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O país sem sossego

Três quartos de Portugal não existem há muito. Criaram-se à lei da natureza, serviram de lastro às caravelas, formigaram como bichos na paisagem, e fugiram a salto para a Europa a ver se matavam a fome.
Agora deram-lhes carta de alforria, como se a vida se fizesse por milagre. O orçamento é curto, a justiça ressona atrás das togas, a educação multiplica iletrados, e a saúde nacional não faz fortunas.
Um Portugal assim não tem sossego. Ou volta ao nada que já foi, durante cinco séculos, ou encontra o portão do 5º Império, que uns visionários lhe dão por garantido.

Jorge Carvalheira

Gessos e bolandas

O viajante vai a subir as escadas dum alpendre belíssimo, numa casa velha de telhado a cair, quando os acordes vibrantes dum carrilhão electrónico se põem a gritar o meio-dia na capela de S. Sebastião, que está escondida ali ao lado. Indústrias de Braga, pensa o viajante, que decide afastar-se a ver se salva os tímpanos. A esta hora o sol é já duríssimo, e rua está deserta. Mas o viajante sente o peso duns olhos que o espiam, se não forem enganos dum instinto antigo que lhe parece conservar. Há um portão de folha que se entreabriu, e dele sai um homem abrigado num chapéu de palha. Apesar da barulheira do carrilhão, a retumbar nos ares um avé de Fátima que ameaça não ter fim, o encontro é inevitável.
Os modos do homem do chapéu de palha são os de quem sofreu uma invasão. Quer saber de que é que o viajante anda à procura.
– Procurar, procurar, não procuro! Ando a ver! As pessoas, as casas, o mundo…
Ao homem parece que agradou a resposta vaga de filósofo barato, porque se abriu num sorriso. Quanto ao viajante, depressa se deu conta da sorte que teve neste encontro, porque o senhor Albino não é uma personagem vulgar. O senhor Albino é uma figura que saiu agora mesmo dum quadro campestre de há um século atrás, para vir encontrar-se aqui com o viajante. Usa o mesmo vestuário, conserva os modos antigos do falar, espalha em volta o cheiro dum suor que há muito tempo se vai lavando a si mesmo, e cobre a cabeça com um chapéu de palha que já não existe. O viajante não vinha à procura do Portugal antigo, que o guarda na memória com grande utilidade, mas fica satisfeito por encontrá-lo aqui. Melhor pode cotejá-lo com o Portugal moderno, se não é isto forçar as palavras, e tirar a prova aos dois.
O viajante observa melhor o seu interlocutor, de aspecto já um tanto alquebrado.
– Vida dura, amigo!
O homem ufana-se de ter já tantos anos como sessenta e sete, e de manter a sua actividade, mas lamenta a dureza dos seus ingratos trabalhos. E muitas vezes vãos, o que é pior. Ao contrário de muita gente, teve sempre terras suas onde trabalhar, e foi por isso que não emigrou, no tempo certo. Tem filhos ainda novos, que andam a estudar, e à surpresa do viajante confidencia que se casou tarde.
– Pois antes tarde e bem que cedo e mal, como às vezes se vê!
A escolha do senhor Albino foi tardia mas boa, como o viajante há-de confirmar. E trouxe-lhe cinco filhos, entre eles um varão. Mas o viajante não sabe distinguir se isto é causa de alegria ou de contrariedade, porque todos lhe deram consumições e sobressaltos cabondes. Uma teve problemas de nervos, parece que era fraca do cérebro, foi uma trabalheira. A outra a seguir teve aquele grande susto com uma tia, por causa duns piolhos. A boa mulher aplicou-lhe na cabeça o insecticida que usava no campo. E a doente, se ia resistindo à moléstia, por muito pouco se não finou da cura. Depois veio a do meio, e logo lhe havia de cair uma panela de água quente num pé, foi um mês inteiro a correr para os tratamentos. O varão, ainda criança de escola, partiu um dia um braço. Lá andaram com ele em gessos e bolandas, mas ainda hoje não está bem, que ficou com defeito. À mais novata apareceu-lhe uma coisa ruim no ventre, até parece impossível, de tão nova. Agora já está bem, graças a Deus, só tem que ir aos hospitais de Coimbra uma vez por ano.
O viajante escuta com toda a atenção o rosário das queixas do senhor Albino, há muito que sabe que todos os milagres nascem apenas duma boa palavra. E bem gostava de a conhecer agora, para a poder usar, porque o rol das desditas do seu amigo ainda não terminou. Quando começou a trabalhar no comércio, a sua mais velha precisava dum carro, para se movimentar. O senhor Albino aceitou que não há modos de se viver sem ele, e lá lhe deu mil contos por um. Até ao dia em que sucedeu não sei o quê num cruzamento, e o carro acabou na sucata. O pobre homem teve que comprar outro, e agora não sabe bem o que fazer quando os outros filhos começarem todos a trabalhar, e precisarem também dum carro, para se movimentarem.
O viajante já sabe, por experiência pessoal, que filhos e cadilhos são uma e a mesma coisa, embora nuns casos mais que noutros. Começa a pensar que não lhe bastaria conhecer aqui a senha deste milagre, indispensável e urgente era que fosse um santo milagreiro, dono das senhas todas. Como nem uma conhece, desvia a conversa para o rumo que mais lhe interessa.
– Vai votar, no domingo?

