Benditos corn-flakes espalhados pelo chão. Filho, estou muito contente contigo. Vejo que todos os dias encontras um pretexto para te treinares com a pá e a vassoura.
susana
Willie was very fond of his mother when he was little. He prayed to God and said: «Please God I want to love my mother with my whole heart and soul. And I want everything to be like it is now.»
And God answered: «Okay, Willie.»
Then Willie met this beautiful woman.
«As a matter of fact I want you to change that, I want you to make it that I love my wife.»
«Okay, Willie.»
And Willie had a son.
And he says: «I want that changed.»
And God said to the angels: «Take care of Willie.»
And the angels said: «What are we going to do with these human beings they all want the same thing and want it changed?»
And God says: «Arrange it that way. Everything stays the same and everything changes. What is in the world is really opposites.»
Agnes Martin, «Willie Stories», em Writings, Hatje Cantz, Ostfildern-Ruit, 2005
Agnes Martin, Untitled, 1978
Aguarela e tinta da china colorida sobre papel, 22,9 x 22,9 cm
susana
Ainda trazia no braço direito o baixo-relevo de um vinco do lençol amachucado, quando chegou. «Ola beibi», dizia o matutino sms. O tratamento carinhoso vindo de um perfeito desconhecido é quase tão comovente como o que vem de um desconhecido perfeito. Intrigada com o número, que não consta dos meus contactos, devolvo um «quem é?» e recebo esclarecimento. Alguém a quem chamo amiúde, explica, reclamando por não identificar o seu número. Mais: alguém com quem estive intimamente ainda há pouco e cujo nome sou desafiada a adivinhar. Pouco depois ligou-me – e eu numa reunião, oh sorte. Tremo agora de curiosidade, ansiosa. Quero, e não quero, saber. Mistério da empatia. Alguém me conhece tão bem que recorda experiências minhas, recentes, das quais não conservo memória.
susana
Esta noite o céu partiu-se todo só para nos celebrar, meu amor. Os fragmentos quebravam-se em perfis angulosos, o teu rosto iluminava-se e os pedaços caíam num estrondo logo abafado. O som dos pneus sobre a água aproxima-se do restolhar das folhas de outono debaixo dos pés, por caminhos pouco pisados, em versão fast-forward. Estrelas diluídas atravessam a persiana mal fechada e dançam pelas paredes. Ouço contigo o tec-tec da chuva nas janelas, agora sim, agora não.
susana
* Re-post, porque o amor tem o espaço polissémico de tempo e a vida é como as estações.
Publicado na Sociedade Anónima em Outubro 2006
Chegada a uma idade avançada deixou de ser adiável passar pela provação de uma mamografia. Neste exame radiográfico as mamas são apertadas em duas secções por um aparelho que apresenta semelhanças com uma tostadeira. Se fossem os homens a ter que prensar os seus tecidos moles para avaliações regulares do estado de saúde, cheira-me que há muito se teria inventado outro processo.
Quando era nova dizia-se que a firmeza de um busto se aferia segundo a impossibilidade de segurar um lápis pela prega inferior da mama. Depois do primeiro filho segurava uma esferográfica. Ao segundo, um marcador. Experimentado mais um item da parafernália criada para suplício das mulheres, estou certa de conseguir agora uma façanha notável: suspender um estojo inteiro.
susana
O texto do Fernando foi profícuo em sugestões. Ligando-o com a especular especulação de um anónimo nada gratuito, veio-me ao neurónio a fertilidade dos acontecimentos no campo das hipóteses para a sua interpretação. Sujeitam-se a descrições distintas, muitas vezes antagónicas, entre os intervenientes que neles participam, motivo do comentário que lá deixei.
Há cinco anos um dos meus livros de praia foi Atonement, de Ian McEwan. Neste romance a narrativa é construída em torno de um episódio. Envolvendo três personagens centrais, o episódio é em si banal, retrato de atracções primárias e relações narcísicas. São as leituras diversas, de estrito sentido e avaliadas por cada um como factos, a conduzir os passos seguintes. Na conjugação com as circunstâncias e paradigmas individuais, factores exógenos da trama, é a distância de leituras a medida de entropia nas vidas destas três vítimas.
