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Ainda não têm nome, mas já te podes filiar

É uma das frases de Chandler mais citadas:

Chess is as elaborate a waste of human intelligence as you can find outside an advertising agency.

Por experiência pessoal, de jogador de xadrez e animal de agência, posso confirmar a exactidão do apontamento. Todavia, tivéssemos o Raymond connosco e já teria adaptado a boquinha à blogosfera. Porque aqui o desperdício de inteligência é ainda mais torrencial, incomensurável e necessariamente catastrófico. Mas o caos é apenas um estado de organização; e particularmente fértil, como se deixou escrito faz tempo. Talvez desta reunião de intelectos e vontades nasça finalmente um movimento cuja ausência está a deixar os sociólogos impacientes: um partido político com inspiradores, dirigentes e base de apoio provenientes inicialmente das redes sociais da Internet.

Daí, estas ideias quentes e boas para a renovação da classe política:

Partido sem ideologia – Estado de permanente abertura à inteligência, sem qualquer pressuposto teórico, histórico ou axiológico. As propostas dos partidos concorrentes seriam copiadas à má-fila, no todo ou na parte, à esquerda e à direita, caso tivessem os mínimos, idealmente os máximos, de proveito.

Partido com maioria de mulheres – Adequação metodológica, nos instrumentos de decisão, à psicologia feminina; esta muito mais colaborativa, horizontal. Sendo o primeiro partido preparado para o feminino, teria crescimento fulminante nesse grupo demográfico. As mulheres são mais capazes do que os homens quando se trata de gerir, proteger, reforçar.

Partido da ontologia extremista – Culto do tempo vivido e por viver, da profundidade e da amplitude, da sabedoria e da brincadeira. O programa político teria como única meta levar os nossos velhos a passar tempo com as nossas crianças. Fosse nas famílias, escolas ou ruas. Todos os dias celebrando juntos o espanto de ser.

Partido que estaria sempre na oposição à estupidez – Fazer oposição ao Governo só porque não se faz parte do Governo é uma das mais espectaculares exibições de estupidez. Quem não está no Governo deveria honrar o seu compromisso patriótico ajudando quem governa, sugerindo melhores alternativas, aplaudindo a boa obra. Este partido, mesmo que fosse Governo, ou especialmente se o fosse, continuaria a ser o maior partido desta oposição por inventar.

Partido com castigos atrozes para os cínicos – Os cínicos são a pior espécie de imbecis, devendo ser perseguidos, sovados e sumariamente expulsos desta organização. À porta dos locais onde se reunissem elementos do partido, haveria aparelhos detectores de cinismo, os quais fariam muito barulho e acenderiam luzes no caso de apanharem algum rasto de cinismo escondido nos neurónios dos participantes.

Partido cuja liderança fosse alcançada através de provas de pentatlo cívico – Os candidatos seriam aconselhados a irem para o congresso com fato de treino e sapatilhas confortáveis. Provariam o seu valor em cinco provas:

– Discurso de improviso.
– Danças de salão.
– Venda de atoalhados aos congressistas.
– Explicação da Teoria da Relatividade e definição do Bóson de Higgs.
– Confecção de sopa de legumes.

A escolha seria por aclamação. Eventuais casos de empate seriam resolvidos por sucessivas provas de confecção de sopa de legumes, sempre diferentes. Em caso de urgência, moeda ao ar.

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Sim, podes inscrever-te já.