Jorge Carvalheira

Rocinante

O viajante já se prepara para partir, quando entra um fulano atarefado a pedir uma cerveja em altos berros, parece que está zangado com o mundo. A locandeira bem lhe repreende os modos, mas ele continua a falar tão alto que é impossível ouvi-lo. Como se estivesse a falar connosco além do cimo da serra do Galgueiro.
O homem está muito apressado, porque tem que ir abrir uma cova no cemitério duma aldeia vizinha. Para um rapaz de mota, que vinha da casa das brasileiras, às quatro da manhã. E não viria muito mal cuidado, porque, a páginas tantas, os colegas olharam para trás e já o não viram, que já estava todo estrampalhado na valeta, ali à curva da quinta do Forcas. Ficam duas filhitas, uma mulher nova…
O viajante fica impressionado só com o pouco que lhe traduz a dona Blandina, por si não entendeu uma única palavra. O falador tem um ar estranho e visionário, faz lembrar uma figura qualquer, mas o viajante não sabe qual é. E só encontra a resposta quando sai do café, ao dar com um rocinante preso a uma carroça, com duas palhas em cima. O cavalicoque está tão magro que os ossos lhe vão furar a pele. Está tão abatido e cabisbaixo que parece não aguentar o peso da cabeça, e é de temer que se fine ali mesmo. Mas o dom quixote continua lá dentro a beber a sua cerveja, indiferente à sorte do companheiro, a contar as suas histórias inaudíveis, e a barafustar contra os moinhos de vento que há no mundo.

Jorge Carvalheira

O país partido

Portugal teve um estado antes de ser uma nação. Teve um esqueleto, antes de ganhar corpo. E quando começava a ganhá-lo, deslocalizaram-no para a Índia. Desacertou o passo e agora é o que se vê. Um país partido em dois países.
Um ficou com a história, mas perdeu o futuro. Arqueja debaixo dela. O outro é o país do sucesso, alheado do passado, bêbado de ilusões. Um esbraceja para escapar à penúria. O outro agita-se sem destino, como as formigas doidas. Nenhum entende o outro, e ambos mutuamente se desprezam.
O enterro dos dois será no mesmo dia. Até lá, há quem ganhe com isso.

Jorge Carvalheira

Apostas

Não sei bem o que fazer, mas apostas são apostas. E o Maio de 68 ficou-me na lembrança. Passei a tarde inteira a palmilhar a avenida, entre as barracas da feira do livro, à espera dum avião que partia para Angola à meia-noite. De manhã aterrámos no Sal com um motor parado. E a TAP ia trazer de Lisboa uma peça qualquer, um magneto, um pistão. Coisa para durar dias.
A guarnição era exígua e o quartel ainda mais. Um hotel de madeira, que se avistava ao longe, estava fora de questão. Servia as tripulações intercontinentais e era proibitivo. Fez-se do avião um bivaque de campanha.
À cauda uns marinheiros solitários, à frente alguns casais, famílias. Em breve era toda a cabine um porão naufragado, a cheirar a leite azedo, a fraldas de bebé. Bem melhor passei eu na enfermaria, duas noites numa cama articulada.
Havia um quadrado de jardim, ainda o tenho nos olhos. Duas acácias anãs, uns braços de chorão desgarrados ao sol, uns banquitos de pedra. E o luxo dum espelho-de-água, uma terrina da sopa, obra de paisagista. Ao lado o pau da bandeira.
O capitão chegou da nascente da Achada, com umas barricas de água. E trazia num cordel um macaquito, que mandou prender ao poste, numa trela de arame. Eu achei o trabalho uma selvajaria e avisei.
– Um dia o bicho foge, capitão!
Foge não foge, ficou a aposta feita. Um jantar de lagosta.
Há dias passei no Sal. Bem sei que o tempo é fugidio, e as palavras transitórias mais ainda. Mas o macaco fugiu, e apostas são apostas. Agora estou neste impasse. Se eu cobrar a lagosta ao capitão, o que é que vou exigir ao almirante? Um tal que descobriu a Índia, e também perdeu a aposta!

