terra, um império do Espírito Santo (Glória ao Divino!) ou um grupo de músicos a tocar o pezinho dos bezerros. Ou ainda uma história da Universidade de Coimbra, uma aventura em Cabinda no serviço militar ou a paixão pelo Belenenses, o único clube que tem a Cruz de Cristo no emblema.

Natália Correia escreveu um dia estes versos definitivos: «Nasce-se em Setúbal / Nasce-se em Pequim / Eu sou dos Açores / Mas não é assim / A gente só nasce / Quando somos nós / que temos as dores». Se é assim para a vida, talvez para a morte seja a mesma coisa. Assim, por exemplo: «A gente só morre / quando são os outros / que nos esquecem».

Se morreu o poeta sem livro e o jornalista sem jornal, o amigo não morre e continua na memória activa dos seus companheiros. Todas as segundas-feiras e nas últimas quartas-feiras de cada mês, na mesa do encontro, altar pequeno onde se celebra a memória.

Um livro por semana 56

«Se me comovesse o amor» de Francisco José Viegas

Neste décimo livro de poemas, Francisco José Viegas (Foz Côa, 1962) retoma a melancolia e as viagens. Não apenas as viagens na geografia (Buenos Aires, Paris, Israel, Frankfurt, Antuérpia, Caracas) mas também a viagem que toda a vida acaba por ser: «Se me comovesse o amor como me comove / a morte dos que amei, eu viveria feliz.» A morte está sempre presente. Seja de uma tia («Ela despedia-se da vida, era a Páscoa. Melhor: as urzes / floridas ainda, sobrevivendo – um vento, as matérias / do medo, colinas de pinheiros, alegorias, orações») seja de um amigo: «São as mais estranhas árvores, as que descem até às raízes; / pela última vez se visitam, antes que venha uma nuvem / ou que os animais te despertem a meio da noite.» O poema responde a uma pergunta: «Os pais dos teus pais, os filhos dos teus filhos / é isto uma família? O que separa o futuro daquele lugar / onde os teus mortos repousam? Avós adormeceram, / abandonados em campas coberta de terra e xisto». Mas também discute a sua própria natureza: «Alguém lê o que escreves, triste consolação / pálida alegria caindo sobre a tarde das coisas. / Cada palavra é um resumo – e, em cada palavra, quanto deixas de teu?» Entre a fragilidade do amor e a certeza da morte, a literatura pode ser uma salvação: «Séculos de literatura fizeram de nós apenas isso / passageiros obedientes, leitores compulsivos / geógrafos errantes que desconhecem os nomes / entre as montanhas, o que fica no meio das árvores. / Não vale muito. A vida interrompe as páginas dos livros / como entende, transporta nuvens espessas / ignora os pardais nas margens dos bosques.»

(Editora: Quasi – Famalicão, Foto: Steve Woods)

Vinte Linhas 290

A Algéria da «Visão» ou «os computadores já fazem esse trabalho…»

Quando há alguns anos os revisores começaram a ser dispensados pelas administrações dos jornais, ficou célebre um engenheiro que explicou: «Não é preciso revisor. Os computadores já fazem esse trabalho…»

A página 73 da Revista «Visão» desta semana apresenta um trabalho jornalístico assinado por Clara Teixeira e João Paulo Vieira o qual, numa caixa intitulada «Onde está o dinheiro», se refere à Argélia como se fosse Algéria. Claro que todos sabemos que em França se diz e se escreve Algerie e que os nosso simpáticos emigrantes dizem os algerianos tal como dizem (por lapso mais que óbvio) os romanos em vez de os romenos. É tudo uma questão de som.

Fazem lembrar um daqueles emigrantes portugueses do princípio (anos cinquenta) quando chegou de férias à sua terra e disse aos primos como era a França: «Oh Primo! Trabalha-se muito, ganha-se bem mas vai quase tudo para as ampolas». Só muitos anos depois é que a malta da aldeia descobriu que ele queria dizer impostos mas julgava que era só dar um arzinho português – ouvia dizer les ampô dizia as ampolas.

O engenheiro não tem razão nem nunca vai ter razão. Os computadores poderão ter programas para corrigir erros de ortografia no Word mas só o espírito e a vivacidade de um ser humano atento pode descobrir um problema de sentido. Algéria não faz sentido naquele texto porque a palavra portuguesa é Argélia. A capital é Argel e não Alger como dizem os franceses. Aqui não era um erro de ortografia. Era algo mais. Algo que não cabe em nenhum computador nem na cabeça de nenhum engenheiro administrador de jornais.

Vinte Linhas 289

Postal da Ericeira para Marta em Madrid

Está um sol esplendoroso e quente, aqui na Ericeira. Em Lisboa chove e em Sete Rios caiu uma tromba de água. Do limite da esplanada vejo o teu banco. Passou a ser designado como o teu banco quando o descobri no teu Blog. Continua a chover em Lisboa segundo me informam os telemóveis em cima da mesa. O empregado brasileiro serve-me um carioca de limão e continua a achar graça às palavras do preçário. Tal como eu, na revisão de um livro para diabéticos, achei graça a um bolo brasileiro que se chama «pé de moleque». Tal como duas italianas acharam insólito ouvir dizer em voz alta no bar da Faculdade de Arquitectura da Universidade Lusíada na Junqueira esta frase: «Duas italianas para este senhor!»

Está um sol esplendoroso e quente. Também pelo inesperado sol de Outubro, as crianças encheram o parque infantil de Santa Marta. Ao lado o carro do Noddy continua a atrair os mais pequenos e as moedas não páram de cair. Um eléctrico pequenino tem nas bandeiras um destino curioso que eles ainda não percebem. Neverland. Terra do Nunca. Talvez seja esta mesa de esplanada onde tento juntar a imagem do teu banco, o sol que faz do mar um imenso espelho e as gaivotas que atravessam a esplanada para virem descansar no lugar onde ficavam as antigas balizas do hóquei em patins. A âncora deitada que separa o teu banco das rochas, onde um grupo de idosos apanha sol e iodo, forma um gigantesco travessão. As gaivotas não páram e vão espreitar de novo a luz branca das ondas contras as rochas. Parecem vírgulas inesperadas e sonoras na organização das linhas deste postal da Ericeira para ti. O travessão da âncora, a vírgula das gaivotas, o banco à tua espera.