Entre homem e mulher, mete garfo, faca e colher

Portugal, país de cobardes, não se enoja com a violência doméstica, talvez até esteja a tomar-lhe um renovado gosto: em 2007, os casos declarados subiram mais de 6% – do total dos casos, a maior incidência estando nas zonas urbanas, Lisboa à frente. Um aspecto crucial do fenómeno é o de ser transversal à sociedade, mesmo que haja factores de risco a remeter para diferenças de educação, valores e condição social. A transversalidade institui a violência doméstica como característica de identificação de género, gerando cumplicidades psicossociais que oprimem ainda mais as vítimas. A cultura de promoção da pornografia e da sexualidade irresponsável também reforça o potencial disfuncional das carências e deformações afectivas na origem dos comportamentos violentos, possível explicação para o crescimento a par da violência doméstica com os casos de assédio sexual no local de trabalho. Temos assistido, igualmente, à legitimação da prostituição como recurso legítimo e amoral, até complementar de relações estáveis e igualmente satisfatórias no acesso à actividade sexual. A prostituição como moda teve o seu momento de glória com os rumores, ou denúncias, relativos a Cristiano Ronaldo e suas animadas festas em hotéis ingleses; um rapazinho que, diríamos, não teria qualquer dificuldade em arranjar uma namoradinha descomplexada e descomplicada. O circuito da prostituição é ancestral, mas agora tem a sua promoção na cultura popular, gerando padrões de comportamento nos homens que validam a sua impulsividade e procura da gratificação instantânea a uma escala nunca antes vista. Por sua vez, este reforço do instinto animal e da psicologia primária é contrário às exigências cognitivas, afectivas, intelectuais e volitivas que se requerem numa relação monogâmica e civilizacional. Finalmente, a tentação de reduzir as mulheres à sua dimensão de fêmeas – anulando-as como cidadãs e pessoas, os únicos planos onde a igualdade é plenamente realizada – leva a que os seus óvulos sejam tratados como subproduto, até empecilho, da sua função como instrumentos sexuais e força de trabalho escravo ou explorado. Os defensores do aborto livre, e todos os que persistem em considerar que a educação sexual se resume à distribuição de preservativos e pílulas a crianças a partir dos 14 anos, são os algozes desta desumanização.

Precisamos de inteligência, precisamos do que se está a praticar na instituição House of Ruth, a qual desenvolveu o Gateway Project. Constata-se que os casos de violência doméstica implicam as duas partes, havendo ciclos de violência mútua em que as mulheres agridem os parceiros. As agressões podem ser físicas, mas a maior parte das vezes são verbais e emocionais, suscitando episódios sucessivos e escalados de mútua violência. O novo enfoque está em reconhecer que os violentadores também são violentados, e, a partir desta realidade bem mais interdependente, disponibilizar programas capazes tanto de tratar os agressores, como de ver os agredidos como vítimas também responsáveis pela situação que vivem.

Não precisamos de mais preconceitos e ideologia, de mais aproveitamentos da miséria para repetir alucinações políticas de que se desconhece a origem ou consequências. Precisamos é de mais ciência e de alguma, mínima que seja, coragem. Quando o amor é louco, não devemos continuar a fazer tão pouco.

Educação sexual? Concerteza!

Visitando o PCP digital, constatei que os comunistas portugueses não tem qualquer posição política quanto à sexualidade. Porém, buscas por sexo e sexualidade trazem um sortido de discursos avulsos e desconexos. Num deles, Luísa Mesquita sugere que a educação sexual nas escolas é uma matéria que se deve centrar na arte de bem colocar todo o preservativo, assim como na generosa distribuição à juventude de tão urgente artefacto. Não achei digna de censura essa ideia, a qual tem méritos inquestionáveis. O que me escandalizou foi o concerteza com que a Luísa achou por bem medalhar o seu texto, e que nenhum camarada terá ainda tido tempo de corrigir. A suspeita agora cobre como uma película protectora a minha adesão às ideias do PCP: estarão eles, mesmo, com a certeza certezinha de que a educação sexual que as famílias portuguesas desejam nas escolas públicas deve ter como principal objectivo a destreza manual, ou bocal, na colocação do preservativo?

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Politicopsicose

Politicopsicose não era termo que o Google conhecesse, logo, não existia no Universo conhecido; e até um pouco mais além. Faz falta? Nenhuma. Mas dá jeito quando se vai botar faladura sobre este manifesto de gravíssima perturbação mental.

É muito difícil escolher a passagem mais hilariante, registo só comparável ao que se escreveu na imprensa inglesa antes da primeira viagem de comboio, mas vou arriscar:


O que é que estará naquele ecrã? Não deve ser nada de interessante visto que nem as crianças que não levantam o braço, olham para lá.

O Pacheco está a precisar de tirar umas longas férias. A sua sócratesmania queimou-lhe os fusíveis todos.

Nos extremos é tudo mais simples

Um dos aspectos mais interessantes dos debates entre McCain e Obama está na interpretação do acontecimento feita pelos profissionais da opinião. No caso da CNN, onde os tenho visto, constata-se que os comentadores do lado Republicano são os mais pobres na argumentação, o que pode resultar tanto da fraqueza do candidato como da cultura política dos Republicanos. De facto, a caricatura usual de um Democrata, no imaginário americano, é o de um intelectual, enquanto um Republicano aparece como um jogador de futebol norte-americano ou militar. Tendo em conta que, para um europeu, até os Democratas serão de direita, ou centro-direita, isso colocará os Republicanos na extrema-direita. Os extremos são sempre mais redutores, pois seguem uma lógica de exclusão, enquanto o centro é inclusivo, seguindo uma lógica de negociação.