Jorge Carvalheira

Pavlov redivivo

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Alguns dos nossos compadres blogosféricos descobriram uma importante lição de vida nestes dias de guerra no Líbano. Como muitos outros grandes inventos, deve ter começado com uma singela interrogação: se se pode classificar indiscriminadamente os que se opõem aos desmandos de Israel como “anti-semitas”, porque não encontrar um mecanismo similar para atacar quem não pensa como nós, à escala doméstica? Lá andaram a remoer o problema nos seus think thanks (presumo que esta actividade tenha sido regada com muito Chivas, a aquilatar pelos resultados) e acabaram por dar à luz a solução perfeita.
Primeiro, o dispositivo foi experimentado pela sempre vaporosa e inimputável Bomba. Passado o teste de fogo, lá foi a arma entregue às tropas a sério: o Blasfémias e o Insurgente. E de que consta, afinal, esta verdadeira WMD? Simples: se alguém discorda de nós, seja a propósito do bombardeamento a Qana ou do plantel do Benfica, é por certo simpatizante, acólito ou assalariado da asquerosa “extrema-esquerda”.
Genial. E isto nem carece de qualquer cuidado com a realidade: não interessa saber quem é o visado, se é mesmo de esquerda, se é ao menos militante do BE… tudo são minudências a esquecer. Nem importa precisar o que será isso da “extrema-esquerda”: deixada no ar, a acusação implica amor desenfreado por Estaline e analogias de bossas com Pol Pot. Urge é ter sempre engatilhada a resposta demolidora e multiusos: “ai escrevi mal a palava ‘redação’*? Olhe: quem repara nisso só pode ser de extrema-esquerda!”
A Bomba começou por disparar o novo morteiro conceptual na direcção do pobre Alexandre Andrade. Agora, é o insurgente André Azevedo Alves que descreve o Filipe Moura como “um activista de extrema-esquerda que está a estagiar no Público”. Assim mesmo. O Filipe já não é o cientista, doutorado em Física, que foi um dos vencedores da iniciativa “Cientistas na Redacção”. Nada disso: agora, não passa de um mero estagiário de extrema-esquerda.
Na peugada do chefe de fila, segue lesto o blasfemo João Miranda, com graçolas secas sobre uma tal “economia anacleta” (presumo que seja referência ao nome de Francisco Louçã, por acaso economista com obras de alguma circulação internacional), sempre a propósito do Filipe. Ora, este poderá ter muitos defeitos; mas não consigo imaginar que a adesão à tal “extrema-esquerda” seja um deles, sobretudo tendo em vista o seu frenético apoio à infausta candidatura do Dr. Mário Soares.
Quanto ao caso do Alexandre Andrade e da Bomba, nem comento o disparate que é lançar acusações difusas e inexplicadas sobre quem não se conhece nem entende.

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O “pequeno Satã” terá mais olhos que barriga?

É interessante, embora preocupante, ver como até vozes da esquerda israelita, como a de Yoel Marcus, parecem apostar num sprint final rumo à barbárie antes que surja mesmo um cessar-fogo. Ele partilha algumas preocupações que já circulam pelo mundo; mas prefere ignorar as questões mais difíceis e encerrar o texto em tom feroz: “a realidade é que precisamos de suster a respiração e atacar o Hezbollah com tudo o que temos, por terra e por ar, até o neutralizarmos enquanto força militar perto das nossas fronteiras. É importante ganhar ascendente até à hora do cessar-fogo. Temos de lhes mostrar que o ‘pequeno satã’ tem grandes dentes.”
Não sei bem se será possível, hoje, aniquilar um Hezbollah surpreendentemente forte e bem equipado. Mas sei que esta análise tem pelo menos uma pecha óbvia: continua a encarar movimentos como o Hezbollah como uma simples “força pró-iraniana”, um “braço operacional” neutralizável de forma clássica. Ignorando que o Islão mais radical não é um mero títere deste ou daquele governo da região: em última análise, almeja substituir-se a todos eles.

Santa incompetência

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A Reuters não voltará a usar trabalhos do fotógrafo Adnan Hajj, que manipulou uma imagem de um bombardeamento a Beirute. Parece-me mal. O homem devia ter sido despedido não por quebra da ética jornalística mas sim por usar de forma tão pavorosa e óbvia a ferramenta “Rubber Stamp” do Photoshop. Que é aquela espécie de caracóis a ornamentar as nuvens de fumo, meu Deus?
O escândalo rebentou mesmo a tempo de impedir que muitos jornais usassem uma outra fotografia adulterada, esta de forma quase imperceptível…

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Asneiras

Sei que é demais pedir a Luís Delgado alguma ponderação nas suas opiniões ou sequer que se dê ao trabalho de ler umas páginas antes de escrever coisas como “pela primeira vez na História, um grupo de radicais afronta, diariamente, o mais poderoso e organizado exército do Médio Oriente”, esquecendo a invasão de 1982.
Mas, ao menos, bem que podia deixar de usar os termos “míssil” e “rocket” como se fossem sinónimos. Não são.