Trivial, sabemos nós. É da interpretação pessoal e criativa que se produz arte e muita literatura. Também as intrigas, os boatos, derivam por vezes de equívocos semelhantes, quando não da pura mentira. E os romances vingam enquanto duas ilusões se confundirem mutuamente.
Já o amor, nas múltiplas vertentes, tem forçosamente que ser relacional. Com os pais, os filhos, os amigos e os amantes queremos partilha, visões comuns, memórias coincidentes ou próximas. Não chegamos lá pela experimentação; atirar ao ar suposições é lançar achas para a fogueira. Só o inquérito a partir do outro pode resgatar a comunicação, a sintonia. Mesmo assim, a aliança entre a nossa atenção e a vontade pode ser insuficiente. O outro é sempre um outro, que nos escapa. Fatal impossibilidade de compreendermos em plenitude o que está em nós, permanecendo todavia inteiro e autónomo.
susana
As copas dos choupos estacaram a escutar o fim do dia. Acima do rubor no horizonte ha’ nuvens. Duas vogam em sentidos opostos, misterios do vento, viração. Uma e’ compacta, robusta. A outra fragil, longilinea. Ambas de chumbo e de cobre.
Mudam, torcem-se, no caminho. O encontro na retina de quem olha. Entram uma na outra, desfazem-se. Transformam-se e prosseguem, desdobradas, para nascente. Decompostas, seguem as rosas na frente, arrastando o peso plumbeo sem esforço. Vão leves.
susana
Porque o futebol e’ uma cultura de massas (ganha-se muita), Moutinho nao vai do estadio para a sucata. Nada se perde e tudo se transforma: sera’ desmontado e vendido ‘a peça.
Isto nao contextualiza o titulo, bem sei. Precisava, contudo, de assinalar a bondade do rapaz. E’ optimo – sobretudo de costas.
susana
Dê-os, Leda
Dê selado:
sela dedo
– dedo lesa.
Dele doas
Sado dele.
Dás de elo
dose dela.
És do dela,
soda dele.
Refrão
Desde olá
Sade de ló
Sede do lá
De sal e dó
(repeat)
Ode de sal
a do deles.
É de solda
e de saldo.
Ode delas
Dê de loas
(deles doa).
Sele dado.
Se de lado
dê de sola.
Refrão
susana
*Anagramas, acentos e pontuação patrocinados por Swimmer’s Digest e sanitários Roca
Tive um coração de batata, palpitante de possibilidades. Cheio e róseo.
De volta à cozinha abandonada descubro o coração mirrado, encarquilhado. Nem foi capaz de grelar, de lançar raízes. No cesto, um trio de limões, sem sumo nem cheiro, reunia amarelos diversos por fios alvos de bolor.
O meu coração repousa agora num fundo amarelo e fofo. Bem fundo. Chorei bastante, mas foi da constipação. Daquelas estúpidas, de Verão. Sempre se mantém a coerência.
susana
Décadas depois de os olhos orientais investirem na cirurgia estética e encomendarem incisões que os tornassem redondos, cabe ao Irão o florescimento do negócio, em busca da imagem de Hollywood. Por razões de indumentária nas mulheres, a mudança é procurada nas partes visíveis, das quais o nariz recolhe a preferência. Narizes mais pequenos, finos e arrebitados são a grande ambição, dizendo-se que o nariz iraniano tende a ser grande e adunco.
Escassas vozes se levantam, proclamando ser esta busca de padrões ideais de beleza uma contaminação da cultura ocidental, obcecada com a imagem. As autoridades religiosas não se pronunciaram, e o cirurgião com maior fila de espera defende que Alá há-de aprovar a acção em benefício da beleza. A moda tanto pegou, que um nariz coberto de adesivos se tornou um adereço fashion. Há até raparigas a cobrir o nariz com um penso sem terem feito a operação, que custa cerca de mil e quinhentos dólares. E, assim, vão para a escola mais bonitas.
De um nariz proeminente e aquilino dizia-se um nariz com raça. Sem miscigenação, faz-se o nivelamento dos rostos.
susana