Já como epifenómeno, temos o caso do Ricardo Lourenço, jornalista do Expresso, o qual assinou um incrível disparate, e agora regressa com mais um arroubo. Escreve:

Deu para vencer o debate por curta margem. McCain apostou na forma mas também na substância. Explicou como governará com menos Estado e, claro está, menos impostos e aprimorou a proposta (adiantada no segundo debate, há uma semana) de renegociar os créditos à habitação de milhões de famílias necessitadas. Tudo em forma compactada, numa primeira meia hora de arraso.

Factos: é opinião unânime em toda a imprensa, nacional e internacional, que Obama ganhou, e os dados das sondagens revelam que ele teve neste os melhores índices de sempre dos 3 debates. Mas para o Ricardo Lourenço, não. Porque ele arrasa, até as evidências.

Pessoal do marketing: stop

A indústria da comunicação é igual em todo o Mundo e desde sempre. Em Portugal, dada a ausência de uma cultura competitiva e criadora de riqueza, ela tem sido uma das áreas mais profissionais e produtivas. Trabalha-se em alta velocidade, fora de horas, em dias de descanso e em ambientes disfuncionais. A seguir à falta de capacidade de gestão por parte da maioria dos patrões de agência, que não sabem como gerir e aproveitar o talento intelectual, o maior problema é o dos clientes. Os profissionais das equipas de marketing procuram sistematicamente boicotar o trabalho das agências, anulando o seu capital de experiência e capacidade criadora. Há excepções, mas o mais frequente é aquilo que este filme revela.

A tragédia de uma equipa de flores

No empate com a Albânia, ganhou o demónio. O rosto de Carlos Queiroz, na segunda parte da segunda parte, vendo o azar a encher o campo, era o de um autêntico possuído – ou encavado, é escolher que o coitado não está em condições de se importar. Depois do jogo nem apareceu para as declarações da praxe à TV, nem ninguém por ele, um técnico ou anjo. Também não apareceu jogador. Apareceu o demónio, sempre pronto a ocupar os espaços donde a palavra está ausente.

Futebol é sorte. Mas que é a sorte? É a matemática. Se uma equipa está com pouca sorte pode ainda ganhar, tem é de superar o azar. Se o azar corresponder a 90%, 9 em cada dez oportunidades de golo vão ser falhadas. Logo na oportunidade seguinte, a bola entra, e seja lá como for. Calhando entrar por cabriola nunca antes vista e que desafie as leis da física e a vocação dos guarda-redes, isso será apenas o espectacular efeito de simples aritmética. Se a equipa apenas dispuser de 9 oportunidades, ou menos, irá no máximo empatar. O problema é o de não se poder saber à partida qual seja o total de oportunidades, porque esse conhecimento anularia a própria sorte. Como se criam as oportunidades de golo? Eis a pergunta sacramental. Que não espante a resposta: sendo receptivos à graça. Isto é, jogando à bola porque é engraçado, não porque seja obrigatório ganhar. Falhar obrigações é assunto sério, mete medo, gera violência, anula a criatividade. Para aceder a todas as possibilidades da consciência, é preciso agir não agindo, como ensinam os taoístas (pelo menos, enquanto a bola não chega aos pés, porque depois toca é a agir com imediata rapidez e intenção, e que se confucem os taoístas).

Carlos Queiroz tem azar. Teve azar na Selecção, no Sporting, na África do Sul, no Real Madrid e de novo na Selecção. É o preço a pagar pelo sucesso inicial que o levou a convencer-se de que o futebol não precisava da sorte, apenas de um caderno de notas. Neste momento, a Senhora de Caravaggio está a rir-se de braço dado com o demónio de Queiroz. Se é para termos uma equipa de flores, os narcisos que hoje se cansaram para nada devem ser substituídos pelos lírios que não trabalham, nem fiam; mas têm sorte.

Larguem o vinho

Quem utilizar o Multibanco, nem que seja para verificar o dinheiro que não tem, depara-se com esta frase publicitária:

É uma casa portuguesa, concerteza.