No more mr. Nice Guy

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Depois de semanas de lindas garantias de que o alvo não era o Líbano nem as suas gentes, o exército israelita já fez saber que as infra-estruturas civis daquele país vão agora ser atacadas sem dó nem piedade.
Para quê? Boa pergunta; sobretudo para o israelita Uzi Benziman que encontra paralelos entre a situação presente e o final da Guerra do Yom Kippur, quando o Tsahal ignorou o cessar-fogo aceite por Israel e prolongou uma ofensiva contra o 3.º Exército egípcio. Também então se jogou tudo por tudo numa intensificação final da ofensiva, para que a situação congelada pelo cessar-fogo fosse o mais favorável possível. Para nada, afinal.
Hoje, andam no ar algumas perguntas difíceis: e se Israel não alcança nada de palpável, mesmo depois de causar danos tremendos a toda a nação libanesa? E se o Hezbollah consegue chegar ao fim deste conflito sem sofrer uma derrota clara, mantendo a capacidade de alvejar Israel de dentro do Líbano? Numa zona do mundo onde enfrentar Israel é a melhor prova de coragem cívica que alguém pode ter no currículo, imaginam a popularidade que estes fanáticos xiitas irão conquistar? Sobretudo depois de um ataque em larga escala, patentemente injustificado, contra o Líbano?

Violência

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Estranho. Ver como, mesmo na vida mais organizada e ronceira, a violência pode irromper a qualquer momento. Falo da violência física, aquele assunto de punhos esfolados e testas sangrentas, de gestos brutos, inopinados, vindos sabe-se lá de onde. É estranho ver como uma coisa tão feia pode ter um efeito tão revigorante, tão luminoso e redentor. Sabermos que, quando é mesmo preciso, conseguimos atirar-nos para o centro da fogueira, mergulhando de cabeça no caos que mais tememos, nas chamas que sempre evitámos. Estranhos caminhos que seguimos para nos reconciliarmos com o mundo. E connosco.

(Re)Criatividade alada

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Todos já ouvimos falar na polémica em torno do anúncio do Ministério da Administração Interna e da Galp, onde é traçado um paralelismo entre as crianças mortas nas nossas estradas e a queda de um simbólico avião carregado de petizes. A TAP reclama, António Costa mantém-se firme, etc.
Falta o melhor.
Graças a um comentário neste blogue, cheguei ao site da World Swim For Malaria, onde jaz um irmão gémeo da mais recente obra-prima da publicidade lusa. Ele há coincidências assombrosas.

Os escudos invisíveis

Surpreendentemente, as Forças Armadas israelitas concluíram pela sua inocência no bombardeamento de Qana. A culpa terá sido do Hezbollah, que usou os residentes do prédio demolido como escudos humanos. E claro que os militares ignoravam a presença de civis ali; caso contrário nunca teriam lançado aquele ataque.
Só não percebo bem qual será o propósito de usar “escudos humanos” sem que o inimigo saiba que eles lá estão. Parece-me coisa pouco eficiente.
Isto além de se saber que as vítimas já estavam naquele prédio havia mais de duas semanas, algo que não deve ter passado despercebido aos omniscientes voos de reconhecimento israelitas. Mas enfim; por este andar, ainda vamos ter o Hezbollah a querer convencer-nos de que nem desconfiava que Haifa estava habitada.

Mais duas vítimas da guerra: a memória e o juízo

Eduardo Pitta dá um novo passo na escalada rumo ao desvario total: “o ataque de anteontem matou 54. Mais de metade eram crianças. Quando bombistas suicidas se fazem explodir em autocarros nas cidades de Israel não vejo ninguém preocupado com a curva etária dos passageiros estraçalhados. Por que será?”
A memória e o DN garantem-nos que isto, pura e simplesmente é mentira. Por cá e por essa celerada Europa afora. Mas a realidade nunca interessou muito aos fanáticos, pois não?

PS: de acordo com as estatísticas do B’Tselem, talvez exista uma razão para as vítimas israelitas menores de idade terem menos destaque na imprensa do que as palestinianas: as primeiras foram, de 29/9/2000 a 15/7/2006, 119; as segundas 725. Mas, nos dias que correm, falar de “proporcionalidade” também é sinal de anti-semitismo, eu sei.