O espírito do Acordo Ortográfico é o de aproximar a escrita da oralidade, livrando a Língua dos inestéticos e trabalhosos sinais da sua história, mesmo que para isso arrisque dar cabo da semântica e da sintaxe. Nesse sentido, o neologismo concerteza deveria ser aceite. Ele é usado por um número crescente de personalidades, algumas delas insignes figuras públicas. O mesmo fenómeno ocorre com o também publicitariamente famoso benvindo, o qual pede aprovação institucional. E por aí fora, dando-se carta de alforria ao povo que não está para canseiras. Aliás, que se espera para começar a grafar outras variantes, como as tão úteis sencerteza, concertezapoucochinha, tácertoentão, acertaláissoópá, maisdoiseuroseficacerto, eugostomaisédopreçocertoporqueogordodofernandomendesédemijararir?

Nota: a campanha do Multibanco promove a Adega Cooperativa de Pegões.

Afinal, o Galamba é que tem razão

Tudo começou com estas três frases:

Desaconselhando a utilização do preservativo o Papa é cúmplice da disseminação da SIDA.
Desaconselhando a utilização do preservativo, o Papa é tamém responsável pelo aumento do recurso ao aborto.
Mas como também é contra o aborto, quando desanconselha a utilização do preservativo, o Papa contribui para o aumento dos agreagados familiares das pessoas mais pobres, sobretudo em países onde a explosão demográfica é um dos factores que mais contribui para a fome e para a miséria.

Se o Daniel Oliveira não as tivesse escrito, aposto que ninguém se lembraria de comentar o Congresso Internacional Humanae Vitae: Actualidade e Profecia de uma Encíclica, acontecimento absolutamente ao arrepio das preocupações correntes. Sem surpresa, repetiram-se depois em cascata as mesmas acusações infames. São ideias partilhadas por muitos; com e sem instrução, com e sem fé, com e sem ideologia, com e sem ressentimento. E são ideias que exigem responsabilização. Porque se o Papa e a Igreja estão a ser cúmplices da disseminação da SIDA, ele e os que representam a Igreja têm de ser presos, denunciados ou, seja lá como for, impedidos de continuar nesse crime. Isto é óbvio; e, por maioria de razão, ainda o será mais para os que fazem a acusação. Mas óbvio será também que, entre as palavras de acusação e o Papa, há muita gente pelo caminho. Cúmplices da disseminação da SIDA serão todos os católicos, tem de se concluir se concluirmos pela legitimidade da acusação.

A minha prima que dá catequese, canta nos casamentos, organiza quermesses e vai para retiros, é cúmplice da disseminação da SIDA. Frei Bento Domingos é ainda mais cúmplice do que a minha prima, porque tem maior responsabilidade, até escreve num jornal e aparece na TV. Os católicos que estão em todo o Mundo a cuidar, tratar e educar os doentes de SIDA, e respectivas famílias e populações locais, são ainda mais cúmplices do que o Frei Bento, porque esses lidam directamente com as vítimas. É exactamente isto que está a ser dito, e isto é demasiado grave para passar em silêncio, como se fosse um disparate sem importância. Por ironia blogosférica, o João Galamba, um dos que alinhou no arrastão da inteligência, fez uma reflexão que antecipa a minha explicação para o fenómeno da imbecilidade ser frequente quando se discute a religião católica. Ele elabora sobre uma maleita relativa à ciência económica, mas a mesma terapia é extensível ao debate público na sua universalidade se o quisermos fonte de cidadania.

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Ver a distância

Chama-se Sensitive Skin e é uma criação de Hugo Blick, que assume a sua escrita e realização. Em Portugal tem o nome À flor da pele, e passa na RTP 2 em horários calculados para obter o menor número de espectadores que for possível. Não há qualquer dúvida quanto à intenção do programador, como poderás comprovar se tentares ver um dos episódios. O melhor é comprar a caixa dos DVD, ou, ainda mais barato, pedi-la emprestada a um amigo e não a devolver.

Há alguma coisa que misturam na água canalizada da Grã-Bretanha que leva ao aparecimento de génios televisivos para a comédia. Eles já nos ofereceram os Monty Python, The Singing Detective e The Office, para só referir três casos à prova de dissidência opinativa. E depois de os ver, ficamos a babar com a surpresa de o pequeno ecrã ser maior do que o tédio, o desespero e o cinismo, juntos. E depois ficamos orgulhosos por sermos europeus. E depois ficamos a sonhar com a possibilidade de imitar estes cabrões destes britânicos que fazem televisão genial. E depois desistimos, altura em ficamos à espera que os cabrões reinventem outra vez a comédia. Informação útil: voltaram a fazê-lo em 2005.

Em Portugal estão a passar os primeiros episódios. Mostram o quotidiano de um casal de cinquentenários ou sexagenários, ou alguma coisa pelo meio. Têm um filho trintão e neurótico, são cultos, endinheirados e trabalham em funções intelectualmente sofisticadas e narcísicas. Serão felizes? Claro que não, a felicidade nem sequer é narrável. Mas também não são infelizes, e este é o golpe de génio. O caminho do meio, que é o de todos nós se tivermos sorte, é o da natureza humana. Estas personagens de 60 anos estão mais humanas do que nunca. Elas sabem que a felicidade é apenas uma miragem no deserto do desejo, têm a obrigação de o saber pela sua experiência de vida, conforto material e decadência física. E igualmente sabem que a infelicidade é somente o pesadelo dos que passam pela vida a dormir. Neste último ponto, as nossas personagens têm de agradecer ao brilhante Hugo Blick.

A comédia é o género mais difícil, e um dos mais violentos; tanto para os autores, como para o público. A comédia vulgar, que é quase toda, explora mecanismos de agressão, tenha esta como alvo terceiros ou o próprio comediante. Em Sensitive Skin, o efeito cómico obtém-se através da exclusão de todos os efeitos de comicidade, ficando a realidade no seu esplendor. É que a realidade não é má, não é triste, não é cínica. A realidade apenas é. Por isso, o primeiro impacto no espectador será o da estranheza, andando ali um bocado à nora à procura dos sinais de trânsito que o orientem para o género em causa. Devagarinho, então, o trabalho do texto e dos actores começa a puxar-nos e não nos deixa partir. Algo se passa com aquela gente que é profundamente nosso. A realização aproveita a surpresa e prega-nos partidas terríveis, enternece-nos, comove. Os espaços e os silêncios, os rostos e as palavras, não estão a representar, estão a apresentar-se. Num repente, somos projectados pela superfície onde nos estávamos a afundar, trampolim interior. E ficamos a pairar no ar, banzos, por uns instantes livres da força da gravidade. Claro, livres da gravidade, a vida só dá vontade de rir e de abraçar.

Desce e desce ou O Mistério da Rua Viriato, 13

A secção Sobe e desce do Público nunca terá lá chapadas as carantonhas de José Manuel Fernandes e Joaquim Vieira, pelo menos enquanto estes mantiverem a sua ligação ao jornal. Temos de calçar as galochas e chafurdar no submundo para ler uma bem sentida peça onde os animais são chamados pelo nome. Agora que Vieira escreveu sobre o desenlace, Fernanda Câncio volta à carga.

Este episódio cruzou-se, nestas semanas, com o meu propósito de reflectir a respeito da direcção do Público. E tinha uma solução na manga, precisamente o Joaquim Vieira. Acompanhando o seu trabalho de Provedor do Leitor, desenhava-se, no rigor e frontalidade com que apontava e corrigia os erros, o perfil ideal para substituir o Zé Manel. É que o Zé Manel tem de ser substituído, mesmo que nunca o venha a ser e lá fique mais mil anos e alguns meses. Tem de ser substituído porque é um fraquíssimo director de imprensa, porque é um sofrível articulista, porque é um medíocre investigador, porque é um inane pensador, porque nem nos seus jornalistas tem mão, como se comprova semana a semana lendo qualquer uma das crónicas dos Provedores, e porque utiliza um jornal – cujo capital de excelência e independência não foi ele a criar, antes a desbaratar – para se envolver em ataques fulanizados a alvos da sua antipatia. O caso da perseguição a Sócrates e António Costa conheceu o momento mais alto quando este último disse no Rádio Clube, em Fevereiro deste ano, o que se repetia por todo o lado. Este é o ponto mais alto do conflito pois é aquele a partir do qual se começou a notar uma mudança, abrandamento ou estratégia de baixa intensidade, na linha sensacionalista que o Público tinha exemplarmente desenvolvido com os casos da licenciatura e das casas; e depois continuado como linha editorial em registo de campanha contra o Governo. Mas é também o ponto mais alto porque é aquele que não admite recuo. Recuar – quando se está perante uma acusação clara e inequivocamente expressa pelo braço-direito de Sócrates, ex-ministro do Governo, segunda figura do PS e presidente da mais importante Câmara do País– é perder. E perder naquele nível, dado o figurino dos adversários, é comprometer irrevogavelmente a credibilidade. Portanto, sim, eu estava a aquecer a possibilidade de ser o Joaquim Vieira a solução perfeita para ocupar um lugar actualmente vago de carácter.

Só que a Fernanda Câncio veio destapar a ferida, e mostrou como está profundamente infectada, a precisar de outro remédio. De facto, se do Zé Manel qualquer comportamento hipócrita é de esperar, do Vieira esperava-se neste momento uma posição inquestionável e reparadora. E nem está em causa o erro gravíssimo e espantoso de ter alinhado numa versão falsa que ofendia viperinamente a honra e responsabilidade política e civil de outrem (enfim, creio que em Portugal a chantagem ainda é crime, e com punição correspondente ao grau e tipologia de poder do criminoso). O que está aqui em causa, mais uma vez, é o carácter. Convém dar máxima atenção à passagem da carta de Sócrates onde se pode ler que não foi ele a telefonar para o Zé Manel, antes este a tentar insistentemente chegar à fala com o presumível mafioso, o tirano que vem amordaçando a comunicação social livre em Portugal, mas com quem tinha urgência em ir almoçar. Creio que Sócrates não se daria ao trabalho e despudor de relatar com tanto detalhe este aspecto – dando ainda azo a desmentidos de várias testemunhas se não for relato verdadeiro – se ele não estivesse íntima e directamente ligado com o contexto do pretexto para o subtexto invocado na castiça hermenêutica inscrita nas declarações gravadas, afinal, apenas na memória de uns quantos homens de, finalmente, fraca e revolta lembradura. Isto, como escreveu Sócrates, configura um caso de cobardia. E tenho cá para mim que, quando nos acusam de cobardia, há que fazer alguma coisa. O que Joaquim Vieira faz na edição de hoje do Público – ou seja, o que ele não faz – só vem adensar o mistério da Rua Viriato, 13.

A inacção do pensamento

O João Galamba brinda os seus leitores com uma regular didascália de matérias filosóficas. O que perde em popularidade, pois são muito poucos os que o acompanham nas referências, ganha em originalidade. Numa situação em que o próprio ensino da filosofia está ameaçado no Secundário (conversa que já vem dos anos 80, contudo), e não está melhor na universidade, merecem gratidão os divulgadores do corpo de saber onde se funda a política, o direito, a teologia, a epistemologia e uma miríade de disciplinas e discursos; e no qual se inclui também um conjunto muito jeitoso de conversas cujo propósito sempre pertenceu à philosophia perennis: o paleio de saltar para a cueca. Dito isto, cumpre anunciar que o João Galamba é um imbecil. E aproveito o calibre da figura para praticar um dos desportos favoritos dos filósofos, a etimologia. Imbecil vem do latim imbecillus, começando por significar fraqueza do físico e dos materiais. Só a partir do século XVIII, por via do francês, a palavra ganhou o significado de estúpido. Mas é na procura da mais remota origem que a etimologia nos oferece a heideggeriana delícia de encontrar iluminações semânticas: imbecillu permite chegar a baculum, bastão, cajado ou bengala. Então, imbecil é aquele a quem faltam as forças e um ponto de apoio, uma sustentação, a bengala. Ou seja, aquele que não se aguenta nas canetas. Na fonte, a palavra não tem nada a ver com a inteligência, e podemos recorrer ao João Galamba como magnífico exemplo deste significado primevo. Ele não é estúpido quando afirma que a Igreja prefere refugiar-se nos dogmas em vez de acudir aos sofrimentos dos homens, nada disso. Vai nesta consideração complexidade suficiente para colocar o seu autor num plano superior de intelecção, seja qual for o critério técnico escolhido para a avaliar. Mas, igualmente, não há forma de escapar ao título de imbecil, pois está a fazer uma afirmação que é mais fraca do que o Benfica de Artur Jorge.

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Candidato surpresa nas eleições americanas!

A menos de 1 mês das eleições, apareceu um candidato que ameaça alterar todas as regras da democracia tal como a conhecemos até hoje.

O seu projecto é de aplicação imediata, alcançando maior racionalidade energética, diminuição das emissões de CO2, extraordinária recuperação de horas de trabalho e correspondente aumento da produtividade. Para além destes benefícios, fica ainda garantida a paz entre as forças sociais e políticas através da radical uniformização da vida intelectual.

Ver reportagem do NEWS CHANNEL 3.

Educação sexual para bloggers

Um dos aspectos mais notáveis, e decisivos, do cristianismo é o de não ter educação sexual. De facto, os diferentes credos cristãos não têm nada a dizer sobre a sexualidade, apenas sobre o casamento. No catolicismo, a mais segregadora das variantes cristãs quanto ao matrimónio, há dois tipos de casamento: o terreno e o celestial. Os leigos casam entre si, os ordenados casam com o Senhor. No que diz respeito à sexualidade enquanto dimensão antropológica ou espiritual, o cristianismo nada pode dizer porque tem ignorado voluntariamente essa região ontológica; nisso, e infelizmente, não recolhendo a herança do judaísmo. Esta situação é desgraçada, que não haja a menor dúvida, e explica vários fenómenos que compõem o actual momento civilizacional. Um deles é relativo ao império da pornografia, o qual não é só produto de consumo, mas alcançou o feito de ser modo de relacionamento. Com o acesso imediato à pornografia, tanto na TV como na Internet, e ainda antes nas revistas femininas comuns, a pornografia massificou-se. Daqui nascem novos mercados e novas tipologias de relacionamento, onde o sexo se frui como lúdico e destituído de vínculo sentimental. Ou seja, o que os homens (e algumas mulheres) das elites sempre fizerem ao longo da História, ter sexo à disposição sem restrições, é agora uma possibilidade crescente para a enorme maioria dos adultos ocidentais, homens e mulheres, caso o procurem. Se quiserem protestar com alguém da Igreja por causa deste paradoxo, onde a falta de educação sexual gera uma legião de consumidores de sexo, e onde o culto da abstinência acaba como fonte de luxúria, é favor enviar a correspondência para o Santo Agostinho.

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A velhice do líder partidário eterno

Tendo assistido ao debate quinzenal no Parlamento pela televisão, ocorrido hoje, veio um assomo de lirismo: como seria a política e a vida social em Portugal se os trabalhadores tivessem autorização dos patrões para assistir aos debates quinzenais? Para os deputados, membros do Governo, funcionários da Assembleia, jornalistas destacados e ocasional público, este debate não deve ter sido diferente de tantos outros. Não há nenhum facto digno de registo a noticiar, nem sequer alguma frase memorável, mesmo que de memória efémera. Num certo sentido, nada aconteceu. Mas no seu outro lado, aquele que justifica a existência da figura do debate regular, é um dos instrumentos mais importantes da democracia e do Estado de direito. Os partidos têm tempo de preparar as intervenções e podem confrontar directamente os responsáveis governativos. Havendo ideias ou denúncias, o Governo fica sujeito ao desafio de lhes responder na hora, ou correr o risco de passar a imagem de fraqueza ou culpa. Claro que as propostas e as queixas dos partidos podem ser expressas a qualquer altura, não havendo nenhum impedimento para as fazer chegar à comunicação social e à população. Isso ajuda a iluminar a dimensão principal do debate quinzenal, e a qual se liga directamente com a matriz da democracia tal como ela foi primeiramente idealizada: num debate, dá-se prova de carácter. Este aspecto tem a sua raiz na ancestralidade de qualquer grupo humano, onde existe a necessidade de estabelecer hierarquias, sob pena de se desagregar o grupo em causa. Debater é, pois, combater e conquistar o poder – e a arma democrática por excelência é o carácter, a virtude. Na sua perfeição, a democracia é uma aristocracia perene, imune às disfunções oligárquicas e às perversões tirânicas, através da permanente e ordenada renovação.

O espectáculo de ver deputados aos berros, rubros de hostilidade, a sobreporem-se ao discurso do Primeiro-Ministro, pode deixar indiferente qualquer outro. Ou o espectáculo de ver os deputados a falar e a rir enquanto um outro deputado discursa, pode ser a normalidade. E o espectáculo de ver deputados a abandonar o hemiciclo só porque o seu partido já tinha acabado a intervenção, enquanto o debate continuava, pode apenas suscitar bocejos a muitos. O mesmo pode ser dito quanto à lamúria tecnocrática de Paulo Rangel, à retórica serôdia de Paulo Portas, à postura folclórica de Jerónimo de Sousa, à excitação soviética do tipo dos Verdes e à chatice ortodoxa de Alberto Martins – tudo mais do mesmo, a falência da inteligência continuadamente repetida como maldição. Mas, para mim, o choque veio de Francisco Louçã. Num debate cujo tema era relativo à crise económica internacional, Louçã tinha uma pergunta que insinuava a certeza da existência de recibos verdes numa empresa que representava a Segurança Social num dado serviço. A situação suposta era muito fixe, pois sumamente irónica. Contudo, Sócrates tinha a resposta pronta, a qual assarapantou o interrogador e deixou a sua bancada num estado de meter dó. Fatal, porém, foi o modo como Louçã lidou com a situação, não querendo admitir a bacorada com que esgotara a intervenção do seu partido no debate sobre a crise internacional. E veio justificar a questão com deturpações de menino apanhado numa traquinice a não querer assumir responsabilidades. Estes momentos, ó Louçã, são maus para a fotografia.

Passámos parte dos anos 80, e os 90 todinhos, a ter esperança neste rapaz. Entretanto, as primaveras chegam às 52 em Novembro, breve será pré-sexagenário e é crível que não esteja a ir para novo. O mito ainda é o do Louçã verboso, padreco e disposto a fazer a revolução nos 15 minutos seguintes. Só que a realidade, ao longo do tempo, mostra um político estagnado, invariavelmente azedo e odioso, o qual não se imagina a ser substituído por um qualquer lugar-tenente. O Rosas é um espinho cravado na sã convivência com os adversários, o Fazenda não consegue cobrir a nudez de ideias e a Drago queima-se na sua própria chama. Se albergam lá mais alguém de valor dialógico, pelo menos aproveitem os debates quinzenais para irem rodando até acertarem num novo talento. Isto de nem o Bloco ter material político para perturbar o nosso Primeiro, é o espectáculo mais desolador de uma tarde passada a olhar para a casa da democracia.

Lá como cá, game over

Este segundo debate virou o feitiço contra o feiticeiro: McCain julgava ter vantagens na interacção com a assistência, a qual interrogava e cercava os candidatos, mas acabou a exibir a sua banalidade intelectual, mediocridade política, descontrolo emocional e caducidade indisfarçável. Está acabado, todos o sabem neste momento, e já se encomendaram as faixas de campeão. O Mundo vai ter Obama durante os próximos 8 anos, e a América irá unir-se à Europa para a mudança do paradigma económico e da cooperação internacional. Porque se a crise financeira é gigante e assustadora, a certeza da crise ambiental, e a possibilidade da ocorrência de terrorismo nuclear, vão ser os maiores desafios que alguma vez a Humanidade enfrentou. A questão não é a de se ir mudar, porque a mudar já estamos. A questão é a da direcção e velocidade da mudança.

Talvez a escolha de McCain como candidato Republicano tenha resultado da antecipação de candidatos Democratas desruptores, tendo-se apostado num semi-independente com medalhas de guerra para apelar ao choradinho. Mas o facto é que ele não está qualificado para ser presidente, ponto. Mesmo esquecendo a irresponsabilidade, eventual loucura, da escolha de Palin, McCain está fora do prazo e não é estadista. Game over.

Aprende-se mais sobre política assistindo a um debate presidencial americano do que a acompanhar a política nacional durante um ano. A culpa não é de Sócrates, que assumiu os debates parlamentares quinzenais como um guerreiro, e é altamente competente nas entrevistas. E a culpa não é do Governo, que tem sido o mais profissional de sempre na gestão da sua imagem, comunicação e poder negocial. E a culpa também não é do PS, um partido cuja essência é fragmentária, que tem estado surpreendente e notavelmente coeso; Alegre confirmando a regra. A culpa é da oposição, onde não se vê uma única – uma única! – figura que desperte a mínima esperança ou interesse. Da esquerda à direita, não há ninguém que represente uma alternativa, sequer um complemento, ao poder actual. Até McCain, se viesse para cá descansar e curtir a reforma, faria melhor.